Estudos Sociedade e Agricultura

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Washington Luis de Sousa Bonfim

Classes agrárias, trabalhadores e democracia


Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 150-176.

Resumo: (Classes agrárias, trabalhadores e democracia). Este artigo versa sobre a história política da Europa ocidental, ressaltando a importância da classe trabalhadora na definição das possibilidades e limites da atuação estatal na esfera econômica. Enfoca especificamente o processo de construção do Estado moderno com ênfase no papel das coalizões de classe nos séculos XVIII e XIX. A partir desse panorama, é considerada a proposição de que a democracia não foi resultado apenas de certas configurações dos grupos agrários e da influência de uma forte burguesia, mas também da ativa participação dos trabalhadores urbanos na política. São analisadas as experiências social-democratas escandinavas.

Palavras-chave: classes agrárias; modernização; trabalhadores; Welfare State.

Abstract: (Agrarian class, workers and Democracy). This paper tries to analyze the political history of Western Europe. The role of the working class is emphasized as essential to understanding the development of state intervention in the economic sphere. In reviewing the modernization process, the article shows how in some states liberal democracy was not only influenced by the agrarian class and a strong bourgeoisie, but also by the active participation of the working urban class in politics. Finally, to support this view of the role of the working class, social democracy in the scandinavian countries is discussed with the aim of showing that the absence of a strong landlord class was less important than an organized working class in alliance with farmers for the improvement of democracy and welfare policies.

Key words: agrarian class; modernization; workers; Welfare State.

Washington Luis de Sousa Bonfim é professor da UFPI/DCS.


Este artigo objetiva discutir uma literatura considerada clássica no âmbito da sociologia histórico-comparada. A sua perspectiva é a de levantar algumas indagações em torno de duas questões principais. Em primeiro lugar, recuperar três processos cruciais da história política moderna e contemporânea – a construção dos Estados-nação europeus, a modernização político-econômica desses Estados e, por fim, a emergência das experiências social-democratas escandinavas, já no século XX. Em segundo lugar, chamar a atenção para o protagonismo de atores que, em certa medida, ajudaram na criação do mundo que aprendemos a reconhecer e que agora se modifica de maneira rápida e imprevisível.

A partir dessa última constatação surge o segundo ponto de nossa reflexão. O final do século XX parece estar colocando em xeque significativa parcela do pensamento de esquerda. Após a derrocada do “socialismo real”, agora é o Welfare State que encontra dificuldades para resistir tanto às crises que ele próprio gerou quanto ao ataque da tradição liberal, hoje revigorada pelos infortúnios que marcaram a trajetória das conquistas da democracia social.

Assim, o artigo interpela a história da edificação do mundo em que vivemos, procurando resgatar e dar créditos aos atores que desempenharam papel de relevo nesse processo. Em decorrência, camponeses, proprietários, aristocratas, burgueses e os trabalhadores virão à cena – no quadro de eventos histórico-sociais que agiram como substrato da emergência do Estado e da democracia – traçando o rumo dos acontecimentos de maneira a conformar o tipo de organização política com que convivem as nações em nossos dias. Especificamente, nosso objetivo é resenhar alguns dos autores mais importantes da sociologia histórico-comparada que se debruçaram sobre o tema mais geral dos processos de “modernização”, particularmente os que dizem respeito à história política da Inglaterra, França, Suécia, Noruega e Dinamarca.

Nossa consideração sugere que dois eventos cruciais podem ser citados na história política ocidental. Em primeiro lugar, a construção do Estado-nação, que se iniciou pela centralização política ocorrida na Europa, destacando algumas funções e traços específicos da ação do poder público, e, conseqüentemente, construindo o conceito de Estado moderno. O outro evento foi a consolidação das democracias parlamentares liberais, que terminaram por constituir uma marca muito especial dos Estados europeus ocidentais, e, de certa maneira, têm hoje sua definição vinculada ao conceito contemporâneo de Estado, ao tempo em que também permitiu a expansão de sua ação para além dos limites estritamente políticos, para alcançar as questões sociais, marca inconfundível da trajetória dos trabalhadores no mundo público.

A discussão se organiza segundo a cronologia desses eventos, sem a pretensão de reconstruí-los. Dessa maneira, o primeiro momento da análise discute a construção do Estado moderno e está orientado pela leitura de Tilly (1975a; 1975b). A idéia dessa seção é rever as questões básicas que surgem nos seus dois textos, e, especialmente, resgatar a contribuição desse autor no que diz respeito ao aspecto mais central de nossos objetivos, qual seja, o de entender como as coalizões de classes, em momentos diferenciados, deram origem a diversas trajetórias no caminho para a modernização e a distintos tipos de organização estatal.

Tais trajetórias são apresentadas na segunda parte. Aqui as referências destacam sobremaneira a obra de Barrington Moore Jr. (1983), que surge como um guia analítico na reconstrução do argumento de todos os autores citados. Além disso, são mencionados também os textos de Rueschemeyer, Stephens & Stephens (1992) e Theda Skocpol (s/d e 1973).

Ao final discute-se um caso especial de desenvolvimento do Estado capitalista na Europa, os Estados de bem-estar social, que decorrem sobretudo da implantação da democracia parlamentar e também são mencionados aqui a partir da ótica das coalizões que lhes deram vida e sustentação política.

O argumento geral do texto sugere fortemente uma análise para a reflexão, qual seja, aponta a idéia de que o entendimento da história política ocidental não pode prescindir da ativa participação dos trabalhadores no mundo público, na busca pela ampliação e democratização dos direitos políticos e sociais, que hoje se colocam como o alvo favorito das várias vertentes de análise que tentam interpretar os eventos da “globalização” e conferir-lhes significado.

Em resumo, esse debate coloca em discussão o tema atual da relação entre capitalismo, classes sociais e política; acumulação de riquezas e desmercadorização do trabalho, ou seja, o tema recorrente do desenvolvimento econômico com justiça social propiciada pela democracia. Até os dias de hoje, os Estados social-democratas escandinavos ainda constituem o exemplo histórico mais significativo dessa última proposição. As atuais investidas neoliberais contra os valores e benefícios sociais alcançados ao longo dos tempos, tornam oportuno revisitar a bibliografia da história comparada que projetou esses grandes temas da “intervenção estatal”, a relação entre modernização, classes sociais, democracia liberal e Welfare State. Nosso propósito último consiste no levantamento da importância da participação dos trabalhadores urbanos naqueles processos histórico-políticos e como constitui marca da tradição desses atores sociais na construção do mundo moderno a sua propensão à democracia e à desmercadorização do trabalho. Ou seja, nosso ponto consiste em chamar atenção para o papel da classe trabalhadora na formação do mundo moderno e como ele como nos auxilia na compreensão da natureza dos regimes políticos e da importância destes para a democracia social.

 

O processo de state-making na Europa ocidental

Em The Formation of National States in Western Europe (1975c) vários são os enfoques para analisar a questão da construção dos Estados-nação europeus. Os aspectos nele referenciados têm relação com uma definição mínima e consensual sobre o Estado e dizem respeito à sua capacidade de extração de recursos, à formação de uma força militar com o objetivo de defesa e garantia da ordem no território a que está delimitada a autoridade e à constituição de um corpo burocrático, responsável pela realização das tarefas fiscais e tributárias e condução dos negócios públicos.

De maneira mais específica, Tilly trabalha com o seguinte conceito: “... uma organização que controla a população que ocupa determinado território é um Estado à medida que (1) é diferenciada de outras organizações que atuam no mesmo território; (2) é autônoma; (3) é centralizada; e (4) suas divisões são formalmente coordenadas umas com as outras...” (Tilly, 1975b: 70).

O ponto de Tilly pode ser identificado na busca de encontrar, no desenvolvimento histórico dos países europeus, o conjunto de circunstâncias que possibilitaram a criação dos Estados-nação, como hoje são conhecidos, observando inclusive o papel das coalizões de poder em que se fundamentou o processo, realizando assim, uma “fisiologia” de state-making, com ênfase na performance das atividades de extração e coerção, que tornaram realidade o fenômeno estatal.

Comentando sobre os primórdios do processo de state-making, Tilly aponta para o começo do século XVI como referência, no sentido da busca das condições comuns e da base material sobre a qual germinavam os eventos que irão dar-lhe origem e anota sua presença já no século XVII. A homogeneidade cultural européia surge então como a primeira dessas condições similares, fruto da influência da herança deixada pelo Império Romano, que produzira uma convergência na linguagem, lei, religião, práticas administrativas, na agricultura e outros aspectos da vida da região. Mas os aspectos mais influentes de todas essas convergências foram certamente a facilidade de difusão de modelos organizacionais no território, a transferência de população de um Estado para outro e o movimento de pessoal administrativo de um governo para outro (Tilly, 1975b: 18).

A segunda condição facilitadora do processo de construção do Estado nacional na Europa constitui a prevalência do campesinato e, por conseqüência, da classe de proprietários rurais. Em sua maioria, esses extratos constituíam a aristocracia, com forte influência política, circunstância que os tornava de fundamental importância nos eventos, tanto porque detinham controle sobre as populações camponesas, quanto porque dessa classe dependeu o destino da entrada do capitalismo naquelas sociedades ocidentais.

Outras condições favoráveis à tarefa dos construtores dos Estados europeus foram o funcionamento anterior de algumas organizações especializadas de governo e, também, o fato de que a Europa não gozava de grandes vizinhos com importante concentração de poder. Além disso, houve a contribuição das cidades, do comércio, dos mercadores, manufatureiros e dos primeiros capitalistas.

Se este conjunto de condições indica o modo como a Europa estava, por assim dizer, preparada para o state-making, é preciso argumentar que somente alguns dos proto-estados lograram êxito na constituição de um poder centralizado, com domínio exclusivo da utilização da força sobre seu território.

Tilly enumera sete condições gerais que descreveriam essas possibilidades de sucesso individual das unidades:

A oportunidade de extração de recursos;

Localização geográfica que conferisse certa tranqüilidade no que diz respeito à proteção;

o contínuo aparecimento de lideranças políticas competentes e capazes de levar adiante o processo;

as circunstâncias do contexto internacional;

as vitórias nos conflitos com outros países;

a homogeneidade da população a ser submetida;

por último, surge novamente o papel das coalizões, em especial a fortaleza da união entre o poder central e os principais segmentos das elites rurais.

Esse sétimo ponto, as coalizões, indica que o autor atribui um papel influente à configuração rural do mundo em que os Estados europeus foram gerados. A grande predominância da população camponesa significou que os recursos disponíveis para a consolidação do processo em marcha, de um modo ou de outro, viriam daquelas populações. No entanto, o controle sobre elas era amplamente disperso, o que tornava os senhores rurais elementos cruciais na atividade de sua exploração, muito embora fossem arredios em relação, por exemplo, às tentativas de taxação.

É finalmente sobre o campesinato que irão incidir os principais custos e os Estados europeus tiveram sua força adquirida principalmente através da sua capacidade destruidora deste estrato social. “Na Europa, a comercialização e destruição do campesinato ocorreu largamente como uma conseqüência da difusão das relações de produção e propriedade de tipo capitalista... A conexão histórica tem dois lados: (1) a expansão do capitalismo liberou os recursos que os state-makers capturaram para fins nacionais; a consolidação dos anteriormente fragmentados direitos de propriedade, por exemplo, facilitaram sua taxação; (2) o crescimento das cidades e da produção industrial (em geral, fora das cidades) no sul da Inglaterra, Flandres, no Reno, no norte da Itália e em outros lugares na Europa ocidental produziu mercados lucrativos para grandes produtores do restante da Europa, incentivos aos senhores de terra para destruir a criação de uma força de trabalho dócil e pobre, e condições para a aliança política entre grandes senhores e aspirantes a state-makers:” [1] (Tilly, 1975b: 72).

Para configurar o que chama “fisiologia” de state-making, Tilly apresenta a questão dos levantes ocorridos na Europa em torno dos problemas de abastecimento e distribuição de alimentos. Esses conflitos por alimentação significaram a resistência da população contra a violação de direitos que considerava estabelecidos desde muito tempo, e que se encontravam ameaçados por grupos de mercadores e funcionários do Estado. Primeiramente, o Estado aparece como uma força centrípeta. É ele quem, ao intervir buscando ampliar o mercado de produtos alimentícios em escala nacional, ocasiona uma parte dos levantes. Por outro lado, seu controle da distribuição de alimentos também agudiza tensões que se avolumaram à medida que ele se tornava responsável pelo aumento na demanda dos produtos, em geral para fazer face ao crescimento de seus funcionários, quer militares, quer civis. Com o tempo, foi-se incrementando mais ainda o papel regulatório do Estado, estipulando limites às atividades que afetavam a oferta de alimentação, seja através de medidas legislativas, seja por intermédio de meios administrativos ou judiciais. Do ponto de vista fiscal, a intervenção ocorria através da imposição de tarifas, deveres, impostos sobre a terra, licenças e outros meios, como a venda de direitos. Ainda formaram-se agências estatais para o provisionamento das forças armadas.

Outra questão crucial é o tipo de associação entre os Estados e as classes proprietárias. A escolha inicial dos métodos de extração de recursos da população, as primeiras formas de coalizão com a Coroa e o tipo de resposta aos conflitos sobre a demanda por alimentos tiveram conseqüências duradouras sobre as trajetórias e o ritmo de state-making, bem como sobre as estruturas de poder que emergiriam posteriormente.

O processo de formação dos Estados no mundo ocidental, encarado sob o ponto de vista das questões do suprimento de alimentação, leva ao tema das mudanças que se seguiram na estruturação da vida rural européia. Um dos movimentos comuns aos state-makers foi a sua aproximação dos promotores da economia capitalista. Este fato tornou necessárias mudanças na organização, propriedade e controle das atividades rurais.

Utilizando a linguagem de Moore para descrever a análise de Tilly, a capacidade dos senhores rurais de se relacionarem com o impulso comercial e com ele modificarem as relações sociais em que estavam envolvidos pesou significativamente. O aumento da produção agrícola verificado à época foi condicionado mais pelo aumento do número de colheitas, do que pela introdução de novas técnicas de plantio. Assim, a capacidade dos senhores de forçarem a população a deixar a produção independente e voltarem-se para o mercado foi uma primeira circunstância relevante. Além disso, o controle sobre a força de trabalho como um todo e, com isso, o enfraquecimento dos laças comunitários rurais também constaram no conjunto de tarefas realizadas pelos senhores rurais na senda capitalista.

No entanto, uma condição específica tornou o esforço de alguns melhor sucedido: a confiança na compensação monetária. Citando Marx, Tilly (1975a) nota que a conversão dos camponeses em trabalhadores assalariados, ao invés de “escravos”, não apenas produziu a força de trabalho para a produção industrial, como formou um mercado interno capaz de tornar a produção de bens de consumo de baixo preço uma atividade lucrativa. A Inglaterra é o exemplo consolidado desta estratégia.

Concluindo o ponto, Tilly observa que “as escolhas sobre a política de alimentação afetaram a experiência subseqüente dos Estados europeus de cinco modos diretos: 1) formando ou cimentando as principais coalizões de classe, com as quais os Estados entraram na era moderna, a principal escolha sendo relativa à força do campesinato, dos senhores de terra, os comerciantes e as classes manufatureiras; 2) afetando o sucesso da política fiscal (...); 3) afetando o núcleo da burocracia central (...); 4) promovendo ou impedindo o crescimento da produção industrial e agrícola (...); 5) governando o timing, a extensão e o lócus dos violentos conflitos sobre o controle da oferta de alimentos, com a promoção de um livre-mercado tendendo a gerar conflitos agudos, à medida que as margens de sobrevivência diminuíam e as flutuações anuais na oferta e preços aumentavam e as comunidades camponesas permaneciam” (Tilly,1975a: 454).

Dois desses pontos têm especial relevo. Em primeiro lugar, as alianças de classe que foram significativas na construção das alternativas históricas seguidas pelos países. Deve ser ressaltado igualmente que no state-making, as possibilidades de orientação do processo, em suas várias fases, esteve condicionada ao modo como o mundo rural reagiu à penetração do capitalismo em seu universo, e, o que é mais relevante ainda, state-making e consolidação da economia de mercado (livre troca de bens e propriedade privada), atuaram como acontecimentos paralelos e interligados, de que algumas vezes resulta difícil definir o nexo causal entre si.

Segundo o tipo de coalizão que governou a atividade de construção de seus Estados nacionais, seria interessante mencionar brevemente as experiências históricas da Inglaterra, França e Alemanha. Na Inglaterra, a coalizão entre proprietários rurais, com forte inclinação para o mercado, e uma Coroa enfraquecida, orientou a resolução do problema da alimentação de modo a fazer valer a idéia de que a produção de grãos tinha como objetivo básico o atendimento do consumidor, consumption is the sole end and purpose of all production. No território francês, a incompetência e/ou imoralidade das autoridades locais e dos mercadores tornou as demandas por alimentação uma questão política altamente explosiva, como atestam os eventos de 1789 e 1790. Somente após os anos de 1846 e 1847, com a prevalência do mercado sobre a subsistência, os conflitos cessaram e o Estado nacional venceu a disputa. Na Alemanha, a política de fortalecimento de um Estado altamente militarizado forçou a questão em outra direção. Colocando o poder nas mãos dos senhores da guerra e do centeio, os Junkers, as elites prussianas conseguiram subjugar à escravidão a população de camponeses, entorpecendo o desenvolvimento do impulso comercial, e, por conseqüência, da classe burguesa alemã. É somente o século XIX que trará o processo de solapamento do poder Junker (Tilly, 1975a: 453).

 

A modernização política e econômica na Europa ocidental

O mundo que vimos descrito por Tilly conferia relevo especifico às classes agrárias, seus movimentos e alianças ajudaram a tornar realidade os Estados-nação da Europa ocidental e sobre esse mundo os processos de modernização irão incidir. As classes, porém, estarão ampliadas e, muito embora o mundo rural ainda ocupe um papel significativo, são os atores urbanos que terminam por dar configuração final à realidade européia. Em especial, é a partir desses processos que a classe trabalhadora urbana começará a influir de modo decisivo nos destinos políticos da região, imprimindo sua marca de resistência à hegemonia e exclusividade burguesas na vida pública e social dos séculos XIX e XX.

Mas, como entender objetivamente o termo modernização? De um ponto de vista mais amplo, o processo de formação dos Estados nacionais da Europa ocidental e o papel das coalizões políticas que se formaram, poderiam ser considerados também como processos de modernização daquela região. Em um sentido mais restrito, o termo pode referir problemas específicos, tais como o industrialismo e a conseqüente complexificação da divisão do trabalho, em abordagem mais econômica; o surgimento da democracia parlamentar burguesa, no campo da política; e, finalmente, pode-se interpretá-lo como um movimento das sociedades rumo ao que se denomina atualmente mundo moderno.

Todavia, a modernização é considerada aqui em um sentido que incorpora as dimensões da economia e da política. Por um lado, tem relação com o avanço do capitalismo, com a longa serie de eventos que tornou possível a urbanização, a industrialização, a liberação da forca de trabalho e a prevalência do contrato nas relações econômicas, agora orientadas pelas leis de uma instituição tão abstrata, quanto reificada, o mercado. Por outro, a constituição da democracia parlamentar liberal, a extensão do sufrágio e o aprimoramento da representação, através da crescente participação dos partidos políticos no sistema, conferem outras características ao processo modernizador. No entanto, cabe ressalvar que, como em uma moeda, os dois lados não aparecem juntos, política e economia estão amplamente interligados na realidade, mas analiticamente, a junção é feita apenas de maneira insatisfatória (Caporaso & Levine, 1993).

Apresentaremos, então, os eventos principais da modernização da Inglaterra e da França, atentando menos a fatos históricos específicos e muito mais às circunstâncias que conformaram a trajetória política destes dois países, procurando identificar os atores fundamentais e a dimensão de suas participações no processo.

Antes, contudo, convém fazer duas observações sobre a obra de Barrington Moore Jr. (1983) [2] , que constitui o nosso guia analítico para a discussão do tema. A primeira delas é sobre sua marcada influência marxista. Como revela Skocpol (1973), em As origens da ditadura e da democracia subjaz uma concepção de classes sociais que se baseia na compreensão de que as relações econômicas ajudam a conformá-las historicamente, além disso, está implícita também a idéia de que a luta de classes, é uma das questões centrais da política. Embora em Moore, e também em Skocpol (s/d) e em Rueschemeyer, Stevens & Stevens (1992), algumas vezes a remissão ao conceito de classes sem referência explícita à sua definição, componha um quadro muito mais assemelhado à análise weberiana que propriamente marxista. A outra consideração diz respeito à diversidade com que cada um daqueles autores se referem às classes sociais, privilegiando ora os proprietários rurais, ora trabalhadores, ou, como é o caso específico de Skocpol, enfatizando o papel do Estado como ator político fundamental [3] , no contexto da “luta de classes”.

Voltando à questão principal, o contraste entre Inglaterra e França, países que se estabeleceram no mundo moderno como democracias consolidadas, ajuda a realçar um conjunto de aspectos que, para além do que Moore aponta como fatores fundamentais para consolidação democrática [4] no século XX, denotam o papel vigoroso das circunstâncias de mercado, orientando as ações das várias classes sociais.

No território inglês, o desenvolvimento da modernização seguiu uma trajetória considerada clássica, onde o impulso comercial não encontrou oposição aristocrática. Neste sentido, a aristocracia inglesa cumpriu uma papel essencial, ajudando a controlar e destruir o campesinato do interior do país e, em coligação com a burguesia nascente, barrando o avanço do poder político da Coroa inglesa. O enfraquecimento da Coroa aparece como um ponto importante. Em primeiro lugar, porque a análise de Moore ressalta o papel da violência nas guerras civis e nos enclosures, pavimentando o caminho rumo à modernidade. Depois, como ele sugere, esses acontecimentos tornaram a transição para o capitalismo um acontecimento quase “natural” de desenvolvimento econômico da sociedade inglesa. Os camponeses perderam toda e qualquer possibilidade de encontrar apoio contra a destruição de seu mundo, e, por outro lado, burgueses e aristocratas encontraram as facilidades de não contar com levantes agrários significativos, que pudessem desestabilizar o poder político inglês.

Como afirma Moore (1983: 39), apesar de ter havido também na Inglaterra uma fase reacionária, com tentativas de centralização do poder político na Coroa, “os capitalistas ingleses do século XIX não tiveram de apoiar-se numa Prússia e em seus Junkers para atingir a unidade nacional, derrubar as barreiras internas ao comércio, estabelecer um sistema jurídico uniforme, modernizar a moeda e outras exigências da industrialização. A ordem política tinha sido racionalizada e um Estado moderno havia sido criado há muito. Com um mínimo de ajuda desse Estado, podiam, como a primeira burguesia inteiramente capitalista, converter uma grande parte de todo o globo em sua área de comércio”.

O contraste com a Prússia ressalta o caráter democrático da modernização inglesa, que embora contasse com forte aparato de guerra, voltado para a Marinha, não antecipou os passos da coligação reacionária da aristocracia e a burguesia contra os camponeses. O que não significou, de nenhum modo, uma vida fácil àqueles, muito ao contrário. O imperialismo alemão foi estabelecido às custas do desenvolvimento democrático, enquanto que na Inglaterra, sem um grau elevado de stateness, a alternativa imperialista se abriu pela via comercial, com o desenvolvimento de uma política de livre-comércio.

Na França, os mesmos atores desempenharam papéis amplamente diversos. A aristocracia proprietária, a classe burguesa nascente, a Coroa e o campesinato desenharam uma cena política na qual a destruição da aristocracia foi muito mais abrupta e violenta e na qual o campesinato surgiu com grande potencial desestabilizador da sociedade e da política francesas. Um dos pontos fundamentais na interpretação do fenômeno da modernização na França é compreender o vigor do impulso comercial. Diferentemente dos nobres ingleses, na França a aristocracia adquiriu o direito a uma posição jurídica mais definida, além disso, ela era muito mais dependente do campesinato, em relação às suas rendas. Estas duas circunstâncias ajudaram a conter o ímpeto comercial aristocrático, que não extraía lucros da atividade comercial, mas da cobrança de renda do campesinato.

Nos séculos XVII e XVIII tornou-se mais clara a defasagem entre os impulsos comerciais da França e da Inglaterra. Neste sentido, o confronto entre os principais produtos nos dois países traz a dimensão do contraste. Ao invés da lã, os franceses possuíam grande produção de vinho, que embora proporcionasse bons lucros, principalmente na região de Bordéus, não podia constituir uma base sólida para o desenvolvimento da indústria.

Segundo Moore, a situação do campesinato francês foi muito importante na configuração do impulso comercial. A nobreza francesa dependia enormemente das rendas do campo e o modo de extração que utilizava ajudou a aumentar os níveis de tensão e conflito, que explodiriam em 1789. A aristocracia conservou o camponês na terra, utilizando os direitos feudais para obter maior produção. Assim, o nobre adaptou-se à comercialização sem precisar modificar a estrutura da sociedade, até esse período não houve enclosures na França. “Os nobres que representavam o extremo avanço comercial na zona rural francesa tentavam apenas extrair mais dos camponeses”. (Moore, 1983: 59).

As estruturas social e econômica do país determinaram então uma conjugação diferente entre as classes sociais, lá, a manutenção das características básicas das relações do ancien régime, até bem próximo da Revolução, contribuiu para unir burgueses e nobres através da Coroa, pois, pelo menos até o século XVII, os primeiros não eram a ponta de lança da modernização, estando sujeitos ao favor real. Comparada à inglesa, a monarquia francesa possuía um poder político muito maior, daí ter-se constituído como um centro de atração das forças sociais, agindo como um ator político per se [5] .

Um aspecto relevante do Estado francês é o modo como ele se consolidou e passou a pleitear uma condição de força política no sistema de Estados europeu. Segundo Skocpol (s/d), a empresa imperialista francesa encontrou duas grandes dificuldades. A primeira era o poderio militar de outras potências continentais européias; e a segunda, a sua incapacidade de fazer frente às potências comerciais-navais, em especial, a Inglaterra. A França não só não logrou ser uma potência hegemônica como, ao insistir nas empreitadas militares, começou a expor as fraquezas e contradições de sua sociedade.

Essa “debilidade” do Estado francês surge como um ponto de partida para a Revolução. Na análise de Skocpol, os objetivos iniciais de 1789 não se relacionavam à estrutura de classes, mas questionavam fundamentalmente a estrutura de governo. O Estado absolutista não respondia mais às demandas das elites e é a dissensão entre estas que detona o processo revolucionário. Em suas palavras, “... esses conflitos (da Revolução) começaram por paralisar e em seguida desmantelaram o sistema administrativo do Antigo Regime, o qual, apesar de tudo, sempre se baseara exclusivamente na atuação rotineira dos diversos organismos governativos e dos intendants. Com estes grupos e indivíduos altercando entre si em 1788 e 1789 sobre o modo como deveriam ser constituídos os organismos representativos e sobre quais os agravos que deveriam ser levados ao conhecimento do rei, as portas foram abertas de par em par à manifestação dos descontentamentos populares. Dirigentes da classe encorajaram realmente uma participação popular cada vez mais alargada através do apelo dirigido a certos grupos populares urbanos no sentido de apoiarem as suas lutas pela “liberdade...” (Skocpol, s/d: 77).

Em contraponto, o argumento de Moore sobre as causas de Revolução realça certas modificações ocorridas no modo de penetração do capitalismo na França do século XVIII. Esse período significou um aprofundamento do impulso comercial, com um movimento que o autor denomina “ofensiva aristocrática”, que se caracterizou pela tentativa de imprimir um ritmo mais forte às relações sociais rurais, como é exemplo o limitado processo de enclosure que se verificou. Mas, em novo contraste com a Inglaterra, essa ofensiva não foi forte o suficiente para aniquilar os que a ela se opunham, e, além disso, engendrou a hostilidade dos camponeses contra o ancien régime. Enquanto o capitalismo avançava de todos os modos possíveis e a monarquia tentava controlar a nobreza, o feudalismo ainda se mostrava bastante forte para resistir, até o ponto onde os desejos dos camponeses por um pedaço de terra e por manter sua comunidade aldeã, começavam a ir de encontro à modernização, que passava a significar a destruição da parcela pobre desse estrato social. O campesinato foi assim o árbitro da Revolução, embora não se tenha constituído como sua mola propulsora (Moore, 1983: 83).

A principal conseqüência da Revolução foi a destruição dos privilégios e do poder político aristocrático, que deu possibilidade a que se eliminassem as chances de reação autoritária no seguimento da história política francesa. Para Moore, o ponto torna-se mais significativo quando se percebe a relevância dessa aristocracia em outras experiências históricas, especialmente quando exposta ao impacto da indústria avançada.

Todavia a esse respeito Rueschemeyer, Stephens & Stephens (1992) questionam alguns pontos da análise de Moore, em particular, não corroboram integralmente a idéia de que a simples inexistência de um setor proprietário aristocrático seja capaz de levar à democracia. Para os autores, Moore força muito a interpretação segundo a qual tal ausência definiria uma opção da burguesia pela democracia.

A crítica possui dois fundamentos. Inicialmente, ela aponta para o fato de que, mesmo hegemônica, uma burguesia pode ser antidemocrática dependendo de determinada situação econômica, ou mesmo, devido à postura de um segmento dessa classe. Além disso, ela denuncia um certo determinismo em Moore, que supõe que a burguesia “naturalmente” adotará uma política democrática, na ausência da classe latifundiária forte.

À análise de Moore os autores acrescem a necessidade de se observar os Estados menores do continente europeu, aqueles onde não existiu uma grande classe de proprietários rurais, mas onde a democracia se estabeleceu, não por influência da burguesia, mas, entre outros fatores, pela ação da classe trabalhadora urbana.

 

Quadro 1. Força da elite agrária e resultados políticos na Europa

Força da elite agrária no final do século XIX

 

Fraca

Forte

Democracias no período entre guerras

Suécia

Dinamarca

Noruega

Suíça

Bélgica

Holanda

França

Grã-Bretanha

Regimes autoritários estabelecidos

 

Áustria-Hungria

Espanha

Itália

Alemanha

Fonte: Rueschemeyer et al, 1992: 84.

 

O quadro 1 revela a realidade da democracia no continente europeu e dá uma indicação clara do ponto a que os autores estão se referindo. Entre os países onde a força das elites agrárias é fraca estão a Suécia, a Dinamarca e a Noruega, países que, como veremos, juntamente com a democracia política, irão estabelecer um Estado de bem-estar, avançando no sentido da democracia social.

Esses autores afirmam ainda que há exagero nas proposições de Moore sobre a França, pois a Revolução não foi capaz, simplesmente, de aniquilar o poder da aristocracia e garantir a democracia. É apenas em 1877 quando a Republica irá consolidar um regime parlamentar forte, com eleições baseadas no sufrágio universal masculino. Neste sentido, eles comentam: Por quê os republicanos foram bem-sucedidos em estabelecer a democracia em 1877 e não em 1849? (...) A chave é a natureza da coalizão de classes que reuniram. A liderança do movimento democrático e republicano do final da monarquia de Julho para a Terceira República havia progressivamente mudado da aliança de artesãos politicamente ativos e a classe média urbana para uma aliança das classes médias urbanas politicamente ativas e a burguesia provincial. Acompanhando essas mudanças, houve também modificações na demanda por uma ‘república democrática e social’, para uma república democrática sem legislação social e com uma ênfase mais forte no direito à propriedade privada. Visto que a classe trabalhadora não possuía alternativas, isso não somente ampliou a coalizão, como também facilitou uma acomodação com os estratos superiores da burguesia e dos senhores de terra”. (Rueschemeyer et al, 1992: 90).

O mesmo tipo de argumento serviria para sustentar que a transição à democracia na Inglaterra foi um resultado retardado das agitações da classe trabalhadora, que anteciparam a formação dos partidos social-democratas.

Assim, a democracia surge como um fruto da ação da classe trabalhadora, que no final do século passado começou a organizar-se na maioria dos países europeus em sindicatos e partidos, que se transformaram em mecanismo de absorção e estímulo às suas reivindicações, em um ambiente no qual o equilíbrio de poder entre as classes havia mudado significativamente.

O argumento dos autores mencionados modifica Moore em importante medida. Para eles, a existência de uma classe proprietária forte influiu não apenas no sentido de forçar a burguesia a com ela se aliar, mas imprimiu contornos ideológicos conservadores à própria sociedade, impedindo que segmentos da classe média e do campesinato pudessem se unir à classe trabalhadora em favor da democracia. O papel específico da classe trabalhadora, no desenvolvimento político do mundo moderno, aparece minimizado em As origens sociais...

No entanto, gostaríamos de chamar atenção para a importância da análise de Skocpol sobre o Estado. Embora possa ser criticada [6] , ela traz à baila a questão da autonomia estatal e confere à instituição a capacidade de atuar como ator específico nos vários contextos políticos. Esta virtude é importante, pois, na análise dos casos de “revolução pelo alto”, de que falam Moore e alguns clássicos marxistas (cf. Santos, 1996) o papel do Estado assume extrema significação e determina as opções políticas disponíveis às classes sociais assumindo ele próprio função demiúrgica no processo modernizador.

 

Trabalhadores, Welfare State e democracia social

É portanto o Welfare State que irá caracterizar melhor o argumento aqui proposto, quanto ao papel dos trabalhadores na constituição dos regimes democráticos europeus. Partindo dessa idéia, começamos a consolidar nossa proposição, tentando fazê-lo através do mesmo recurso analítico usado até aqui. No entanto, inicialmente, é necessário reconhecer as várias abordagens sobre o fenômeno da social-democracia. As mais conhecidas procuram caracterizá-la através das políticas sociais que realiza, enfatizando ainda o contexto histórico de sua formação, e, especialmente, os resultados que produzem na economia de mercado (cf. Rimlinger, 1977; Wilenski, 1975; Flora & Heidenheimer, 1981; De Swaan, 1988; Ringen, 1987).

No entanto, preferimos nos referir a outros estudos que enfatizam os problemas da “economia política” da social-democracia e dão relevo às coalizões que constituíram e sustentaram os chamados Welfare States. Neste sentido, os trabalhos de Esping-Andersen (1988 e 1993) são de grande valia.

Esse autor parte de uma reconsideração do conceito de social-democracia, que incorpora as dimensões da decisão de participar do parlamento, da mobilização da classe trabalhadora, no sentido de representação de seus interesses, inclusive através de alianças, e, por último, da idéia de que a social-democracia favorece a unidade da classe trabalhadora, trazendo-lhe benefícios através de expedientes de legislação e de sua capacidade de influência sobre a política pública [7] . Esping-Andersen está preocupado em formular uma teoria da social-democracia que se reporte a três componentes-chave: a estrutura, a formação e as alianças de classe, procurando perceber as relações entre a classe, o Estado e o poder.

Interessante em Esping-Andersen é o seu esforço para tornar claro o conceito de classe social, pois entende que ele permite melhor avaliar as possibilidades de sucesso de um arranjo político comprometido com a democracia social. A distinção entre estrutura e a formação de classe também é chave. Em suas palavras, “classe tem relação com empty slots objetivamente dados, que existem como resultado da divisão do trabalho e que têm significado independentemente das atitudes ou comportamentos dos indivíduos que os ocupam. Formação de classe tem relação com o modo como os indivíduos que preenchem tais slots empenham-se na ação coletiva; isto é, como constituem uma comunidade política e social”. (Esping-Andersen, 1988: 27).

A estrutura de empty slots tem um papel central para a ascendência social-democrata, pois, define a matéria-prima sob a qual a comunidade, as alianças e a mobilização política vão se basear. E, neste sentido, o desenvolvimento da estrutura de classes indica o número relativo e o caráter das classes, determinando o que é politicamente viável. Há quatro efeitos principais dessa estrutura sobre o movimento social-democrata:

O surgimento da classe média pode ser considerado o evento mais profundo das mudanças ocorridas na estrutura de classes das sociedades avançadas, e, segundo o autor, tem se transformado na principal alternativa histórica de aliança do trabalho, na busca da manutenção do Welfare State.

Esping-Andersen descreve a formação de classe como um processo de mobilização de poder que exige algumas condições básicas: a descomodificação do trabalho, a institucionalização da solidariedade, a questão da inclusão dos aliados em sua comunidade política e, “dada a natureza do desenvolvimento estrutural das classes, para não mencionar a exigência de maiorias parlamentares, a social-democracia, provavelmente, não será capaz de evitar construir coalizões políticas com outras classes” (Esping-Andersen, 1988: 31).

A questão das alianças de classes passa pelo dilema que coloca o possível trade-off entre uma busca de votos fora da classe trabalhadora e a quantidade de defecções no apoio desta última à social-democracia. Após avaliar as dificuldades atuais do Welfare State, o autor propõe que a sobrevivência social-democrata está cada vez mais dependente da negociação de alianças com os estratos médios da sociedade.

Para Esping-Andersen (1993), há três fatores que explicam as diversas trajetórias dos regimes de bem-estar. O tipo de mobilização dos trabalhadores aparece inicialmente e remete ao modo como eles estruturam suas respostas aos desafios da ação coletiva. A mobilização para o socialismo na classe trabalhadora não é uma questão automática. O tipo de organização e as relações entre o partido operário e os sindicatos contam decisivamente para o eventual sucesso da social-democracia. A mobilização de classe, então, dá relevo ao fato de que as classes sociais são o principal agente de mudança e que o equilíbrio entre elas determina os resultados distributivos das políticas sociais.

A emergência das coalizões também é um fator determinante das trajetórias dos regimes de bem-estar. Os eventuais parceiros dos trabalhadores na luta política pela democracia podem ajudar a definir a profundidade do comprometimento do Estado com a questão de “desmercadorização” do trabalho, e definem o modo como determinado arranjo de poder equaciona a relação Estado, mercado e direitos sociais. O terceiro fator para a diferenciação dos regimes de bem-estar tem relação com o legado histórico da institucionalização do próprio regime.

É nessa perspectiva que o autor apresenta os diferentes tipos de regime de bem-estar [8] . No regime liberal predominam ações que não levam em consideração a idéia da desmercadorização do trabalho; ao contrário, sua premissa é conceber benefícios iguais à propensão marginal a optar pelo bem-estar, ao invés do trabalho, ou seja, a política social está dirigida ao apoio do mercado, à medida que não surge como opção, a não ser temporária e geralmente insuficiente, aos que eventualmente estejam fora dele. Os exemplos históricos de países com regime liberal são os Estados Unidos, o Canadá e a Austrália.

No regime de bem-estar corporativo, a desmercadorização do trabalho é objetivo da política social. Porém, nos Estados que o adotam (Áustria, França, Alemanha e Itália) há forte diferenciação quanto aos que têm acesso aos benefícios, pois a principal característica do regime é a preservação de status diferenciais e da tradição familiar. Neste caso, o impacto redistributivo das políticas adotadas é pequeno.

O regime de bem-estar social-democrata é o que incorpora nas políticas sociais o grau mais elevado de proteção de um padrão de vida socialmente aceitável para os indivíduos ou famílias, independentemente da participação no mercado. A ênfase é a qualidade e o arranjo dos direitos sociais, muito mais que sua simples existência.

Assim, ao analisar o nível de desmercadorização do trabalho percebe-se que as regras que governam o acesso ao benefício, os níveis de substituição de renda e o alcance das concessões estão marcadas por um princípio universalista de utilização dos serviços, que não se concilia com a “lógica de mercadoria” do trabalho e, sob determinado ponto de vista, concorre para o desestímulo do incentivo ao trabalho e à produtividade. Em resumo, o traço mais saliente dos regimes social-democratas é a fusão de bem-estar e trabalho, com comprometimento com o pleno emprego, o que estabelece recursos de poder importantes para os assalariados, reforçando o movimento dos trabalhadores.

Suécia, Noruega e Dinamarca são os exemplos históricos de regimes social-democratas. Segundo Esping-Andersen (1988), a social-democracia escandinava pode ser interpretada como o resultado eventual de um processo de industrialização tardia, em um ambiente relativamente democrático, na presença de um campesinato independente, capaz de aliar-se aos trabalhadores urbanos.

Como mencionamos, um ponto polêmico na análise de Moore tem relação com a inexistência de atenção aos pequenos Estados europeus. Segundo Rueschemeyer, Stephens & Stephens, em função disso ele não foi capaz de perceber que a democracia, em geral, dependeu menos da ausência de uma classe de proprietários rurais vigorosa que de uma classe trabalhadora organizada e aliada ao campo através do farmers. O caso dos países nórdicos é então fundamental para o argumento.

Na Dinamarca, a reforma agrária do início do século XIX concorreu para facilitar o processo de modernização, garantindo a existência de uma classe de farmers forte e independente e um campesinato vivendo em um sistema de propriedade que tornou possível o cultivo familiar. Além disso, a educação, a capacidade de adaptação tecnológica e de associação, com a atuação dos farmers como força política organizada, contribuíram para existência de uma população rural de propensão liberal e democrática.

A agricultura naquele país constituiu a espinha dorsal da sociedade e não foi o campesinato a fonte primordial da proletarização da população, como no caso inglês. A indústria dinamarquesa abasteceu-se de trabalhadores rurais e domésticos, que possuíam maior capacidade adaptativa à vida urbana e industrial. Isso contribuiu para evitar o desenvolvimento do lumpemproletariado e também condicionou o crescimento de um setor secundário voltado para o processamento de produtos agrícolas. Desta maneira, a modernização do país não favoreceu a concentração do capital e dependeu sobretudo da pequena burguesia, com o desenvolvimento de uma classe trabalhadora composta basicamente de skilled labor and craft workers.

Tais características tornaram gradual o desenvolvimento econômico dinamarquês e as relações de classe no país só foram alteradas a partir dos anos 60, com a liberalização do comércio internacional, a queda dos preços de matérias-primas, a mudança na dinâmica da demanda internacional e, principalmente, o enfraquecimento da agricultura local. A seqüência do processo foi uma segunda revolução industrial que se voltou para a utilização intensiva de capital e expandiu o setor público que sustentava uma política de pleno emprego. O resultado geral dessa situação foi a existência de uma classe trabalhadora dividida.

A Noruega tem a história de sua modernização política marcada por um longo período de submissão política que durou até meados de nosso século. Além disso, seu desenvolvimento econômico lento, a forte tradição rural do país, em contraste com uma industrialização tardia, marcada pela concentração e presença do capital estrangeiro e, posteriormente, pela ação do Estado, ajudaram a tornar o conflito de classes menos relevante que a clivagem centro-periferia.

Na Suécia, a estrutura de classes desenvolveu-se até o século XX em um ambiente no qual o poder da nobreza havia sido reduzido nos séculos anteriores, em conseqüência de seu empobrecimento e da independência obtida pelo campesinato, via aliança com a monarquia. Por outro lado, essa última se assentava em um Estado absolutista poderoso, com grandes e eficientes serviços civil e militar, que ajudaram a controlar a reação da nobreza em decadência.

A participação do Estado foi central no processo de transição para o capitalismo moderno, sua ação antecipada, através de legislação social e econômica, ajudou a conter o potencial disruptivo de determinados setores da população. Além disso, a possibilidade de levantes camponeses foi contornada através da emigração e do advento de uma industrialização descentralizada, que possibilitou ao campesinato pobre assumir postos de trabalho temporários ou de meia jornada.

A característica básica do processo de industrialização sueco foi uma combinação do surgimento de uma burguesia industrial muito concentrada e poderosa, com uma grande massa de assalariados dispersa em pequenas cidades industriais: “... a industrialização sueca proletarizou os camponeses – não exatamente os trabalhadores de fazenda – e a influência sobre a velha indústria manufatureira e os artesãos foi periférica. O resultado foi uma grande força de trabalho assalariada, cujas raízes estavam no campesinato. Na Dinamarca, a agricultura familiar e a indústria da manufatura ajudaram a consolidar um Estado pequeno-burguês e liberal. Na Suécia, o oligopólio industrial da madeira e do ferro ajudou a perpetuar e reforçar um Estado central corporativo” (Esping-Andersen, 1988: 49).

Como, então, um conjunto tão diferenciado de arranjos societais, com desenvolvimentos tão diversos, conseguiu encontrar o caminho da social-democracia? A resposta tem vários aspectos. Em primeiro lugar, houve um processo gradual e suave de democratização política, no qual a consolidação do parlamentarismo e a extensão do sufrágio ocorreram nos primeiros momentos da industrialização. Não existiram ameaças à democracia na Escandinávia. Segundo, as regras constitucionais e o governo parlamentar foram protegidos, em especial, a ausência de uma classe aristocrática e de uma monarquia forte contribuiu para que houvesse um pequeno grau de repressão política. Além disso, a aliança precoce entre camponeses, farmers e trabalhadores, com apoio liberal urbano, foi ativa na defesa da democracia. Terceiro, a adoção da representação proporcional ajudou a mobilização social democrática, premiando os partidos políticos com força organizativa. Quarto, a convergência das clivagens políticas com a estrutura de classes aparece como um dos mais importantes fatores do sucesso da social-democracia. Segundo Esping-Andersen, naqueles países tal coincidência ajudou a diminuir o efeito das clivagens cross-cutting. Assim, empregadores estavam organizados nos partidos conservadores, farmers em partidos agrários liberais, pequenos proprietários em agremiações liberais radicais e a classe trabalhadora urbana aglutinou-se na social-democracia.

Um fator decisivo na explicação dos regimes de bem-estar nórdicos consiste, assim, na capacidade de auto-organização dos farmers, que viabilizou a aliança entre o campo e os trabalhadores urbanos, contribuindo para a desunião dos setores capitalistas daquelas sociedades, contrastante com a grande homogeneidade da atuação política do trabalho.

Esse foi o contexto político básico que viabilizou o regime de bem-estar social-democrata, sugerindo que, em complemento à tese de Moore [9] , não é a burguesia o único ator democrático primordial do mundo capitalista, mas também a classe trabalhadora. Em todos os países aqui mencionados, o desenvolvimento da democracia liberal, em sua inteireza, ou seja, com a universalidade do sufrágio e ativa participação dos partidos, foi influenciado pela atuação das instituições de representação daquela classe.

Sendo assim, se a presença das classes agrárias – senhores e camponeses, como diz Moore – marcam o curso dos processos de modernização, os trabalhadores urbanos são atores sociais decisivos para o processo de democratização dos seus regimes políticos, como se vê nas reformas do capitalismo decorrentes da implantação dos Welfare States.

As considerações anteriores sobre os caminhos da modernização e sobre a experiência social-democrata revelam um movimento firme dos fatores de mercado na consolidação do processo político. É preciso deixar claro, porém, que isto não significou a determinação do segundo pelos primeiros, mas, ao contrário, é possível concluir que o conjunto de coalizões, que se formou ao longo da trajetória histórica observada, foi estabelecendo em todos os países, em maior ou menor grau, a penetração do trabalho na esfera da política e do governo, acelerando a transformação da democracia política no sentido da democracia social.

Como coloca Tilly (1975b: 38), os direitos sociais não penetraram o capitalismo senão depois de grandes lutas operárias contra o poder político-burguês, interposto ao aprofundamento democrático. Isto é, o burguês-democrata de Moore modernizou a sociedade tornando-a democrática apenas para si, com a consciência de que sem o Estado, o mercado não resitiria. A classe trabalhadora logrou ampliar paulatinamente esses pequenos espaços de liberdade e de afirmação de direitos. O resultado mais expressivo dessa luta foi o regime de bem-estar social-democrata que, em certo sentido, é o “socialismo” possível. Sua crise atual pode colocar em perigo alguns dos pilares básicos das conquistas democráticas, mas essa história ainda está por ser contada.

 

Referências bibliográficas

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[1] Ainda no contexto da discussão sobre os fatores que ajudaram na consolidação dos Estados europeus, Tilly enfatiza o papel da constituição de exércitos permanentes, que possibilitaram os meios para a extração de recursos e ampliaram os instrumentos de coerção dos state-makers sobre a população do território e contra exércitos invasores. Ainda é possível encontrar uma correlação causal entre mudança e expansão do exército e esforços no sentido de extrair recursos da população e o desenvolvimento de novos métodos burocráticos e administrativos. Ver Tilly (1975b: 73).

[2] No Brasil, vários autores têm trabalhado segundo a perspectiva de Barrington Moore Jr. Ver Reis (1982) e, numa interpelação desde o marxismo, Vianna (1976).

[3] Skocpol (s/d: 27) define o Estado da seguinte maneira: “... (são) organizações administrativas e coercivas – organizações que são potencialmente autônomas em relação aos interesses e às estruturas socioeconômicas (embora sejam por certo condicionadas por tais interesses e estruturas)”.

[4] Segundo Moore, existiram cinco condições para o desenvolvimento democrático: 1) desenvolvimento de um equilíbrio para evitar uma coroa demasiado forte ou uma aristocracia proprietária demasiado independente; 2) movimento no sentido de uma forma adequada de agricultura comercial; 3) enfraquecimento da aristocracia proprietária; 4) impedimento da coligação aristocrático-burguesa contra os camponeses e operários; 5) ruptura revolucionária com o passado. Ver: Moore (1983: 423-424).

[5] Esta afirmação tem de ser considerada à luz da interpretação de Skocpol dos eventos da Revolução Francesa. Aliás, a crítica ao papel de segundo plano que Moore atribui ao Estado já estava esboçada pela autora no seu artigo crítico de análise As origens sociais da ditadura e da democracia. Ver Skocpol (1973 e s/d).

[6] Caporaso e Levine fazem uma crítica ao modo como abordam os Estados os autores que, segundo eles, possuem uma “visão transformadora” da instituição. Skocpol está incluída neste conjunto como uma das protagonistas da corrente. A crítica básica que sustentam diz respeito à incapacidade deste tipo de análise de compreender uma das tarefas fundamentais do Estado, “the work ... in setting the ideal (or ideological) underpinnings of social order” (Caporaso & Levine, 1992: 191-196).

[7] Este conceito é bastante semelhante ao de Przeworski (1989). No entanto, a idéia de mobilização é distinta e tem grande peso. Em outro texto, Esping-Andersen avança ainda mais, elaborando a noção de “regime de bem-estar”, que se refere ao conjunto de conseqüências políticas que o movimento social-democrata trouxe para o capitalismo europeu (Esping-Andersen, 1993).

[8] O conceito de ‘regime de bem-estar’ funciona como uma estruturação do complexo de características legais e organizacionais na relação entre Estados e economia. Talvez sua função primordial seja a de permitir que se compreenda o Welfare State para além da análise pura e simples de suas políticas sociais.

[9] “... podemos simplesmente registrar um forte acordo com a tese marxista de que uma classe vigorosa e independente de habitantes da cidade tem sido um elemento indispensável no desenvolvimento da democracia parlamentar. Sem burgueses não há democracia” (Moore, 1983: 412).