Estudos Sociedade e Agricultura

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José Luis Petruccelli

Doutrinas francesas e o pensamento racial brasileiro, 1870-1930


Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 134-149.

Resumo: (Doutrinas francesas e o pensamento racial brasileiro – 1870–1930). No final do século XIX, os intelectuais brasileiros, inspirados pela noção européia da desigualdade humana, viam a heterogeneidade racial como um obstáculo potencial à construção da identidade nacional. A maioria deles adotou a doutrina do embranquecimento como uma solução possível para remover esse tipo de entrave ao desenvolvimento do país. Eles propunham também a imigração caucasiana e desestimulavam fortemente a importação de trabalhadores asiáticos. Neste artigo, são analisadas as influências de Comte de Gobineau; Louis Couty e Vacher de Lapouge nos pensadores brasileiros.

Palavras-chaves: raça; identidade nacional; pensamento social brasileiro.

Abstract: (French doctrines and Brazilian racial thought – 1870–1930). By the end of the XIXth century, intellectuals in Brazil were concerned about racial heterogeneity as a potential obstacle to the construction of national identity. Dominated by European thought of human inequality, most intellectuals supported the doctrine of the whitening of the population: blacks and pardos being perceived as a constraint to the development possibilities of the country, miscegenation was encouraged as a close by solution. “Caucasian” immigrations was also stimulated as strongly asian worker importation was opposed. The influence of the Comte de Gobineau, Couty and Lapouge are analyzed, together with the ideas of different Brazilian thinkers of the time.

Key words: racial theories; social thought in Brazil; national identity

José Luis Petruccelli é analista especializado da Fundação IBGE.


Arthur de Gobineau e Louis Couty no Brasil

É inegável a influência exercida pelas teorias e doutrinas raciais européias do final do século XIX nos intelectuais do país. O pensamento brasileiro expressava, à época, uma preocupação sistemática com a origem multiétnica do povo brasileiro, percebida como fonte de contradições sociais e obstáculo à construção de uma identidade nacional. A sociedade oitocentista do Brasil, baseada no escravismo e na superposição do sistema de dominação social sobre a hierarquia de relações inter-raciais, constituía um campo bem propício a estas influências. Gobineau, Le Bon, Vacher de Lapouge, entre outros, fizeram assim escola no país.

O autor do Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas, publicado em 1854 e de enorme repercussão européia, o conde de Gobineau, foi designado como ministro plenipotenciário de França perante a corte do Brasil, na embaixada do Rio de Janeiro, a 19 de junho de 1868. Ele tentou evitar esta nomeação, mas foi obrigado a aceitá-la, apesar de suas prevenções. Seu descontentamento decorria, em primeiro lugar, da separação forçada de Paris e de sua família a que esta nomeação o obrigava e, em segundo lugar, das idéias e sentimentos que ele abrigava há muito tempo em relação a qualquer tipo de população mestiça. Uma tal população constituía, para ele, um povo degenerado “desde que não conserva, nas suas veias, o mesmo sangue original que sucessivas misturas fizeram, gradualmente, modificar seu valor; em outras palavras... não tem conservado a mesma raça que seus fundadores” (Gobineau, 1940, tomo I: 24).

De todas formas, Gobineau chegou à capital do Brasil a 20 de março de 1869. Na sua primeira carta ao ministro francês de assuntos estrangeiros ele relata: “À noite (no mesmo dia da sua chegada), o ministro de Relações Exteriores me avisou que o imperador desejava me ver no dia seguinte, em audiência privada, em traje de rua e antes de apresentar minhas credenciais oficiais. Eu expressei a Sua Majestade Imperial todo o reconhecimento do qual estava penetrado, por um favor que me disseram ser inusitado nesta corte” (Raymond, 1990: 75). Esse foi o início de uma amizade com Dom Pedro II que iria se prolongar até bem depois de sua partida do Brasil. Mas seria, por outro lado, sua única ligação com o país: Gobineau desprezava seus colegas do corpo diplomático de outras nacionalidades e se limitou às estritas relações oficiais com os do país.

Se o representante francês tem sido considerado como o pai das teorias racistas, também foi assinalado que, para ele, a desigualdade das raças humanas não era uma questão absoluta mas um fenômeno ligado à miscigenação (Lévy-Strauss, 1952: 10). No entanto, em mais de um lugar encontramos referências a esta inferioridade, se bem que, algumas vezes, ligada efetivamente à miscigenação. “Se admitimos que um número muito importante de seres humanos tem estado, e estará para sempre, impossibilitado de realizar mesmo um primeiro passo na direção da civilização” e se estes povos estão dispersos sobre toda a face da terra, “estamos induzidos a concluir que uma parte da humanidade é, nela mesma, impotente para jamais se civilizar... porque ela é incapaz de vencer as repugnâncias naturais que o homem, como os animais, experimenta contra o cruzamento” (Gobineau, 1940, tomo I: 26).

Mas o comentário nuancé de C. Lévy-Strauss pode também ser confrontado com um dos críticos de Gobineau, J. Finot, quem já em 1905 afirmava: “Sua obra, que constitui um hino entusiasta a favor das raças ditas superiores e uma condenação impiedosa das ditas inferiores, encerra um verdadeiro arsenal de argumentos onde tem ido se inspirar todos os campeões da persecução, da opressão e da exterminação de povos e raças mais fracos” (Finot, 1921: 15).

Por outro lado, na conclusão geral do seu Ensaio, Gobineau afirma categoricamente: “As duas variedades da nossa espécie, a raça negra e a raça amarela, são o fundo grosseiro, o algodão e a lã, que as famílias secundárias da raça branca amolecem, nele misturando a sua seda, enquanto que o grupo ariano, fazendo circular suas redes mais finas a traves de gerações enobrecidas, aplica na superfície, em um deslumbrante chef-d’oeuvre, seus arabescos de prata e de ouro” (Gobineau, 1940, tomo II: 539).

No entanto, Gobineau chega a admitir que “a imensa superioridade dos brancos, no domínio da inteligência, se associa a uma forte inferioridade não menos marcada na intensidade das sensações. O branco é muito menos dotado que o negro e o amarelo no que diz respeito à sensualidade”, e até que “seria inexato pretender que todas as misturas sejam ruins e daninhas” (Gobineau, 1940, tomo I: 217), desde que “o gênio artístico, igualmente estranho aos três grandes tipos, não tem surgido senão como conseqüência do himeneu dos brancos com os negros”. Mas se este caminho tem conduzido a melhorar as raças inferiores, de acordo com o autor, “lamentavelmente as maiores, na mesma hora, foram rebaixadas” (Gobineau, 1940, tomo I: 218).

A sua opinião dos brasileiros corresponde exatamente com seus preconceitos e se manifesta até na sua correspondência diplomática: “É preciso confessá-lo: a maior parte do que se conhece como brasileiros se compõe de sangue misturado, mulatos quarterons, caboclos de graus diferentes. São encontrados em todas as posições sociais. O senhor barão de Cotegipe, ministro atual dos assuntos estrangeiros é um mulato; têm no senado homens de esta classe; em uma palavra, quem diz brasileiro, salvo pouquíssimas exceções, diz homem de cor. Sem entrar na apreciação das qualidades físicas ou morais de estas variedades, é impossível desconhecer que não são nem trabalhadores nem fecundos” [1] .

Em relação à suposta impossibilidade das pessoas descendentes de dois grupos étnicos diferentes de se reproduzirem, mesmo depois de ter vivido no Brasil, Gobineau continua defendendo esta hipótese com o seguinte discurso: “Todos os países da América, seja no norte, seja no sul, mostram hoje em dia de uma forma irrefutável que os mulatos de diferentes graus não se reproduzem além de um número limitado de gerações. A infecundidade não se encontra sempre nos casamentos; mas os produtos chegam gradualmente a ser de tal maneira perniciosos, tão pouco viáveis, que desaparecem, seja antes de ter dado à luz descendentes, seja deixando crianças que não podem sobreviver” (Gobineau, 1874: 369). A partir destas argumentações ele chegava até estimar o tempo que levaria a população brasileira para desaparecer: “Será preciso menos de 200 anos, em realidade, para ver o fim da posteridade dos companheiros do Costa Cabral (sic) e dos emigrantes que os seguiram”. Estimação, esta, em realidade fundada sobre dados bastante duvidosos: “Eu ouvi estimar em muito menos a soma total da população do Brasil” diz ele falando dos resultados do censo de população de 1872; e fornecida por fontes vagas e não esclarecidas: “Certos observadores que me pareceram bastante competentes e que apoiavam as suas deduções em cálculos razoáveis” (Gobineau, 1874: 369 passim). São, sem embargo, as análises deste artigo que J. -F. Raymond qualifica de “excelentemente documentadas” (Raymond, 1990: 23). L’Emigration au Brésil foi publicado em Estocolmo, três anos depois da partida de Gobineau do país e escrito a pedido de Pedro II com a finalidade de incentivar a imigração para o Brasil.

Louis Couty, menos conhecido, nasceu na França em 1854 e com 24 anos de idade classificou-se em primeiro lugar para a cadeira de professor da Faculdade de Medicina de Paris. Neste mesmo ano de 1878 instalou-se no Brasil, indicado pelo seu mestre, Alfred Vulpian, quem fora encarregado por D. Pedro II de indicar um regente para a cadeira de Biologia Aplicada na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Foi professor dessa escola e do Museu Nacional até a sua morte, precocemente ocorrida em 1884 em decorrência de uma pneumonia à qual não deu a devida atenção (Ciência Hoje, 1991: 16).

Couty realizou viagens pelas regiões sul e sudeste do país, onde se defrontou com os problemas da expansão do cultivo do café, da escravidão em sua fase final e das tentativas de atrair força de trabalho migrante européia para o país. Publicou um estudo sobre a escravidão no Brasil em 1881, se correspondendo em relação ao tema com o senador V. Schoelcher, “o respeitado decano dos antiescravagistas franceses, que tinha pronunciado um discurso emocionado e entusiasta, no qual o estado da raça negra no Brasil era julgado severamente” (Couty, 1881: 1). Em 1884, uma outra obra reunindo um conjunto de artigos seus, apresenta um resumo bastante completo das idéias do jovem médico sobre o país (Couty, 1884). Ele se declarava contrário à abolição imediata da escravidão, apesar de ser convicto da irracionalidade deste sistema de trabalho e considerava a miscigenação entre “os brancos e os escravos” como um dos possíveis mecanismos emancipadores, mesmo que este processo não fornecesse resultados mais que a longo prazo (Couty, 1881: 24).  Além disso, ele desenhava, como Gobineau, um quadro muito otimista das relações inter-raciais e das contradições sociais no país: “No Brasil não só o preconceito de raça não existe e as uniões freqüentes entre cores têm formado uma população mestiça numerosa e importante, como estes negros alforriados, estes mestiços, estão inteiramente misturados com a população branca: eles têm com esta última relações íntimas e quotidianas e lutam pela sobrevivência nas mesmas condições” (Couty, 1881: 81).

A referência a Spencer, “a luta pela sobrevivência”, está explícita neste parágrafo, assim como a sua adesão à doutrina do evolucionismo social no seu discurso, na medida que ele cita o filósofo para fundamentar suas idéias sobre a inferioridade dos negros. Couty afirmava que os mesmos não eram senão uns preguiçosos, em parte responsáveis pelo atraso do país, e que mesmo em liberdade, eles não faziam nada para trabalhar ou cultivar a terra, nem por progredir socialmente. Segundo ele, a escravidão funcionava, de fato, como uma proteção para os negros desde que eles eram bem alimentados, cuidados e protegidos contra a velhice e o desemprego. “O escravo não é de maneira alguma considerado como gado, como um ser inferior a ser explorado: é um operário agrilhoado à terra em condições freqüentemente mais suaves daquelas que gozam nossos assalariados na Europa” (Couty, 1881: 81).

Uma das cartas do senador Schoelcher lhe respondia: “eu não vou relembrar que os escravistas de todos os países têm sempre pretendido que a abolição da escravidão significaria a ruína de certas colônias, como o Sr. o diz do Brasil, e que eles têm sido falsos profetas de infelicidade. Eu não vou relembrá-lo porque não lhe faço a injúria de crê-lo um escravista; só vou lhe fazer notar que os brasileiros estão longe de compartilhar seus temores, desde que eles têm formado uma sociedade de abolição com vistas a acelerar o modo de emancipação da lei de 1871”. [2]

 

O discurso brasileiro: a representação da desigualdade das raças

As idéias sobre a desigualdade das raças humanas, de um lado, e o darwinismo social, do outro, estavam largamente difundidos no Brasil de finais do século XIX. O exemplo de Nina Rodrigues é ilustrativo neste sentido; professor de medicina legal na Universidade da Bahia entre 1891 e 1905, ele realizava pesquisas sobre criminologia em função da raça e das medidas do crânio, seguindo as doutrinas C. Lombroso e de P. Broca. [3] Para o pesquisador baiano, a inferioridade dos negros era um axioma: “a raça negra no Brasil... há de constituir sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo”. [4] Na sua opinião, o país se dirigia para uma situação de isolamento até geográfico entre as raças negra e branca, a primeira no Norte e a segunda no Sul, em vez de se encaminhar na direção de uma miscigenação progressiva (Skidmore, 1976; 78; Stepan, 1990: 112). Os brasileiros estariam condenados a permanecer como um povo inferior devido à presença preponderante da raça negra e dos produtos da miscigenação. No entanto, “o que importa ao Brasil determinar é o quanto de inferioridade lhe advém da dificuldade de civilizar-se por parte da população negra que possui e se de todo fica essa inferioridade compensada pelo mestiçamento, processo natural por que os negros se estão se integrando no povo brasileiro, para a grande massa da sua população de cor” (Rodrigues, s/d: 264). Mesmo se o objeto do autor era de responder a um problema de “higiene social” e de estudar as línguas, as religiões, as festas e as belas artes dos sobreviventes africanos no início do século no Brasil, a partir de obras como a analisada é que o discurso dominante sobre a inferioridade racial se alimenta: “Inconscientemente o científico se transforma em ideólogo” (Ianni, 1962: 247).

Dentro deste contexto, todas as opiniões convergiam com os interesses dos que impulsionavam a imigração européia. Não somente para fornecer trabalhadores para o cultivo do café, mas também para contribuir com o “melhoramento” dos componentes étnicos da população brasileira, ou seja, o seu branqueamento. O catálogo preparado para a Exposição Universal de Paris de 1889, sem dúvida alguma, expressão do pensamento da elite intelectual e do governo da época pós-abolição, confessava: “Vejamos de que maneira o Brasil tem procurado e procura ainda substituir os braços escravos, aos quais devia até hoje uma parte da sua produção... Porque não pode ser negado que a liberdade dada (aos escravos) teria provocado a decadência irremediável do país se o governo imperial não tivesse tomado certas medidas... consistentes no esforço constante para atrair para o Brasil a migração européia, à qual se recorreu para preencher, em parte, os vazios feitos pela emancipação dos pretos” (Santa-Anna Nery, 1889: 206, grifo nosso).

Gobineau também via a imigração como a única maneira de deter a iniludível degenerescência do país abandonado a seus próprios meios: “Mas, se em lugar de se reproduzir por ela mesma, a população brasileira estivesse em situação de minorar com vantagem os elementos desgraçados de sua constituição étnica atual, fortificando-os por alianças de valor mais alto com raças européias, então o movimento de destruição observado em suas classes cessaria e daria lugar a um curso totalmente oposto. A raça se levantaria, a saúde pública melhoraria, o temperamento moral se veria recuperado e as modificações mais felizes se introduziriam no estado social de este admirável país” (Gobineau, 1874: 370).

A oposição aberta às diferentes tentativas de imigração chinesa expressam esta vontade política de branquear a população, acreditando na superioridade ária e rejeitando a introdução de um “novo fator”, qual seria uma quarta raça no crisol brasileiro já suficientemente complexo. A partir do interesse crescente de alguns grandes agricultores, e das demandas de seus representantes políticos, o governo imperial fundou a Sociedade Importadora de Trabalhadores Asiáticos, em 1879, com a finalidade de engajar coolies chineses para as grandes lavouras do Brasil. Um agitado debate irrompeu na Assembléia Nacional assim como na imprensa: diversas tentativas para concretizar contratos de trabalho nos anos que seguiram, tiveram resultados incertos.

O primeiro ministro Cansanção de Sinimbu convocou, na época, um congresso agrícola com a finalidade de escutar os grande proprietários exporem os seus problemas e reivindicações. A partir das discussões suscitadas, e da importância do tema, passou a encomendar um estudo sobre a questão da imigração chinesa. O cônsul do Brasil em Nova Iorque, Salvador de Mendonça foi encarregado do mesmo e publicou em 1879 um relatório bastante favorável a dita imigração. Seu parecer foi de que os chineses eram mais habilidosos e competentes que os negros e, além do mais, exigiam menores salários, dada a situação de penúria alimentar em seu próprio país.

Os oposicionistas multiplicavam as críticas contra este projeto e particularmente os abolicionistas como J. Nabuco, que dizia: “O principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi, assim, africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como o principal efeito de qualquer grande empresa de imigração da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo” (Nabuco, 1949: 119). Mais adiante, nas conclusões do que ele chamou sua obra de propaganda, ele descreve a pátria ideal para os abolicionistas: “um país onde todos sejam livres; onde, atraída pela franqueza das nossas instituições e pela liberdade do nosso regímen, a imigração européia traga, sem cessar, para os trópicos uma corrente de sangue caucásico vivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda mais a nossa raça” (Nabuco, 1949: 218, grifos nossos). Este conhecido defensor tenaz da abolição, preconizava abertamente a imigração européia para o embranquecimento da população, se opunha por motivos raciais à imigração chinesa, mas afirmava, simultaneamente, que não existiam preconceitos raciais no país. Ele se dirigiu à Câmara dos deputados em 3 de setembro de 1879, criticando os argumentos dos defensores dos trabalhadores chineses. Não é o nível de inteligência ou de civilização que perpetua uma raça, mas a sua capacidade para sobreviver e se propagar, afirmava. No seu ponto de vista, mesmo dominados e controlados, os chineses poderiam sempre tomar conta do país onde estiverem se instalado.

É importante ressaltar que tanto os defensores quanto os críticos da imigração chinesa, ambos se apóiam em argumentos baseados na inferioridade desse povo. Para os adversários, os chineses não eram bons, representavam o perigo amarelo para o Brasil; para os defensores, os chineses também não eram bons, mas, de acordo com o seu projeto, iriam ficar só transitoriamente no país (Azevedo, 1987: 149). Mas apesar de ter o primeiro ministro e os representantes políticos dos grandes proprietários a favor, este ensaio de parcial substituição da escravidão africana por trabalhadores chineses tinha nos governos britânico e chinês dois adversários de peso também se opondo à sua concreção (Conrad, 1975). As tentativas de imigração japonesa, por outro lado, tiveram os mesmos resultados durante esse período de discussões de mais de 3 décadas, até que em 1908 desembarcava a primeira leva de quase 800 trabalhadores rurais destinados à lavoura de café para o estado de São Paulo. Nesse tempo as características dos imigrantes italianos que anteriormente os valorizava – sua ambição e vontade de se converter em pequenos produtores agrícolas – começava a incomodar os grandes proprietários. Diversos conflitos tinham se produzido, derivados das frustrações dos italianos que não viam de maneira alguma se realizar suas expectativas. A demanda de migrantes menos “exigentes” para o país coincide com a determinação do governo japonês de exportar seus excedentes relativos de população (Beiguelman, 1987). O estímulo à imigração “caucásica” e a oposição às potenciais vagas de migrantes de outras origens que a européia, se baseava, então, na tese do branqueamento da população já mencionada. Esta doutrina adquire no Brasil seu status de teoria científica, no momento da publicação dos trabalhos do diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda (Skidmore, 1976: 81). Ele foi o único latino-americano a apresentar um relatório no Primeiro Congresso Universal das Raças, reunido em Londres em julho de 1911. Após uma breve introdução sobre as terríveis conseqüências da escravidão no país, o autor tenta explicar a origem da mestiçagem entre homens brancos e mulheres negras: “O que surpreende neste estado da questão é que os senhores, sem nenhuma delicadeza, tenham feito concubinas de suas escravas ... Não foi necessário que de muito pouco tempo para ver as vizinhanças dos domínios rurais se povoarem de mestiços” (Lacerda, 1911: 415). A sua opinião a respeito dos últimos é clara: “Sob a influência de fatores cuja natureza nos escapa, as qualidades intelectuais atingem freqüentemente, nos produtos do cruzamento entre branco e negro, um grau de superioridade sem explicação na herança nem longínqua nem imediata. Uma força obscura desconhecida, faz florescer neles uma inteligência capaz de atingir um desenvolvimento que não foi prerrogativa de nenhum de seus progenitores” (Lacerda, 1911: 416). Se “como trabalhadores dos campos, os mestiços são visivelmente inferiores aos pretos... ninguém pode, entretanto, negar sua inteligência vivaz, suas tendências literárias e científicas, nem sua capacidade política” (Lacerda, 1911: 417). Estas citações são demonstrativas da posição defendida por Lacerda no que diz respeito à controvérsia sobre a desigualdade das raças. No entanto, o estado da questão naquela época se deixa transparecer em matizes como os que se encontram a seguir: “A partir do que acabamos de afirmar, percebe-se bem que, contrariamente à opinião de diversos escritores, o cruzamento da raça negra com a raça branca não dá, em geral, produtos de uma intelectualidade inferior; e mesmo se estes produtos não podem rivalizar por outras qualidades com as raças mais fortes do tronco ariano, se, como estes últimos, elas não têm um instinto de civilização tão realizado, não é menos certo que não se pode classificar estes mestiços no nível das raças realmente inferiores” (Lacerda, 1911: 417).

Em relação à evolução esperada da miscigenação, o autor estimava que graças à seleção sexual “seria lógico de supor que no espaço de um novo século, os mestiços terão desaparecido do Brasil, fato que irá coincidir com a extinção paralela da raça negra entre nós” (Lacerda, 1911: 418). Esta estimativa foi profusamente criticada: ela aparecia demasiadamente longa aos espíritos impacientes com o lento ritmo mostrado pelo processo de branqueamento no país. Com os dados fornecidos por E. Roquette-Pinto, professor de antropologia do Museu Nacional, Lacerda se esforçava por demostrar, entretanto, a marcha inexorável da desaparição das pessoas de cor no Brasil, mas sempre dentro do seu período de cem anos.

Edgar Roquette-Pinto foi “o autor que combateu com maior insistência a idéia da inferioridade racial do brasileiro e isto num momento em que esta inferioridade parecia indiscutível” (Moreira Leite, 1969: 314). Numa conferência de 1912, ele diferenciava três áreas mais ou menos claras de distribuição das “raças fundamentais”. A primeira, no Norte do país até o rio São Francisco, seria a região de predominância do caboclo. A segunda, com os estados que se encontram entre Pernambuco e a parte Norte de São Paulo, o autor a chama de zona de influência africana. A terceira, estaria formada pelos estados do Sul do país, a partir da metade Sul do Estado de São Paulo, era a região de influência européia (Roquette-Pinto, 1927: 54). Seguidamente ele expressa sua convicção do bom ritmo do “desaparecimento dos negros ... que se vai apressando por causas puramente sociais”, no país e apresenta alguns dados sobre a evolução dos componentes por cor. Se baseando nos recenseamentos de 1872 e 1890, mostra como “os descendentes da raça negra” tinham diminuído de 16% para 12% na população total e que os brancos, entretanto, tinham aumentado de 38% para 44%. A sua conclusão é de que “mesmo sem a intervenção de outro elemento branco, o cruzamento de mestiços fornece prole branca, que a antropologia é incapaz de separar de tipos europeus” (Roquette-Pinto, 1927: 54). “Todavia”, acrescentava, “não o esqueçamos, por amor ao preconceito disfarçado ou manifesto, que o problema nacional não é transformar os mestiços do Brasil em gente branca. O nosso problema é a educação dos que aí se acham, claros ou escuros” (Roquette-Pinto, 1927: 54).

Por outro lado, os relatórios dos viajantes estrangeiros reforçavam, de uma maneira geral, as idéias dominantes, na medida que eles estavam também impregnados das principais doutrinas raciais e dos preconceitos europeus da época. Pierre Denis, por exemplo, resume seu ponto de vista da forma seguinte: “A inferioridade econômica e moral da população negra no Brasil não pode ser contestada. A puerilidade dos negros é extrema. Eles são desprecavidos e não conhecem nenhuma forma de ambição, única mola do progresso” (Denis, 1909: 264). Este viajante francês afirmava em 1909, que a população negra não iria nunca ter influência decisiva nos destinos do Brasil.

Mas se o pensamento brasileiro do final do século XIX até meados de 1910 estava influenciado por pensadores como Gobineau ou Couty, assim como pelo determinismo climático de H. T. Buckle [5] , e o crítico prognóstico do zoólogo suíço radicado nos Estados Unidos, L. Agassiz [6] , um novo ponto de vista começa a se afirmar a partir desses últimos anos. Em 1916, por exemplo, G. Amado afirmava que: “A respeito das raças não se desconhecem os exageros dos Gobineau, dos Vacher de Lapouge, dos Chamberlain, para não falar de Elisée Reclus, de Agassiz e de Gustave Le Bon. Ao qualificar-se de ‘inferiores’ as raças mestiças do Brasil, quer-se dizer que lhes falta o hábito do trabalho e a capacidade cívica resultante da experiência política”. (Amado, 1948: 13).

Durante os anos de 1920, no entanto, este encaminhamento crítico das conceituações sobre a desigualdade entre os homens se inverte. Oliveira Vianna se destaca defendendo a arianização do Brasil e atribuindo às origens raciais a organização da sociedade colonial do país. A hierarquia social, ligada ao meio geográfico, proporcionou, segundo O. Vianna, as bases para a formação da aristocracia rural do país, à qual pertenciam alguns mestiços que dispunham de terras e aos que o autor chama de eugênicos. “Esses mestiços eugênicos ou superiores, cuja existência é impassível negar, têm uma antropogenese ainda mal conhecida – porque seu estudo tem sido feito com um ponto de partida falso. Parte-se da suposição de que o tipo negro é um só; quando a verdade é que o tipo negro apresenta uma considerável variedade, tanto somática, como física” (Vianna, 1938: 129). Esta variedade teria dado lugar à existência de mestiços superiores, segundo o autor, “susceptíveis da arianização, capazes de colaborar com os brancos” (Vianna, 1938: 131) e de se identificar com a classe dos grandes proprietários de terras por similitude de caracteres, de comportamento e, principalmente, de cor. Assim, “os preconceitos de cor e de sangue, que reinam tão soberanamente na sociedade... têm, dest’arte, uma função verdadeiramente providencial. São admiráveis aparelhos seletivos, que impedem a ascensão até às classes dirigentes desse mestiços inferiores, que formigam nas subcamadas da população dos latifúndios” (Vianna, 1938: 133). Esta análise desenvolvida pelo autor, acompanha, a um quarto de século de distância, de muito perto as idéias de Vacher de Lapouge. As expressões “eugênico” e “disgênico” que Vianna, por exemplo, utiliza, são tomadas do pensador francês, que as empregava para designar sujeitos hereditariamente “dotados” ou “medíocres”, respectivamente.

Para Georges Vacher de Lapouge – o “mais importante eugenista francês”, segundo Béjin (1988: 494) - , o cruzamento de raças, a mestiçagem, não era recomendável, desde que seu efeito “não é, de ordinário, nem feliz, nem geral, nem definitivo” (Lapouge, 1896: 155). A partir de suas observações sobre algumas espécies de animais e procurando explicar a queda da natalidade na França do século XIX, ele chegava a acusar “o mestiço humano” como responsável, porque nele “a necessidade moral de perpetuar a sua raça não existe de maneira alguma... O mestiço não sente a responsabilidade de perpetuar uma raça: ele sente que nele se enfrentam as heranças de várias delas. Não é uma raça que ele deveria perpetuar, são duas, são muitas, ou seja, o impossível em si mesmo. Por aí é que se explica o egoísmo social e a ruptura de laços sociais” (Lapouge, 1896: 192). O autor afirma que a esterilidade provêm da mestiçagem nos animais e, portanto, também acontece da mesma maneira no homem, apesar de “alguns espíritos mal organizados (os quais), é sempre com desgosto... que escutam dizer que ao homem deve se aplicar todo o que foi constatado para os animais e que a natureza não fez duas biologias, uma para o ser privilegiado, a outra para a besta que ele come ou subjuga. Não existe, no entanto, nenhuma exceção em seu favor” (Lapouge, 1896: 174). Para o autor “as populações miscigenadas” não tinham nenhum futuro possível. Considerando os exemplos de vários países da América do Sul e das Antilhas, como o México, Peru e o Haiti, pretendia demostrar como “o elemento europeu está quase eliminado: os créoles não são mais que mestiços, os mestiços não se diferenciam dos indígenas. A população do Haiti já voltou ao tipo negro...”. Como é que se chega a este resultado? Fazendo abstração das seleções sociais, a natureza se desembaraça de ela mesma. Para o caso do Brasil, ele afirma que este país “segue o mesmo caminho e formará, talvez daqui a um século, um estado negro, a menos que ele retorne, o que provável, à barbárie” (Lapouge, 1896: 187).

Como podia o antroposociólogo O. Vianna estar, ao mesmo tempo, de acordo com o seu mestre e prever um futuro para o país? A partir de suas observações sobre o crescimento mais importante dos brancos em relação aos mestiços e negros, que chamava de “superioridade de sua fecundidade efetiva”, ele deduzia o refinamento da raça pelo melhoramento do sangue dos mestiços, nos quais, de acordo com seu parecer, “a quantidade de sangue branco aumenta cada vez mais”. Este processo se veria reforçado pelo aporte dos imigrantes ários, contingentes de “reprodutores de sangue puro”. Se baseando numa mistura de preconceitos com informações quantitativas parciais, ele considerava que podia “sorrir da opinião dos seus mestres”, desde que “Lapouge não tinha previsto e Le Bon também não, estas surpresas, verdadeiramente inesperadas, das seleções étnicas operando nos trópicos, nem as maravilhas de seu funcionamento sob nossos climas, incomparáveis na sua indulgência com o homem branco” (Vianna, s/d: 159).

De fato, a possibilidade de conciliação já estava aberta, desde que, como nos explica H. Le Bras, “na realidade, como muitas teorias, a de Lapouge tira sua força de uma clareza ambígua. Pode-se demostrar tudo e o contrário também”. As explicações de Lapouge estariam ordenadas no sentido do biológico, “A raça está no começo e na chegada, o círculo se fecha sobre ele mesmo.” (Le Bras, 1981: 84).

 

Referências bibliográficas

Agassiz, Louis R. e Agassiz. Elisabeth C. A Journey in Brazil. Boston: 1868.

Amado, Gilberto. Grão de Areia. 1a ed., 1919. São Paulo: José Olympio, 1948.

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Notas

[1] Carta n. 5 de 22 de setembro de 1869 (Raymond, 1990: 145).

[2] Couty (1881: 1). A lei de 1871, ou Lei do Ventre Livre, declarava os filhos de mãe escrava como livres, mas os obrigava a trabalhar para os senhores até a idade de 21 anos.

[3] Sobre a craniometria de Broca e a antropologia criminal de Lombroso ver, por exemplo, o livro de Stephan-Jay Gould, La Mal-mesure de l’Homme, Ramsey, Paris, 1983.

[4] Rodrigues (s/d: 7). Esta obra foi publicada pela primeira vez 26 anos depois da morte do seu autor.

[5] Buckle (1857-1861). Obra em vários volumes, na qual o autor dedica 8 páginas ao Brasil bastante críticas sobre as suas possibilidades de desenvolvimento.

[6] Agassiz (1868). Sobre Agassiz e seu poligenismo, ver Stephan-Jay Gould, Hen’s Teeth and Horse’s Toes, Norton & Co., 1983, capítulo 8.