Estudos Sociedade e Agricultura

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Mônica A. Del Rio Benevenuto

Questão alimentar e nutrição: um enfoque interdisciplinar


Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 161-165.

Mônica A. Del Rio Benevenuto é professora da UFRRJ/DEL.


A nutrição institucionalizou-se como campo de conhecimento científico a partir dos avanços obtidos pelas disciplinas das ciências naturais que permitiram a compreensão da alimentação como processo metabólico. Mas, com o passar dos anos, teria um destino de área interdisciplinar por excelência.

Como se sabe, a nutrição debruçou-se sobre a realidade material, objetiva. Ao recortar seu objeto, reduziu-o a um de seus aspectos, o biológico. Por muito tempo outras dimensões foram relegadas a outros domínios.

Tal reducionismo prolongou-se ainda mais em função da maneira de analisar o próprio objeto: compreendendo-o como um fenômeno redutível a uma série de elementos constituintes também naturais. Essa crença reducionista, segundo a qual os organismos complexos podem ser estudados se reduzidos aos seus menores elementos, provém da tradição do conhecimento científico, embora mais recentemente já comece a se admitir seus limites.

Em nutrição, o reducionismo também torna-se visível na formulação dos padrões de homem-tipo. Aqui se unifica a diversidade pela média populacional representada pelo padrão construído, que funciona como uma espécie de parâmetro de normalidade. Generaliza-se a recomendação do consumo energético e nutricional diário, desconsiderando-se a segmentação social em classes e as conjunturas econômicas e políticas que podem vir a ser fatores decisivos capazes de impedir que grande parte das populações chegue a padrões satisfatórios de uma dieta balanceada.

A nutrição desnuda-se, assim, de seu caráter social, sobretudo na medida em que se ocupa do estudo do ato alimentar a partir do momento da ingestão, ou seja, da relação do alimento em si com o organismo, sem considerar que tal ingestão tem antecedentes, o que é relevante considerar.

Nessa tradição, através do trato alimentar, são minuciosamente descritas as transformações físicas e químicas do alimento em substâncias nutritivas digeríveis e absorvíveis pelo organismo, reduzindo-se o estudo à fisiologia e à bioquímica do corpo humano na sua relação com a ingestão e à utilização dos alimentos, os nutrientes e suas fontes, como também aos requisitos nutricionais nas várias situações de esforço fisiológico e nos casos de doença. Opera-se um deslocamento da atenção da inserção social do indivíduo para o homem em geral e, posteriormente, para órgãos, tecidos e células.

Esta maneira de ver e tratar o ato alimentar carrega seqüelas da visão mecanicista que se institui como paradigma da Era Moderna e introduziu novas concepções sobre a natureza, a vida e os fenômenos. De acordo com Capra (1982) o mecanicismo cartesiano, porém, levou o homem a cometer enormes equívocos ao interpretar os fenômenos vitais sistêmicos e orgânicos a partir da sua redução a uma máquina, como se fossem um relógio em todas as peças. A interpretação das partes, e não do todo, distanciava-se da realidade, tanto para o macro quanto para o mundo-micro.A inter-relação dos aspectos físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais transcende a fronteira conceitual da nutrição sobre a necessidade do alimentar-se, exigindo que se repense o tratamento que se tem dado a tal ato, a partir de uma proposta holista.

É verdade que o caminho seguido pela nutrição permitiu conhecer as necessidades bioenergéticas, o papel dos nutrientes na manutenção do organismo, o teor nutricional dos alimentos, as implicações das carências nutricionais, etc. No entanto, o estudo disciplinar inicia-se e esgota-se no próprio homem enquanto ser biológico, com uma investigação analítica exaustiva da otimização do atendimento às necessidades vitais através da ingestão, numa concepção muito próxima daquela que equipara o organismo a uma máquina que carece do combustível alimentar.

A tendência a considerar a interação dos alimentos com o organismo, numa dimensão física, reflete a separação cartesiana entre corpo e mente, afastado o estudo das manifestações psíquicas, sociais e culturais. O ato de alimentar é visto a partir de uma interpretação desvinculada de qualquer significado que não o de base nutricional.

Mesmo que se pretenda chegar a um grau máximo de racionalidade, sempre existirão razões de caráter sociocultural nesse processo que precisam ser levadas em conta. Mas, ao contrário, a questão alimentar é pinçada desse tipo de contexto. Despida de suas qualidades, perde-se a característica de elemento explicativo da vida social. Embora apresentada com roupagem científica, e ainda que ela possa mensurar, quantificar e analisar com instrumentos precisos, o enfoque tradicional mostra-se cada vez mais problemático.

A nutrição tem meios para medir e descrever, por exemplo, o estado nutricional ou as carências nutricionais. O seu método, porém, só evidencia as causas físicas, cujos efeitos também são dimensionados nesse mesmo plano.

Por tais razões é que ressaltamos a necessidade de um tratamento interdisciplinar na questão alimentar.

A maioria das pesquisas ligadas à nutrição humana e à análise de alimentos refere-se a problemas que, mais facilmente, prestam-se à experimentação científica. Na literatura especializada são poucos os trabalhos que correlacionam regime alimentar com os determinantes extranutricionais e incluem os aspectos socioeconômicos e culturais condicionantes da vida dos indivíduos. Forma-se, então, um hiato entre o comer para suprir as necessidades bioenergéticas e o comer como expressão de identidade cultural.

O enraizamento do método reducionista na nutrição é notável, tem até mesmo merecido reconhecimento social. Problemática, porém, é a utilização de uma análise unilateral para a questão alimentar, como se fosse uma abordagem completa. E mais ainda: partir desse princípio, apresentar os problemas alimentares como fenômenos solucionáveis na dependência apenas de medidas racionalizadoras, numa crença tecnicista, ocultando que esses problemas resultam de relações sociais, têm um caráter sociohistórico.

A interpretação tecnicista, acrítica, constitui um mecanismo de manutenção e reprodução de ações que apenas abrandam os efeitos de contradições sociais que se refletem na área alimentar, sem o aprofundamento da reflexão rumo a uma solução efetiva.

O fenômeno da alimentação, atividade biológica que assegura a sobrevivência humana, garante também a sua humanidade, pois o que se come, o como e o quando se come, estão repletos de signifícações. Na verdade, a vida dos homens só pode ser analisada através do dinamismo das relações sociais. Isso significa atentar para as especificidades das sociedades em função da diversidade cultural; e, nesse sentido, exige a relativização, daí decorrendo a necessidade de incluírem-se os processos anteriores à ingestão, tais como cultivo, abastecimento, acesso e aquisição, seleção e preparo de alimentos, entre outras questões.

Embora inegável o predomínio biológico na nossa problemática, a evidência de que a mudança das condições alimentares não se resume apenas aos aspectos meramente nutricionais, mas também aos da cultura e da sociabilidade, indica que uma percepção renovadora já está se formando, impulsionando a extensão da interdisciplinaridade, esta em franco processo de consolidação nas ciências naturais e mais recentemente já penetrando nas ciências sociais.

A inclusão das variáveis extranutricionais na discussão da situação alimentar traz o tema de volta a seu contexto histórico-social, sugerindo a necessidade de uma visita a outros domínios que não o físico, e a busca de soluções mais eficazes e duradouras para a questão alimentar.

Foi sob uma perspectiva, como a anterior, que analisamos em nossa dissertação a realidade alimentar de uma comunidade rural de Paracambi/RJ, onde verificamos que o sistema de significações desempenhava um papel considerável na seleção e no consumo de alimentos da população. Outro ponto extremamente interessante que observamos foi o fato de que, ao passarem da condição de pequenos produtores agrícolas para trabalhadores urbanos desvinculados da produção de alimentos, os integrantes do grupo objeto de nossa pesquisa experimentava uma nova mudança para a situação de baixa qualidade da dieta consumida.

Tais elementos extranutricionais (e condições específicas que não cabe relatar), tornaram não só inteligível a dieta consumida na comunidade, permitindo-nos concluir que a qualidade da situação alimentar carecia de ser acompanhada por melhorias reais das condições de vida e renda familiar dos indivíduos, evidenciando o novo campo de ação no qual a questão alimentar, numa abordagem interdisciplinar, deve necessariamente articular-se com diversos ramos do conhecimento como a ciência política, a sociologia, a antropologia, entre outros.

Bibliografia

Bosi, M. L. M.. 1988. A face oculta da nutrição: ciências e ideologias. Rio de Janeiro, Espaço e Tempo.

Cândido, A. 1987. Os parceiros do Rio Bonito. 7a. ed. São Paulo, Duas Cidades.

Capra, F. 1982. O ponto de mutação. São Paulo, Cultrix.

Leite, C. E. 1987. Nutrição e doença. São Paulo, Ibrasa.