Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Política e cultura política: um estudo sobre o MDB


Estudos Sociedade e Agricultura, 7, dezembro 1996: 185-190.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ/CPDA.


Nas pesquisas anteriores procurei demonstrar que, visto à distância, o pensamento político do PCB não se reduz a mero reflexo de uma ideologia exógena. A virtù desse partido, desde o final dos anos 50, sempre foi viver do seu “pecebismo”. A insistência na política de frente democrática no pós-64 foi marca que lhe deu confiabilidade e uma gravitação bem maior que o seu verdadeiro tamanho. A discussão eurocomunista brasileira dos anos 80 poderia ser considerada uma espécie de “tradução” da trajetória de defesa da democracia numa “política democrática” alternativa ao prussianismo da modernização conservadora.

Nessa história das idéias corremos os riscos da compulsão artesanal – implicitação amiúde das influências sociohistóricas, sobrevalorização do contingente; gravitação desmedida do pensamento político. Em todo caso, realizamos um inventário das idéias políticas do PCB em dois momentos contemporâneos: por ocasião da morte de Vargas e no pós-64, quando teve início a explicitação do pecebismo, sobretudo nos primeiros anos 80, quando ele recebeu maior precisão. Em vários textos (Santos, 1982; 1988; 1994; 1996a e 1996b), concentrei-me mais na singularização do pensamento político autônomo da sua matriz dissipativa; daquela na qual, à “história oficial do PCUS”, às vezes se quer resumir a trajetória pecebista: o marxismo-leninismo demodée.

Desde há algum tempo venho incorporando novos interesses a minha pesquisa, como o pensamento social brasileiro, a bibliografia dedicada à modernização das sociedades agrárias e o estudo da relação agrarismo/associativismo. O resultado dessa migração foi chegar ao tema da cultura política em associação à (mais antiga...) questão dos intelectuais (Santos, 1993). Esta última, aliás, considerada ponto privilegiado de inserção entre história e política, se vistos os intelectuais não mais como subobjeto da história, mas como atores do político [1] .

Quer na acepção do engajamento na vida da cidade, quer na de criador/”mediador” cultural, o tema do intelectual não só estimularia aquela perspectiva investigativa como exigiria um enfoque multifacético que contemplasse não apenas os itinerários, mas também as gerações e sobremaneira os loci de sociabilidade (Sirinelli, 1996). Assim, o “pequeno mundo estreito” sartreano poderia ser imaginado nascido dos múltiplos laços como, por exemplo, aqueles que se atam em torno da redação de uma revista ou do conselho de uma editora; que formam “redes” de sociabilidade e conferem estrutura ao campo intelectual, lugar de fermentação de idéias e relação afetiva, ao mesmo tempo que “viveiro e espaço de sociabilidade”; “redes”, enfim, estruturadas na dupla dimensão da adesão (amizade, fidelidade, influência) e exclusão (decisões, debates, cisões). O afetivo e o ideológico a tal ponto se interpenetram na sociabilidade que aquelas “redes” secretam os chamados “microclimas” – “à sombra dos quais a atividade e o comportamento dos intelectuais envolvidos freqüentemente apresentam traços específicos” (Idem). O que inclusive permitiria ver como a influência de certos intelectuais sobre um círculo restrito, porém relativamente homogêneo, ensejaria um processo posterior de amplificação do pensamento primordial, conferindo uma dimensão não vislumbrada no princípio (Idem).

E mais: a procura da raiz do intelectual ator político remete ao problema da transmissão cultural, ou melhor, ao tema das gerações, pois é crucial a questão da herança, da qual os intelectuais se vêem como legatários ou filhos pródigos. E aí outra faceta da relação intelectual-histórica: a das repercussões de um acontecimento fundador, isto é, definidor de gerações, escolas, estilos de pensar ou “atuar politicamente” - o que, por sua vez, possibilitaria afastar-se, ainda mais, da idéia de que os intelectuais como atores políticos são apenas resultado da sua assimilação a um grupo de pressão (Sirinelli, 1996). Essas considerações tanto podem levar ao ponto de como as idéias chegam até eles quanto à questão da sua fecundidade discursiva em debates cívicos, deixando marcas na cultura política da época.

Nesta rota, evitaríamos cair na derivação das idéias do seu contexto e na sua reconstituição per se. Em lugar de “tirar leite de pedras” e olhar para os “grandes compositores”, estaríamos conferindo atenção às “orquestras” e à “recepção do público” (idem) e fazendo historiografia enquanto história dos intelectuais como atores políticos. Embora possam persistir os riscos próprios da velha história política, como o subjetivismo, o impressionismo e o perigo de “se queimar no fogo mal extinto dos grandes debates” do passado recente (idem). Entrementes, à medida que se afirma uma nova perspectiva de longa duração, continuam aparecendo trabalhos estimulantes sobre a história das formações políticas e das ideologias, melhor ainda, sobre o tema da cultura política (“que por sua vez servirá à reflexão sobre os fenômenos políticos, permitindo detectar as continuidades no tempo”) [2] .

Lembrando aquela imagem da “recepção do público”, poder-se-ia pensar numa periodização a partir da noção de evento fundador como meio da aproximação a uma história intelectual no viés da cultura política. No caso do PCB, três construções seriam possíveis: a primeira, e mais distante (só para fixar a idéia), a época dos levantes da juventude militar que desembocaram em 30 e repercutiram nos intelectuais comunistas, fazendo emergir a dissertação, contracorrente, da revolução democrático-pequeno-burguesa que tensionaria o obreirismo do jovem partido desde insinuações à “grande política” da revolta “nacional” [3] . Um segundo “evento” poderia ser o tempo do industrialismo nacionalista que emerge do Estado Novo e leva a política comunista de frente única a mudar; primeiro, passando a ser praticada “de maneira permanente”; depois, concebida gradualística e reformadora. Após 64, com a derrota da coalizão nacional-popular, aliás, presentes setores dela por anos na configuração estatal (segundo governo Vargas, Juscelino, sobretudo Jango), a democracia política mostraria suas potencialidades à medida que, sem ela, a política e as mudanças não conseguiam ter curso. No contexto desses eventos fundadores teria lugar a construção de um operador político ávido para difundir sua subcultura na interface da fecundidade discursiva com os diferentes loci de sociabilidade próprios e alheios (se, nos longínquos anos 20, eles seriam recrutamento, imprensa partidária, blocos operário-camponeses; frente única nacionalista, grupos partidários, sociedade civil, nos anos 50 e 60; depois, poderia ser o MDB) – vivendo aquele operador político a condição de microssociedade como (usando a melhor expressão da época) “partido organizador”.

Doutra parte, é Daniel Pécaut quem chama a atenção para o fato de que o conceito de cultura política não deve encerrar exclusivamente a idéia da semelhança de atitudes individuais, consideradas fora de qualquer contexto institucional, quantificáveis mediante surveys, como em Almond e Verba (1965). Pécaut propõe que a noção “cultura política” só tem utilidade à medida que se articulam concepções políticas diversas, como nos seus exemplos dos ex-integralistas no Iseb (humanismo marxista), queremismo no PCB, a recuperação comunista do getulismo no pós-54, o encontro dos estudantes com o marxismo, etc. No pré-64, teriam sido percursos em sentido contrário como esses que asseguraram aos esquemas nacional-populares o caráter de uma verdadeira cultura política, possibilitando as mais variadas práticas políticas, assegurada, porém, a coesão relativa de um meio que se estendia muito além dos militantes propriamente ditos (Pécaut, 1990).

Neste ponto também nos demos conta de que reproblematizar a tradição pecebista [4] requeria um novo lastro de pesquisa apropriado ao recorte da cultura política. E que a via natural dessa incorporação não consistiria, no entanto, em simplesmente transitar da nova bibliografia para o trabalho empírico em temática agrária posta à frente. Então começamos a pensar numa volta ao velho objeto de estudo em associação com uma investigação sobre o MDB, considerado experiência emblemática de valorização da política em um momento da vida nacional no qual a política não encontrava muitos estímulos. Pareceu-nos plausível supor que nesse laboratório pós-64 teria ocorrido um processo de “cultura da política” – o esoterismo da expressão sugerindo a idéia de que se teria rompido com a mentalidade “a política não serve para nada”. Vale dizer, resistia-se ao regime de 64 mediante uma “guerra de posições” sob processos moleculares – retomada dos partidos, participação em eleições, mesmo controladas; recuperação do associativismo; entendimentos políticos e articulações parlamentares; lutas de rua e movimentos culturais – todos eles voltados para a conquista do estado democrático de direito. Esse caminho de pedras teve início logo em 64, quando setores da “classe política”, em forma reativa, se colocaram na oposição, rearticulando-se nas margens do processo eleitoral, como em 1965, quando, inclusive, derrotaram a ditadura nas eleições para governador no Rio e em Minas Gerais. Desde então, o PCB já insistia na tese da democracia como eixo da frente única capaz de isolar e derrotar o autoritarismo [5] . No processo, o MDB se constituiu em espinha dorsal da Oposição. E, não por acaso, em 1985, a resistência se concluiria num largo acordo entre forças oposicionistas e dissidências do regime.

Em suma, ao pressupormos que no contexto daquela mobilização se teria forjado uma “certa” maneira de fazer política do velho MDB (“desde a política”, vale repetir), a pesquisa focalizará a relação PCB-MDB por entendê-la chave não só para esclarecer o vaivém da afirmação da mentalidade democrática no PCB e a sua “obsessão” em fazer política, como para avaliar de algum modo os valores e atitudes emedebistas difundidos em amplas camadas da opinião pública.

Assim, à margem da encruzilhada – história da filosofia política (Strauss, autonomia do texto) e sociologia do conhecimento (Mannheim, ênfase no contexto) (Ricupero, 1996) -, poder-se-ia trabalhar a perspectiva da história intelectual de partido como interseção entre a reconstituição textual (num grupo dotado de equipamento suficiente para captar problemáticas geracionais) e o momento partidário da controvérsia político-intelectual no qual elas também se cristalizam e onde se combina idéia e ação em discurso de vocação normativa. Nessa reunião do tema dos intelectuais com a discursividade intrapartidária estaríamos sugerindo então a idéia das “orquestras” e da “recepção do público” (Sirinelli, 1996) – nossa única articulação disponível ab initio para recorremos à noção de cultura política e a colocarmos a serviço de outros estudos.

 

Referências bibliográficas

Almond, Gabriel e Verba, Sidney. The civic culture. Political attitudes and democracy in five nations. Boston, Little/Brown, 1965.

Buzzi, A. R. La teoria política de Antonio Gramsci, Barcelona: Fontanella, 1969.

Pécaut, Daniel. Os intelectuais e a política. São Paulo: Ática, 1990.

Santos, Raimundo. Nota de pesquisa: partido e política no Brasil: 1958-64. Cadernos Brasil em Debate, 2, UFPB, abril 1982.

_______. A segunda renovação pecebista. B. Horizonte: Oficina de Livros, 1988.

_______. Duas gerações de intelectuais pecebistas. Estudos Sociedade e Agricultura, 1, dezembro 1993.

_______. O pecebismo inconcluso. Seropédica, Edur, 2a ed., 1994.

_______. Modernização e política. Rio de Janeiro: Forense/Edur, 1996a.

_______. Feudalidade e prussianismo no pensamento agrário do PCB. In: Questão agrária e política: autores pecebistas. Seropédica: Edur, 1996b.

Rémond, René. Apresentação a R. Rémond (org.). Por uma nova história política. Rio de Janeiro, UFRJ/FGV, 1996.

Ricupero, B. Caio Prado Jr. E a invenção de um marxismo brasileiro. Texto apresentado na XX Anpocs, Caxambú, 1996.

Sirinelli, Jean-François. Os intelectuais (1988). In: R. Rémond (org.). Por uma nova história política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.

Vacca, Guiseppe. Pensar o mundo novo. São Paulo: Ática, 1996.

Zaidán, M. O PCB e a Internacional Comunista (1922-28). São Paulo: Vértice, 1988.

 

Notas

[1] Na tese gramsciana sobre o Risorgimento há uma seminal teorização da relação de identidade entre história, política e filosofia. Ali, Gramsci compara o paradigma jacobino com a problemática da formação de uma vontade coletiva para a “revolução moderna”, a fusão entre “alta” e “baixa” culturas, exemplar em 1789 (Buzzi, 1969).

[2] Para René Rémond a noção de cultura política veio preencher um vazio na história política ao introduzir a continuidade na longuíssima duração (Rémond, 1996).

[3] Essa reflexão terminou soterrada no III Congresso do PCB de 1928/29. Michel Zaidán a resgata como momento passageiro de um “marxismo nacional”, emergente quando se teriam afrouxados os laços do PCB com a IC. Cf. Zaidán (1988).

[4] Guiseppe Vacca observa que o aggiornamento de uma tradição intelectual implica interpelar, da forma mais crítica possível, o seu passado como condição para formular as novas tarefas do momento, ademais, de onde, poder-se-ia extrair não poucos instrumentos de análise do presente (Vacca, 1996).

[5] Os comunistas ainda pagavam tributo à própria ambigüidade: pautavam-se pela tática de acumulação de forças através da política, mas, intramuros, cultivavam o tradicionalismo marxista-lininista, que os induzia a conceber relações unívocas entre economia e política. Acerca desse clima intelectual que, de resto, prevalecia em alguns intelectuais no imediato pós-64, ver Pécaut (1990). Para uma notícia sobre o “estruturalismo” no PCB ver “A reabilitação da política no pós-64” (Santos, 1996a).