Estudos Sociedade e Agricultura

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Ernesto Laclau

Poder e representação*


Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 7-28.

Resumo: (Poder e representação) O presente artigo explora algumas das conseqüências teóricas e políticas do debate sobre a “condição pós-moderna”. A partir de uma caracterização da concepção moderna da política, trabalham-se as múltiplas redefinições dos conceitos de poder e representação, no contexto do reconhecimento do caráter constitutivamente incompleto de toda identidade. Defende-se que, ao invés de inverter os conteúdos da modernidade, trata-se de desconstruir o terreno que possibilita a alternativa modernidade/pós-modernidade, isto é, de reformular os valores da modernidade numa outra direção, sem a pretensão do fundamento último e objetivo da razão.

Palavras-chave: poder; representação; pós-modernidade.

Abstract: (Power and Representation) This essay explores some of the consequences for both political theory and political action of what has been called our “post-modern condition”. Starting from the characterization of some of the fundamental assumptions of the modern approach to politics, the concepts of power and representation are analysed in the context of recognition of the constitutively split character of all identity. It is argued that instead of inverting the contents of modernity, one should deconstruct the terrain that makes the alternative modernity/post-modernity possible. That is, it is a question of reformulating the values of modernity in another direction, without the assumption of an ultimate and objective rational ground.

Key words: power; representation; post-modernity.

Ernesto Laclau, é professor da Universidade de Essex, Inglaterra.


O objetivo deste ensaio é explorar algumas das conseqüências – tanto para a teoria como a ação política – do que se tem chamado nossa “condição pós-moderna”. Existe hoje um sentimento generalizado de que a exaustão das grandes narrativas da modernidade, o apagamento [blurring] das fronteiras dos espaços públicos, o funcionamento da lógica da indecidibilidade que parece estar roubando todo sentido à ação coletiva, estão levando a um recuo generalizado da esfera do político. A fim de explorar esta posição, consideraremos como ponto de partida alguns dos pressupostos mais fundamentais da concepção moderna da política.

Do ponto de vista do sentido de qualquer intervenção política significativa havia na modernidade a ampla convicção de que a política deveria ter lugar a nível do fundamento [ground] do social, isto é, de que aquela possuía os meios de efetuar uma radical transformação do social, fosse tal transformação concebida como um ato revolucionário fundante, como um conjunto ordenado de medidas burocráticas procedentes de uma elite iluminada, ou como um ato único abrindo caminho para a operação daqueles mecanismos cujo desdobramento autocrático seria suficiente para produzir um “efeito de sociedade”. Em segundo lugar, vem a questão do referencial que permite compreender conceitualmente uma tal intervenção política. Isto era oferecido pela noção de totalidade social e pela série de conexões causais que necessariamente lhe correspondia. Como já observou (Clegg, 1989), se tomarmos Maquiavel e Hobbes como dois pólos opostos da concepção moderna da política – o primeiro centrando sua análise numa teoria de cálculo estratégico no interior do social, e o segundo em mecanismos produtores da sociedade como totalidade – é a abordagem hobbesiana que constitui a linha principal da teoria política moderna.

Isto nos leva a uma terceira característica da ação política tal como concebida na idade moderna: sua representatividade radical. E não poderia ser de outra maneira: se há um fundamento do social – que é a condição de sua inteligibilidade – e se, conseqüentemente, a sociedade só pode ser vista como uma série ordenada de efeitos – isto é, como totalidade –, uma ação cujo sentido derive de tais fundamento e totalidade tem que ser totalmente autotransparente e portanto dotada de representabilidade ilimitada. Em quarto lugar, estas transparências e representabilidade tinham que ser necessariamente transferidas ao agente da transformação histórica. Um ator histórico limitado só poderia realizar uma tarefa universal na medida em que lhe fosse negado acesso ao sentido de suas ações, isto é, na medida em que sua consciência fosse “falsa”. No entanto, como Hegel e Marx bem sabiam, uma totalidade social que não possui a imagem de sua própria representação é incompleta e, conseqüentemente, de modo algum é uma totalidade social. Somente a plena reconciliação entre substância e sujeito, entre ser e saber, pode cancelar a distância entre o racional e o real. Mas, nesse caso, a representação é um momento necessário da autoconstituição da totalidade, e esta só é alcançada na medida em que a distinção entre ação e representação for abolida. Apenas um ator histórico ilimitado – uma “classe universal” – pode efetuar tal abolição. Este movimento dual, pelo qual o fundamento se torna sujeito por intermédio de uma classe universal que abole toda “alienação” das formas de representação, e pelo qual o sujeito se torna fundamento pela abolição de toda limitação externa posta pelo objeto, está no centro da visão moderna da história e da sociedade.

Estas quatro características convergem numa quinta, que poderia talvez ser considerada o verdadeiro horizonte da concepção moderna da política: uma vez que o fundamento último da política venha a se tornar inteiramente visível, o poder se torna um fenômeno puramente aparente. As razões para esta redução são claras: se um grupo social exerce o poder sobre outro, este poder vai ser experimentado pelo segundo grupo como irracional; mas se a história for, no entanto, um processo puramente racional,  a irracionalidade do poder tem que ser puramente aparente. Neste caso, ou bem a racionalidade histórica pertence ao discurso dos grupos dominantes – e as reivindicações dos oprimidos são a expressão necessária mas distorcida de uma racionalidade mais elevada que gera, como sua própria condição de possibilidade, uma zona de opacidade; ou bem os discursos dos oprimidos são os que contêm as sementes de uma racionalidade superior – em cuja situação sua plena realização envolve a eliminação de toda opacidade (e, logo, de todo poder). No primeiro caso, coerção e opacidade estão na verdade presentes; mas como o poder do grupo dominante é plenamente racional, a resistência ao poder não pode ser externa, mas interna ao poder; neste caso, a coerção e a opacidade do fato bruto da dominação só podem ser formas necessárias através das quais a racionalidade do poder se conforma. Se um sistema de dominação é racional, seu caráter repressivo só pode ser aparente. Isto nos deixa diante de apenas duas alternativas: ou o olhar do grupo dominante é inteiramente racional (em cujo caso tal grupo é um ator histórico ilimitado), ou os olhares dos grupos dominantes e dominados são parciais e limitados, em cujo caso os atributos de plena racionalidade são automaticamente transferidos ao analista histórico. A questão importante é que em ambos os casos as realidades do poder e da representabilidade da história estão em relação inversa.

Estas características distintas da modernidade estão tão profundamente entranhadas em nossas formas usuais de conceber a sociedade e a história que as tentativas recentes de pô-las em questão (aquilo que tem sido chamado, em termos muito gerais, “pós-modernidade”) têm dado lugar a uma tendência a substituí-las por sua pura ausência, por uma simples negação de seu conteúdo, a qual continua habitando o terreno intelectual delineado por aquelas características positivas. Assim, a negação de que exista um fundamento a partir do qual todos os conteúdos do social obtêm um sentido preciso pode ser facilmente transformada numa afirmação de que a sociedade é inteiramente desprovida de sentido; o questionamento da universalidade dos agentes de transformação histórica leva freqüentemente à proposição de que toda intervenção histórica é igual e inevitavelmente limitada; e a demonstração da opacidade do processo de representação é geralmente considerada equivalente à negação de que seja possível qualquer representação.

Obviamente, é fácil mostrar que, fundamentalmente, estas posturas niilistas continuam a habitar o terreno intelectual do qual tentam se distanciar. Afirmar, por exemplo, que uma coisa é desprovida de sentido é afirmar uma concepção muito clássica do sentido, apenas acrescentando que este se encontra ausente. Mas, num sentido mais importante, é possível mostrar que estas reversões aparentemente radicais só conseguem adquirir qualquer força de convicção que seja por meio de uma inconsistência claramente perceptível.  Se eu concluo – como farei adiante – que nenhuma relação pura de representação é atingível porque é da essência do processo de representação que o representante contribua para a identidade do representado, isto não pode ser transformado sem inconsistência na proposição de que “representação” é um conceito que deveria ser abandonado. Pois, neste caso, nos restariam as identidades nuas do representante e do representado como identidades auto-suficientes, o que é precisamente o pressuposto que toda a crítica da noção de representação estava pondo em questão. Da mesma maneira, a crítica da noção de “universalidade” implícita na idéia de um agente universal não pode ser transformada na afirmação de que todos os agentes são igualmente limitados, porque assim teríamos que nos perguntar: limitação em relação a quê? E a resposta só poderia ser que é em termos de uma estrutura que igualmente limita a todos os agentes e que, nesse sentido, assume o papel de uma verdadeira universalidade. Finalmente, para que algo seja radicalmente sem sentido requer-se, como sua condição de possibilidade, a presença contrastante de um sentido pleno. Ausência de sentido deriva de sentido ou, como já se disse numa afirmação exatamente idêntica: o sentido deriva do não-sentido.

Contra esses movimentos de pensamento que permanecem no terreno da modernidade pela simples inversão de seus postulados fundamentais, nós gostaríamos de sugerir uma estratégia alternativa: ao invés de inverter os conteúdos da modernidade, desconstruir o terreno que possibilita a alternativa modernidade/pós-modernidade. Isto é, ao invés de permanecer no interior de uma polarização, cujas opções são inteiramente governadas pelas categorias básicas da modernidade, mostrar que esta última não constitui um bloco essencialmente unificado, mas é o resultado sedimentado de uma série de articulações contingentes. A reativação da intuição do caráter contingente destas articulações produzirá assim uma ampliação de horizontes, na medida em que outras articulações – igualmente contingentes – também demonstrarem sua possibilidade. Isto implica, por um lado, numa nova  atitude frente à modernidade: não de ruptura radical, mas uma nova modulação de seus temas; não de abandono de seus princípios básicos, mas sua hegemonização por uma perspectiva diferente. Isto também implica, por outro lado, numa expansão do campo da política ao invés de sua retratação – um alargamento do campo da indecidibilidade estrutural que abre caminho para um aumento do campo da decisão política. É aqui que “desconstrução” e “hegemonia” mostram sua complementaridade como dois lados de uma única operação. São estes dois lados que nós temos que discutir agora.

Comecemos por referir-nos a um dos textos originários da desconstrução: a análise da relação entre sentido e conhecimento em Husserl (os lados “formalista” e “intuicionista” de sua abordagem), conforme apresentada por Derrida em A Voz e os Fenômenos, Husserl, num primeiro movimento, emancipa o sentido da necessidade de ser atingido pela intuição de um objeto. Isto é, ele liberta o sentido do conhecimento. Uma expressão como “círculo quadrado” na verdade tem um sentido: é um sentido que me permite dizer que ela se refere a um objeto impossível. Sentido e correspondência a um objeto [object-fulfillment], em conseqüência, não necessariamente exigem um ao outro. Ademais, Derrida conclui que se o sentido pode ser estritamente diferenciado do conhecimento, a essência do sentido se mostra mais claramente quando tal correspondência [fulfillment] não é atingida. Mas, num segundo movimento, Husserl rapidamente reprime as possibilidades que acabara de abrir por meio da ruptura entre conhecimento e sentido.

Em outras palavras, o sentido genuíno e verdadeiro é a vontade de dizer a verdade. Esta mudança sutil incorpora o eidos ao telos, e a linguagem ao conhecimento. Um discurso poderia muito bem estar em conformidade com sua essência enquanto discurso quando ele é falso; ele atinge, não obstante, sua enteléquia, quando é verdadeiro. É perfeitamente possível falar: “O círculo é quadrado; porém fala-se bem ao dizer que ele não é. Já existe sentido na primeira proposição, mas estaríamos errados se concluíssemos daí que o significado não aguarde a verdade. Ele não aguarda a verdade como se esperá-la; apenas, ele a precede como sua antecipação. Na verdade, o telos que anuncia o cumprimento [fulfillment], prometido para “depois”, já abriu espaço, de antemão, para o sentido enquanto relação com um objeto” (Derrida, 1973: 89).

O ponto importante aqui – o momento desconstrucionista da análise de Derrida – é que se “sentido” e “intuição do objeto” não estão mutuamente relacionados de modo teológico, então – do ponto de vista do sentido – é impossível decidir se este vai estar ou não subordinado ao conhecimento. Nesse particular, o caminho seguido por Joyce, como destaca Derrida, é bem diferente do de Husserl. Mas, se Husserl subordina o sentido ao conhecimento, e se tal subordinação não é exigida pela essência do sentido, ela só pode ser resultado se uma intervenção contingente vis-à-vis o sentido. Ela resulta daquilo que Derrida chama de uma “decisão ético-teórica” da qparte de Husserl. Podemos observar agora como o alargamento do campo da indecidibilidade estrutural introduzido pela intervenção desconstrucionista amplia, ao mesmo tempo, o terreno a ser preenchido pela decisão. Ora, uma intervenção contingente levada a efeito num terreno marcado por oposições indecidíveis [undecidable] é exatamente o que chamamos de intervenção hegemônica (Laclau e Mouffe, 1985).

Exploremos em maior detalhe esta relação de implicação mútua entre desconstrução e hegemonia. O que o ato desconstrucionista mostra não é uma separação de fato entre sentido e conhecimento, porque ambos estão intimamente ligados no texto de Husserl – na verdade, a unidade desse último resulta de uma dupla exigência segundo a qual o sentido tem que ser tanto subordinado como diferenciado do conhecimento. Assim, a intervenção desconstrucionista mostra: 1) a contingência de uma conexão; e 2) a contingência de uma conexão. O que tem uma importante conseqüência para nosso argumento. Se apenas a dimensão de contingência fosse destacada, nós teríamos meramente afirmado o caráter sintético da conexão entre duas identidades, sendo cada uma plenamente constituída em si mesma, sem necessitar de coisa alguma fora de si mesma para atingir sua plena constituição. Estaríamos no terreno da pura dispersão, que seria uma forma nova e contraditória de essencialismo, dado que: a) cada uma das identidades monádicas se definiria em e por si própria (primeiro extremo); e b) como, no entanto, a dispersão é uma forma de relacionamento entre objetos, ela requer um terreno que lhe sirva de fundamento ou condição de possibilidade (segundo extremo), em cuja situação as identidades não poderiam, afinal, ser monádicas. Então, essa conexão com algo mais é absolutamente necessária à constituição de qualquer identidade, e tal conexão tem de ser de natureza contingente. Neste caso, é da essência de uma identidade possuir relações contingentes, e a contingência torna-se, portanto, parte integrante de tal identidade.

Isto nos leva a duas conclusões. Primeiro, se uma característica essencial duma substância é possuir acidentes – ou, se o contingente é inerente ao necessário – isto quer dizer que há uma indecidibilidade inscrita em toda estrutura (entendendo-se por “estrutura” uma identidade complexa constituída por uma pluralidade de momentos). Pois a estrutura requer conexões contingentes como parte integrante de sua identidade, mas tais conexões, precisamente por serem contingentes, não podem ser logicamente derivadas de qualquer ponto no interior da estrutura. Assim, o fato de que apenas um dos caminhos possíveis seja tomado, de que apenas uma das conexões contingentes seja efetivada, é indecidível no contexto da estrutura. A “estruturalidade” da estrutura, no que ela tem de efetivação de uma série de conexões contingentes, não pode encontrar em si mesma a origem destas conexões. Daí porque, para Derrida, a decisão ético-teórica de Husserl tem que ser introduzida em cena como um elemento externo, a fim de realizar a subordinação do sentido ao conhecimento. A essa origem externa de um certo conjunto de conexões estruturais chamaremos de força (Derrida, 1967).

É exatamente neste ponto que “desconstrução” e “hegemonia” se cruzam. Pois se a “desconstrução” descobre o papel da decisão a partir da indecidibilidade da estrutura, a “hegemonia”, como teoria da decisão tomada num terreno marcado por oposições indecidíveis, requer que o caráter contingente das conexões aí existentes seja inteiramente demonstrado pela desconstrução. O conceito de “hegemonia” surgiu a fim de dar conta do caráter político das relações sociais numa arena teórica que assistira ao colapso da concepção marxista clássica de “classe dominante” – a qual era concebida como efeito necessário e imanente de uma estrutura plenamente constituída. As articulações hegemônicas foram pensadas desde o início como construções contingentes, precárias e pragmáticas. Daí porque, em Gramsci, há um grande esforço para romper a identificação entre agências hegemônicas e posições materiais objetivas no interior da estrutura. Sua noção de “vontade coletiva” tenta precisamente efetuar esta ruptura, na medida em que as vontades coletivas são concebidas como agências sociais instáveis, de fronteiras imprecisas e constantemente redefinidas, e constituídas através da articulação contingente de uma pluralidade de identidades e relações sociais. As duas características centrais de uma intervenção hegemônica são, neste sentido: 1) o caráter contingente das articulações hegemônicas; e 2) seu caráter constitutivo, no sentido de que elas instituem relações sociais de forma primária, não dependente de qualquer racionalidade social a priori.

Isto traz, no entanto, dois problemas. O primeiro se refere à instância externa que toma a decisão. Não se trataria da reintrodução de um novo essencialismo via o sujeito? Não seria isto substituir uma clausura [closure] objetiva da estrutura por uma clausura subjetiva através da intervenção do agente? O segundo problema tem a ver com as condições de visibilidade da contingência da estrutura. Por razões que se verá adiante, estes dois problemas, neste momento, têm que ser enfrentados sucessivamente, na ordem em que acabamos de apresentá-los.

No que tange ao primeiro ponto, é óbvio que a questão não pode ser resolvida com base na simples afirmação de que o truque é realizado por um sujeito que rearticula em torno de seu projeto os elementos dispersos de uma estrutura deslocada [1] . Existe, de fato, uma relação muito mais complexa entre sujeito e estrutura do que sugere esta versão simplista do que está em jogo numa articulação hegemônica. Porque a pergunta óbvia é: quem é o sujeito e em que terreno ele se constitui? Se quisermos evitar soluções fáceis, do tipo Deus ex machina, é preciso responder esta pergunta. Ora, uma primeira resposta viria em termos de um marxismo moderado e “iluminista”: há um terreno primário no qual se constituem as agências sociais – as relações de produção – e um terreno secundário onde operam os elementos dispersos a serem hegemonizados. Deste modo, estamos no melhor de ambos os mundos: podemos afirmar o papel integral da agência na realização do trabalho de articulação, sem cairmos em qualquer subjetivismo demodé; e podemos manter a noção de um agente fundamental de mudança histórica, sem renunciar à rica e multiforme variedade da vida social; podemos soltar as rédeas do intrigante jogo da contingência histórica, sabendo que nós temos os meios disciplinares para puxá-las de volta – “em última instância” – ao duro mundo das restrições estruturais. Que mundinho lindo e bem arrumado.

As desvantagens desse quadro é, naturalmente, que qualquer que seja a validade da separação entre os dois níveis, teremos, então, que explicitar a totalidade em cujo interior tal separação tem lugar; se tal totalidade de existir, não é possível se ter verdadeira contingência. Pois se os limites do contingente são necessários, eles serão parte integrante da identidade contingente. Contrariamente, como os limites necessários são limites de contingência variável, a presença de tal variação é absolutamente necessária à existência dos limites e, neste caso, como já dissemos, a contingência se torna necessária. Esta impureza essencial pela qual o necessário e o contingente se contaminam reciprocamente constitui o terreno de uma indecidibilidade ontológica irredutível. O mundo é, afinal de contas, mais desordenado e imprevisível do que os modelitos bem feitinhos de nosso marxista bon pensant.

Então embaralhemos as cartas e comecemos o jogo de novo. O sujeito hegemônico não pode se constituir num terreno diferente do da estrutura ao qual ele pertence. Mas se, entretanto, o sujeito for uma mera posição de sujeito no interior da estrutura, esta seria inteiramente fechada e não haveria contingência alguma – nem qualquer necessidade de hegemonizar o que quer que seja. Os termos do nosso problema são os seguintes: a) hegemonia significa articulação contingente; b) contingência significa externalidade da força articuladora em relação aos elementos articulados; e c) tal externalidade não pode ser pensada como uma separação efetiva de níveis no interior de uma totalidade plenamente constituída, ou não seria externalidade nehuma. Então, como pensar uma externalidade que emerge no interior da estrutura sem ser resultado de uma diferenciação positiva de seus níveis constitutivos? Isto só é possível se a estrutura não estiver inteiramente reconciliada consigo mesma, se ela for habitada por uma falta [2] original, por uma indecidibilidade radical que demande uma constante superação por meio de atos de decisão. São estes atos, precisamente, que constituem o sujeito, o qual só pode existir como vontade transcendente à estrutura. Ora, como não existe nenhum lugar externo à estrutura para a constituição dessa vontade, a qual antes resulta da incapacidade da estrutura de se autoconstituir, ela só pode ser formada através de atos de identificação. Se eu preciso me identificar com alguma coisa, é porque, para começar, eu não tenho uma identidade plena. Estes atos de identificação só podem ser pensados como resultado da falta no interior da estrutura, e mostram o traço permanente dessa última. Assim se mostra a contingência: como a distância inerente da estrutura em relação a si mesma. (Esta é, de fato, a matriz de toda visibilidade e de toda representação: sem esta distância nenhuma visão seria possível).

Isso nos leva ao nosso segundo problema: quais são as condições de visibilidade da contingência da estrutura? Parte dessa questão já foi na realidade respondida: na medida em que nenhum conteúdo específico está predeterminando a preencher o vazio estrutural, é o conflito entre vários conteúdos tentando desempenhar esse papel de preenchimento que vai tornar visível a contingência da estrutura. O que, porém, nos traz outra conseqüência, da maior importância para nosso argumento. A visibilidade do caráter contingente do conteúdo que arremata a estrutura exige que tal conteúdo seja visto como indiferente ao vazio estrutural e, nesse sentido, como equivalente a outros conteúdos possíveis. Isto significa que a relação entre o conteúdo concreto e seu papel de preenchimento do vazio interno à estrutura é puramente externa. É aí, precisamente, que se encontra a contingência. Mas, nesse caso, o conteúdo concreto que preenche o vazio será constitutivamente dividido: por um lado, ele será seu próprio conteúdo literal; por outro – na medida em que desempenha uma função contingente vis-à-vis esse conteúdo literal – ele representará uma função geral de preenchimento que é independente de qualquer conteúdo particular.

Esta segunda função é o que, num outro texto (1990), chamei de forma geral da plenitude. Assim, a resposta completa ao nosso segundo problema seria: a condição de visibilidade da contingência da estrutura é a visibilidade do espaço vazio entre a forma geral da plenitude e o conteúdo concreto que encarna esta forma. Numa situação de grande desordem, a necessidade de uma ordem se torna mais premente do que o seu conteúdo; e quanto mais generalizada for a desordem, maior será a distância entre essas duas dimensões e mais indiferentes as pessoas serão quanto ao conteúdo concreto das formas políticas que trouxerem as coisas de volta a uma certa normalidade. É isto que diferencia nossa abordagem da falta inerente a todas as formas sociais de uma transição dialética. Para esta última, também não há possibilidade alguma de qualquer conteúdo permanecer sendo ele mesmo. Mas a marcha em direção contrária a esta impossibilidade procede através da negação determinada, isto é, a falta prenuncia as formas concretas de seu próprio preenchimento. Nenhuma contingência está implicada neste processo.

Podemos agora retirar algumas conclusões gerais a respeito desta divisão. É fácil perceber que, no caso de se atingir um fechamento total da estrutura, a divisão seria superada, porque então a forma geral da plenitude seria imanente à estrutura e seria impossível diferenciá-la do seu conteúdo concreto-literal. Somente se a plenitude for percebida como aquilo que falta à estrutura, é que a forma geral e o conteúdo concreto poderão ser diferenciados. Neste caso, nos restaria aparentemente uma simples dualidade na qual teríamos, por um lado, a estrutura (parcialmente des-estruturada) e, por outro, as várias – e, como vimos, parcialmente equivalentes – tentativas de preencher os vazios estruturais, de introduzir novos discursos e práticas reestruturantes.

Há, no entanto, um truque nesta forma de apresentar a questão, que oculta algo essencialmente importante. Consideremos o problema com atenção. Tudo depende do status desse conceito de “equivalência” que introduzimos para caracterizar uma das dimensões da relação entre os vários discursos que tentam preencher o vazio estrutural. Qual é a condição de possibilidade de tal equivalência? Tomemos o exemplo de pessoas que vivem próximo a uma catarata . Elas passam toda a vida a ouvir o ruído da queda d’água, isto é, esta está permanentemente como pano de fundo do qual as pessoas estão normalmente inconscientes. Assim, elas não escutam de fato o barulho. Mas, se um dia, por qualquer razão, a água de repente parar de jorrar, as pessoas começarão a ouvir o que estritamente falando não pode ser ouvido: o silêncio. É a falta de algo que, assim, assume plena presença. Ora, suponhamos que esse silêncio seja intermitentemente interrompido por ruídos de diferentes procedências, que a queda d’água antes tornava inaudíveis. Todos esses ruídos terão uma identidade dividida: por um lado, eles são ruídos específicos; e por outro, terão a identidade equivalente de romper o silêncio. Os ruídos só são equivalentes por causa do silêncio; mas o silêncio só é audível como ausência de uma plenitude prévia.

Este exemplo, não obstante, perde uma dimensão da falta num âmbito comunitário: esta é vivida como privação, enquanto me é perfeitamente possível ser indiferente à presença ou à ausência do ruído da catarata. Daí porque a falta social será vivida como desordem, como desorganização, e haverá tentativas de superá-la via identificações. Mas se as relações sociais são relações discursivas, relações simbólicas que se constituem através de processos de significação, o fracasso de tal processo de constituição, a presença de uma falta no interior da estrutura tem que ser, ela própria, significada. De modo que a questão é: existem formas discursivas específicas da presença da falta? Possui esta divisão entre conteúdo concreto e forma geral da plenitude modos específicos de se mostrar? A resposta é sim, e eu diria que a forma geral da plenitude se mostra por meio da presença discursiva de significantes constitutivamente flutuantes, isto é, que não resultam de ambigüidades contingentes de sentido, mas da necessidade de significar a falta (a plenitude ausente no interior da estrutura). Suponhamos um discurso político que afirme que “o Partido Trabalhista tem mais condições de assegurar a unidade do povo britânico do que o Conservador”. Numa proposição desta, bastante comum no debate político, nós temos uma entidade – “a unidade do povo britânico” – que é qualitativamente diferente das outras duas, os Trabalhistas e os Tories. Primeiramente, essa unidade é algo a ser atingido, de forma que, ao contrário das outras duas entidades, ela não existe efetivamente, mas é o nome de uma plenitude ausente. Mas em segundo lugar, o tipo de unidade política que os Trabalhistas e os Tories criariam seria substancialmente diferente, de modo que se o termo “unidade” significar uma entidade concreta no mesmo nível das duas forças políticas, a proposição seria quase tautológica – ela seria equivalente a “o Partido Trabalhista tem mais condições de assegurar um tipo de unidade trabalhista ao povo britânico do que os conservadores”. Mas é óbvio que a proposição original não quer dizer isto. Assim, por um lado, as várias forças políticas provêem o conteúdo concreto da “unidade”, sem o qual esta não poderá existir, mas por outro lado tal unidade não se esgotará totalmente em quaisquer destes conteúdos concretos alternativos. “Unidade” é um significante flutuante porque seus significados só são fixados pelos conteúdos concretos dados pelas forças antagônicas; mas ao mesmo tempo esta flutuação não é puramente contingente e circunstancial, porque sem ela o debate político seria impossível e a vida política seria um diálogo de surdos, no qual só teríamos proposições incomensuráveis. A divisão básica a que fizemos referência antes encontra a forma de sua presença discursiva através desta produção de significantes vazios que representam a forma geral da plenitude. Em outro ensaio (1991) demonstrei que se uma expressão do tipo “os fascistas conseguiram realizar a revolução de que os comunistas não foram capazes” fez sentido na Itália dos anos 20, isto se deve ao significante “revolução” ser vazio, representando o sentimento das pessoas de que a velha ordem oriunda do Risorgimento tornara-se obsoleta e que era preciso a refundação radical do estado italiano.

 

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Os desenvolvimentos anteriores nos dão alguns elementos para responder nossa questão inicial: como transcender o horizonte histórico da modernidade sem cair na armadilha de uma alternativa exclusiva do tipo modernidade versus pós-modernidade, em que o caráter puramente negativo do conteúdo do segundo pólo significa que os conteúdos do primeiro continuarão dominando sem contestação? Como ir além de um niilismo cuja própria lógica reproduz, precisamente, aquilo que pretende questionar? Nossa posição é que: 1) é a indecidibilidade estrutural discutida acima, quando aceita em todas as suas implicações radicais, que possibilita ir além tanto da modernidade quanto de seu reverso niilista; e 2) este ir-além-da-modernidade não consiste num abandono de todos os seus conteúdos, e sim na perda de sua dimensão de horizonte (um conceito que precisamos explicar). Discutiremos o primeiro ponto em relação ao funcionamento da lógica da representação e do poder nas sociedades contemporâneas, e passaremos em seguida à questão da crise do horizonte básico da modernidade.

Primeiro a questão da representação. O que está envolvido no processo de representação? Essencialmente a fictio iuris de que alguém está presente num lugar do qual está materialmente ausente. A representação é o processo pelo qual outrem – o representante – “substitui” e ao mesmo tempo “encarna” o representado. As condições de uma perfeita representação seriam atingidas, aparentemente, quando ela fosse um processo direto de transferência da vontade do representado, quando o ato de representação desse perfeita transparência àquela vontade. Isto pressupõe que a vontade esteja inteiramente constituída e que o papel do representante se esgote em sua função de intermediação. Desta forma, a opacidade inerente a qualquer “substituição” e “encarnação” tem que ser reduzida ao mínimo – o corpo no qual a encarnação tem lugar tem que ser quase invisível. É aqui, no entanto, que começam as dificuldades. Porque não existem condições de perfeita representabilidade, nem do lado do representante nem do representado – e isto não se deve ao empiricamente possível, mas à própria lógica do processo de representação. No que se refere ao representado, se ele precisa ser representado é por conta do fato de que sua identidade básica é constituída num lugar A, enquanto as decisões que podem afetá-la vão ocorrer num lugar B.  Mas neste caso sua identidade é incompleta e a relação de representação, longe de ser uma identidade plenamente desenvolvida, é um suplemento necessário à sua constituição.

O problema crucial é saber se este suplemento pode ser simplesmente deduzido do lugar A, onde a identidade original do representado se constituiu, ou se ele é uma adição inteiramente nova, em cujo caso a identidade do representado é transformada e ampliada pelo processo de representação. Achamos que este último é sempre o que ocorre. Tomemos um exemplo simples, onde a contribuição do representante para constituição do “interesse” do representado é aparentemente mínima: um deputado federal, representando um grupo de agricultores cujo interesse mais importante é a defesa dos preços dos produtos agrícolas. Mesmo neste caso o papel do representante excede em muito a simples transferência de um interesse pré-constituído. Pois o terreno em que esse interesse tem que ser representado é o da política nacional, onde muitas outras coisas estão acontecendo, e mesmo algo aparentemente tão simples como a proteção dos preços agrícolas exige processos de negociação e articulação como todo um conjunto de forças e de problemas que excedem em muito o que é pensável e dedutível a partir do lugar A.  Assim, o que o representante faz é inscrever um interesse numa realidade complexa, diferente daquela na qual aqueles foi originalmente formulado, e assim fazendo ele constrói e transforma tal interesse. Mas, desta maneira, o representante também está transformando a identidade do representado. O vazio original na identidade do representado, que exigia ser preenchido por um suplemento através do processo de representação, abre um movimento de indecidibilidade, constitutivo e irredutível, em duas direções. Existe uma opacidade, uma impureza essencial, no processo de representação, que é ao mesmo tempo sua condição de possibilidade e impossibilidade. O “corpo” do representante não pode ser ignorado, por motivos essenciais. Uma situação de plena transferência e responsabilidade [accountability], num contexto de transparência, não implicaria em representação nenhuma.

Desta forma a idéia de perfeita representação envolve uma impossibilidade lógica; mas isto não significa que a representação seja inteiramente impossível. A questão é, antes, que “representação” é o nome de um jogo indecidível que organiza uma variedade de relações sociais, mas cujo funcionamento não pode ser fixado num mecanismo racionalmente concebível e, em última instância, unívoco. A noção de “representação” tem sido criticada com freqüência na teoria democrática pelas dificuldades que ela oferece a um tipo de responsabilização [accountability] considerado essencial numa sociedade democrática. Mas a maioria das versões desta crítica é mal fundamentada. Identificar o perigo apenas na possibilidade de que a vontade das bases seja ignorada ou traída pelo seu representante é uma visão unilateral. Existem, naturalmente, muitos casos em que tal vontade é ignorada e muitos casos de distorção sistemática. No entanto, o que tal crítica não leva em conta é o papel do representante na constituição daquela vontade. Se, como dissemos, o que exige ser reparada pelo processo de representação é a existência de um vazio na identidade do representado, simplesmente não é verdade que a redução dos espaços sociais em que operam mecanismos representativos levará necessariamente a sociedades mais democraticamente geridas. Vivemos em sociedade onde é cada vez menos possível se referir a um nível único ou primário no qual a identidade básica dos agentes sociais se constituiria. Isto quer dizer que, por um lado, os agentes sociais estão se tornando cada vez mais “subjetividades múltiplas”, com identidades frouxamente integradas e instáveis; por outro lado, há uma proliferação de pontos na sociedade em que se tomarão decisões que afetarão suas vidas. Conseqüentemente, a necessidade de “preencher os vazios” não mais representa um “suplemento” a ser acrescentado a um espaço fundamental de constituição da identidade do agente, mas se torna um terreno primário. O papel constitutivo da representação na constituição da vontade, que esteve parcialmente oculto em sociedades mais estáveis, torna-se agora inteiramente perceptível. O nível da política nacional, por exemplo, pode operar como o lugar em que os discursos dos representantes propõem formas de articulação e unidade entre identidades que estariam de outra maneira fragmentadas. O que quer dizer que não podemos escapar ao referencial dos processos representativos e que as alternativas democráticas têm que ser construídas pela multiplicação dos pontos a partir de e em torno dos quais opera a representação, ao invés de se tentar limitar seu escopo e espaço de funcionamento.

Vimos acima o que está em jogo numa situação onde o discurso do representante precisa preencher o vazio de identidade do representado: esse discurso terá o duplo papel a que nos referimos anteriormente, o de ser uma forma específica de preenchimento e o de simbolizar a função de preenchimento. Mas isto significa que o vazio entre os dois termos desta dualidade aumentará necessariamente nas sociedades atuais, e que o papel dos “representantes” será ainda mais central e constitutivo. Será que esta situação é tão ruim quanto se pensa? Estaríamos nos distanciando cada vez mais, por meio desse vazio crescente, da possibilidade de criar sociedades geridas democraticamente? Eu acho que não. Trata-se antes da situação inversa. Num contexto em que o conteúdo concreto e a forma geral da plenitude não podem ser diferenciados, isto é, num universo fechado que não requer qualquer representação, não há possibilidade alguma de competição democrática. A transparência de uma identidade plenamente realizada seria a origem automática de todas as decisões. Este é o mundo dos heróis homéricos. Mas se há um vazio na identidade dos atores sociais, seu preenchimento produzirá necessariamente uma divisão entre conteúdo de preenchimento e função de preenchimento, e como esta não está necessariamente associada a qualquer conteúdo, haverá competição entre os vários conteúdos pela encarnação da própria forma da plenitude.

Uma sociedade democrática não é aquela em que o “melhor” conteúdo domina sem contestação, mas aquela em que nada é alcançado de uma vez por todas e há sempre a possibilidade de questionamento. Se pensarmos, por exemplo, na ressurgência do nacionalismo e de todo tipo de identidades étnicas na Europa oriental de hoje, poderemos observar facilmente que o perigo para a democracia está no fechamento destes grupos em torno de identidades totalmente constituídas, o que só contribui para reforçar suas tendências mais reacionárias e criar condições de permanente confronto com outros grupos. Pelo contrário, é a integração de tais nações em conjuntos mais amplos – como a CE [Comunidade Européia] – que pode criar as bases de um desenvolvimento democrático, que requer a divisão de si mesmo, a necessidade de ser representado fora de si mesmo a fim de se adquirir personalidade própria. Só existe democracia se houver o reconhecimento do valor positivo de uma identidade deslocada. O termo “hidridização”, acertadamente sugerido por Homi Bhabha e outros, se aplica plenamente aqui. No caso, porém, a condição para uma sociedade democrática é sua incompletude constitutiva, que envolve, obviamente, a impossibilidade de uma fundamentação racional última. Podemos dizer que se trata de uma desfundamentação que escapa à perversa e estéril dicotomia modernidade/ niilismo: ela não nos confronta com a alternativa presença/ausência de um fundamento, mas com a busca interminável de algo que dê um valor positivo a sua própria impossibilidade. Gayatri Spivak sugeriu um “essencialismo estratégico”. Embora particularmente não goste da fórmula, eu acho que ela tende, de alguma maneira, a ir na mesma direção desta lógica da indecidibilidade cujos contornos estou tentando definir.

Se nos referirmos ao poder, encontramos a mesma situação. A noção tradicional de uma sociedade emancipada é a de uma sociedade inteiramente racional, da qual se extirpou inteiramente o poder. Mas, como nós vimos, o poder tem que ser puramente aparente para a concepção racionalista da sociedade na qual se baseia a noção de emancipação. Ora, isto nos coloca frente a uma antinomia. Se a emancipação for realmente possível, isto é, se ela tiver um status ontológico e não apenas for o conteúdo vivido da falsa consciência das pessoas, o poder também tem que ser real. Mas se o poder for real, a relação entre poder e aquilo que dele se emancipa tem que ser uma relação de exterioridade radical – de outra forma, não haveria um vínculo racional que ligaria poder a emancipação e esta não seria verdadeira. A dificuldade está no fato de que uma relação de exterioridade radical entre duas forças é uma relação contingente, e conseqüentemente, se a emancipação eliminar o poder através de um processo contingente de luta, ela própria tem que se tornar poder. Não se poderia dizer, no entanto, que no momento em que a emancipação tiver destruído o poder, ela terá o poder, ela terá deixado de ser poder? Não, porque transparência e racionalidade plenas não podem provir logicamente da opacidade inerente a um ato contingente de poder. Somente se a derrubada do poder fosse expressão de uma racionalidade superior, que a tivesse transformado num passo necessário, é que a emancipação seria totalmente racional. Mas, então, como já vimos, ela deixaria de ser emancipação. Assim, a própria condição para a emancipação – sua ruptura radical com o poder – é que a torna impossível, porque a torna indiferenciável do poder.  A conclusão, entretanto, não é o niilismo de que a emancipação é impossível e que permanece apenas o poder, porque nós afirmamos que o poder é a própria condição para a emancipação. Se toda emancipação tem que se constituir enquanto poder, vai haver uma pluralidade de poderes e, em decorrência disto, uma pluraridade de emancipações contingentes e parciais. Estamos aqui na situação maquiaveliana de uma pluralidade de lutas no interior do social, e não num ato de refundação radical que se tornaria a origem do social. O que é afastada é a idéia logicamente impossível de uma dicotomia radical que toma emancipação como sinônimo de eliminação do poder.

Chegamos assim ao último ponto. O que estamos presenciando em nossa experiência contemporânea é o fim da modernidade como horizonte, mas não necessariamente dos objetivos e demandas específicos que deram forma a seus conteúdos. Chamamos “horizonte” àquilo que estabelece simultaneamente os limites e o terreno de constituição de todo objeto possível e, como resultado, impossibilita qualquer coisa além de si. “Razão”, para o iluminismo; “progresso”, para o positivismo; “sociedade comunista”, para o marxismo não são nomes de objetos no contexto de um certo horizonte, mas do próprio horizonte. Neste sentido, os elementos básicos da concepção moderna da política que destacamos no início estão firmemente enraizados nas principais dimensões da modernidade, concebida como horizonte fundamental. Ora, generalizando as principais conclusões de nosso argumento, poderíamos dizer que a crise deste horizonte – para a qual muitos têm chamado a atenção – longe de nos levar a uma implosão generalizada do social e a um recuo da participação nas esferas públicas, cria, ao invés, pela primeira vez, a possibilidade de uma concepção radicalmente política da sociedade. Voltemos rapidamente às cinco características iniciais e vejamos de que maneira a virada “pós-moderna” ajuda a libertar a política de seus limitantes laços modernos.

Transformação radical, em primeiro lugar. Se esta transformação for concebida como tendo lugar ao nível de um fundamento racionalmente compreensível do social, ela será obra da razão, não nossa. Uma racionalidade que nos transcende determina inteiramente o que vai acontecer e nossa única liberdade possível é ter consciência da necessidade. É desta maneira que uma classe universal só pode ser um ator histórico ilimitado, que abole a dualidade sujeito/objeto. Mas, se não há nenhum fundamento do social, toda intervenção histórica será obra de agentes históricos limitados. Tal limitação, no entanto, é mais do que compensada por uma nova liberdade, adquirida pelos agentes sociais na medida em que se tornam os criadores de seu próprio mundo. Como resultado, a noção de “transformação radical” é deslocada: seu caráter radical é dado pela sobredeterminação de mudanças parciais por ela implicadas, e não por seu funcionamento ao nível de um fundamento básico. Isto explica por quê a segunda e a quarta características que tínhamos detectado na concepção moderna da política também são deslocadas. A categoria “totalidade social” não pode ser certamente abandonada porque, na medida em que toda a ação social tem lugar num terreno sobredeterminado, esta “totaliza” de alguma forma a relações sociais; contudo, “totalidade” torna-se agora o nome de um horizonte e não mais de um fundamento. Pela mesma razão, os atores sociais tentam superar suas limitações, mas como a noção de um ator histórico ilimitado foi abandonada, esta superação só pode ser o processo pragmática de construção de identidades sociais altamente sobredeterminadas.

Que dizer do conceito de representabilidade? É claro que se não há qualquer fundamento racional último do social, é impossível se obter uma total representabilidade. Mas aí também não poderíamos falar de representações “parciais” que fossem, dentro de seus limites, “imagens” mais ou menos adequadas do mundo. Se o terreno do fundamento for ocupado por uma contingência radical, todo sentido social será uma construção social e não um reflexo intelectual do que sejam as coisas “em si mesmas”. Portanto, nesta “guerra de interpretações”, o poder. Longe de ser meramente aparente, se torna constitutivo da objetividade social.

Três conclusões se seguem. A primeira é que a política, longe de ser uma superestrutura, ocupa o papel daquilo que poderíamos chamar de “ontologia do social”. Se a política é o conjunto das decisões tomadas num terreno marcado por oposições indecidíveis, isto é, num terreno em que o poder é constitutivo, o social só pode consistir em formas sedimentadas de um poder que borrou os traços de sua própria contingência. A segunda conclusão é que se a passagem da modernidade à pós-modernidade ocorrer ao nível de seus horizontes sociais e intelectuais, tal movimento não implicará necessariamente no colapso de todos os objetos e valores contidos no horizonte da modernidade, mas, ao contrário, na sua reformulação desde uma perspectiva diferente. Os valores universais do iluminismo, por exemplo, não tem que ser abandonados, mas apresentados como construções sociais pragmáticas, e não como expressões de uma exigência necessária da razão. Finalmente, as reflexões anteriores mostram em que direção deveria seguir a construção de um imaginário pós-moderno: a de mostrar os valores comunitários positivos que são oriundos da limitação dos agentes históricos, da contingência das relações sociais e daqueles arranjos políticos pelos quais a sociedade organiza a gestão de sua própria impossibilidade.

 

Referências bibliográfica:

Clegg, Stewart. Frameworks of Power. Londres: Sage, 1989.

Derrida, Jacques. Force et signification. In: L’ecriture et la différence. Paris. Ed. Du Seuil. 1967.

____________. Speech and Phenomena and other essays on Husserl’s Theory of Signs. Evanston: Northwestern University, 1973, p. 89.

Laclau, Ernesto e Mouffe, Chantal. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. Londres: Verso, 1985.

Laclau, Ernesto. New Reflections on the Revolution of Our Time. In: New Reflections on the Revolution of Our Time. Londres: Verso, 1990.

___________. Community and Its Paradoxes: Richard Rorty’s ‘Liberal Utopia’. In: Miami Theory Collective (ed.), Community at Loose Ends. Minneapolis: Minnesota University, 1991.

 

Notas

* Traduzido por Joanildo A. Burity, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco.

[1] Nota do tradutor. O termo “deslocada” alude aqui a, pelo menos, um duplo traço da “estruturalidade” da estrutura: em primeiro lugar, por se constituir sempre em relação a um outro, a algo que lhe é externo e face ao que sua identidade se define (um “exterior constitutivo”, como define Derrida), toda estrutura (isto é, todo sistema de diferenças articuladas) é irremediavelmente cindida, descentrada, por mais coesa, coerente e poderosa que possa parecer. A possibilidade de ser deslocada, isto é, confrontada com aquilo que lhe escapa, que ela não pode (ou não quer) incorporar – senão sufocar, esquecer, eliminar-se coloca, portanto, em cada nova “irrupção” do exterior constitutivo, sem o qual nenhuma estrutura possuiria seu efeito de unidade e identidade (o qual não deve ser buscado num único “outro”, claramente definível empiricamente). Em segundo lugar, uma estrutura é deslocada quando a maneira pela qual seus elementos integrantes foram articulados é questionada, problematizada ou inviabilizada; quando sua contingência, ou historicidade irredutível, é revelada. Assim deslocada, novamente des-centrada ou ex-cêntrica tal estrutura, seus elementos se prestam a outras formas de articulação, a outras intervenções hegemonizantes, que tendem ou podem levá-la a uma transformação, a uma nova formação hegemônica.

[2] Nota do tradutor. O termo tem origem na psicanálise lacaniana, e indica a divisão fundamental que ao mesmo tempo possibilita a identificação do sujeito e a torna impossível de se totalizar, de governar todo o território de sua própria identidade. Sua utilização chama a atenção para a simultaneidade de vários sentidos: o de uma falha ou fissura geológico, o de um hiato entre a idéia de totalidade (ou identidade) e suas “encarnações” concretas e o de um vazio estrutural (e intolerável) que precisa ser preenchido por algum princípio ou conteúdo determinado. É importante manter-se esta múltipla referência sempre em mente.