Estudos Sociedade e Agricultura

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L. A. Costa-Pinto

Ciências sociais e Universidade Rural


Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 67-71.

Artigo publicado no Diário de Notícias, Rio de Janeiro, edição de 23 de abril de 1944. Agradecemos a Héctor Alimonda a sugestão para republicá-lo.

Luiz de Aguiar Costa-Pinto é doutor em Ciências Sociais pela Faculdade Nacional de Filosofia do Rio de Janeiro, com a tese O ensino da Sociologia na escola secundária brasileira. Fundador, conjuntamente com Arthur Ramos, da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnologia, em 1947. Em 1948 publicou seu livro Sociologia e Desenvolvimento, e em 1952, O negro no Rio de Janeiro, estudo pioneiro sobre as relações raciais no Brasil. Em 1957/61, sendo professor da Universidade do Brasil, fundou, e foi seu primeiro diretor, o Centro Latino-americano de Pesquisas em Ciências Sociais (Clapcs), patrocinado pela Unesco, que tinha como objetivo a formação de pesquisadores em Ciências Sociais na América Latina, articulado com a criação da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais (Flacso) em Santiago do Chile. Foi diretor da America Latina, revista do Clapcs. Na década de 1960 publicou três livros de ampla divulgação em todo o continente, La Sociologia del cambio y el cambio da Sociologia, Estratificación Social y Estrutura de clases e Nacionalismo y militarismo em America Latina. Desde então, foi professor visitante nas universidades de Buenos Aires, Tulane, Berkeley, Colômbia e Toronto, e professor titular na Wilfrid Laurier University (Canadá). Em 1993 recebeu o título de Professor Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Reside atualmente em Waterloo, Ontário, Canadá.


Os jornais estamparam, há pouco tempo, algumas fotografias da Universidade Rural, que breve deverá estar funcionando em suas suntuosas instalações. Não sabemos se sobre essa instituição alguma coisa mais foi divulgado à respeito, especialmente da organização de seu curriculum. De qualquer modo, por não sabermos o que está assentado, se alguma coisa de assentado já existe, vamos deixar aqui algumas notas sobre a necessidade da inclusão das ciências sociais entre as ciências que cabe à universidade estudar e ensinar. Se o que dissermos já foi previsto - felicitamo-nos por isto mesmo; se não o foi, é possível que ainda haja tempo de ainda considerar o que acaso dissermos de justo e valioso.

As fotografias do edifício da Universidade, às quais nos referimos, já parecem significar uma vitória da arquitetura bem orientada pela ecologia, a antropologia, a geografia humana; ao invés de qualquer coisa semelhante ao novo edifício do Ministério da Educação, plantado no meio do campo. Como se poderia esperar, escolheu-se o velho estilo luso-brasileiro da “casa grande”, assim como o nosso colega Maurício Queiroz, do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Filosofia, propunha numa tese sobre edifícios escolares, apresentada no IX Congresso Brasileiro de Educação.

Desse modo, em que pese parecer um absurdo o que dizemos, acreditamos ver na própria escolha do estilo da casa, se não foi mera questão de gosto arquitetônico - a revelação de um estado de espírito favorável à compreensão do quanto importa a uma universidade rural o estudo e o ensino das ciências sociais: sociologia, economia, estatística, antropologia física e social, ecologia humana, demografia, etc.

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Nos Estados Unidos, a sociologia da vida rural é ciência largamente estudada - basta ver a bibliografia especializada abundantíssima - e não somente estudada como disciplina acadêmica, ela presta também inestimáveis serviços às atividades agrícolas oficiais e privadas. É verdade que, como nos informou alguém que os conhece de perto, muitos “sociólogos rurais” norte-americanos mais se assemelham a cowboys, no traje, na mentalidade, nas maneiras, na linguagem, na visão das coisas às vezes excessivamente limitada. Isso não é regra, entretanto, e, de qualquer modo, para o caso brasileiro, a tendência a formar esses tipos seria contrabalançada pelas nossas tradições de “bacharelismo” sempre dispostas a ver o campo como paragem idílica, de bucolismo eterno... Em parte foi esse o caso do México, onde a reforma agrária se fez conduzida por uma visão objetiva do meio rural mexicano e onde até hoje continuam sendo feitas monografias notáveis sobre os “pueblos” indígenas, os donos seculares da terra.

As ciências sociais aplicadas ao estudo da vida rural têm como principal finalidade o estudo da importância, direção e significação das mudanças da população agrícola, nas diversas áreas geoeconômicas da nação e entre os centros rurais e urbanos; a reorientação da propriedade agrícola para os recursos territoriais potencialmente produtivos da nação; a reorganização social do campo, as organizações comunais e institucionais que constituem, cada vez mais, o principal interesse da  população agrícola; os fatos e a significação do número crescente de pessoas e famílias desfavorecidas entre a população do campo; a estratificação gradativa da população rural em classes econômicas e sociais, seus problemas e interesses específicos, a personalidade do homem rural e a cultura de que a sociedade rural é portadora; o comportamento e os processos mentais pelos quais a população agrícola se entrosa com o mundo em geral do qual se tornou parte; a participação da população agrícola num plano democrático mais eficiente e construtivo visando a realização do bem-estar rural (cf. Carl Taylor).

Daí se conclui que para evitar a eterna repetição dos mesmos erros, as ciências sociais irão estudar: primeiro, a situação social do campo para compreender, em seguida, o problema social do campo. E, no Brasil, que do ponto de vista sociológico, como econômico e político, se caracteriza fundamentalmente por essa demora cultural acentuadíssima entre litoral e sertão - tais estudos, feitos cientificamente, são de importância relevantíssima e seu desenvolvimento em nosso meio seria capaz de fornecer as ciências sociais contribuições teóricas de valor imenso.

Chegou-se entre nós à conclusão de que o problema rural só será resolvido por uma “mudança cultural provocada”, isto é, pela intervenção do poder público no ajustamento da vida campesina, tal como é, a formas capitalistas de produção, predominantes no meio urbano, tal como se considera, que deve ser. Pois bem: sem discutir se essa é ou não a solução justa, o fato é que essa “mudança cultural provocada”, tal como acentuou Willems, é capaz de acarretar uma desorganização social profunda entre as populações do campo se não for orientada por métodos científicos das ciências sociais. Essas ciências, por outro lado, é que hão de acabar com o unilateralismo com que até hoje se tem encarado o problema: Para os médicos, o caboclo é um doente e subalimentado; para o educador, todo “mal” reside no analfabetismo; o agrônomo verifica a existência de conhecimentos “racionais”, de mercado e de meios de comunicação; os moralistas desejam erradicar “vícios”, e assim por diante... A visão estrutural do problema, coroamento dos esforços parciais de cada um, cabe às ciências sociais e por fim, ao político, se antes não chegar a vez do próprio homem do campo resolver o problema.

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Êxodo rural, comunidade rural, condições de trabalho no meio rural, estrutura e problemas da família rural, estatuto da propriedade rural - eis alguns dos temas dos quais no Brasil muito se fala e poucos levam a sério. Eles estão, entretanto, a carecer de um tratamento objetivo e corajoso, o que deve ser feito numa verdadeira Universidade Rural, plenamente capacitada para o desempenho dessa função. Uma tal universidade, desse modo não apenas em seus laboratórios de física, química e botânica, mas também em seus centros de pesquisa de uma “Divisão de Ciências Sociais” - que deve ter - necessita transformar-se em um núcleo ativo e fecundo de estudos sérios sobre o meio rural do país, objetivando propor soluções honestas para os problemas das populações agrícolas.

Entre nós alguns estudiosos, desde algum tempo com novas luzes, vêm se preocupando com os problemas da sociologia rural. O livro de Carneiro Leão sobre a sociedade rural encara o aspecto educacional. Jacques Lambert, na revista FNF, publicou longo artigo sobre a classe dos pequenos agricultores. Ainda o mesmo professor e o autor deste artigo, num livro que em breve aparecerá, dedicam longos estudos aos problemas da população rural, especificamente no Brasil, encarando o homo nordestino, com dados colhidos por um inquérito da revista O Observador, na Hospedaria dos Imigrantes. Também para próximo lançamento e a tradução da Sociologia da vida rural de T. Lynn Smith que está sendo revista por Artur Ramos. Em São Paulo, onde há pouco o professor Lynn Smith deu cursos de sociologia rural na Escola Livre de Sociologia e Política - Emílio Willems e a revista Sociologia, que dirige, vêm encabeçando um movimento pelo estudo sério de tais problemas. No mês passado fez um ano que a revista dedicou todo um número à sociologia rural. Esses trabalhos se juntam, desenvolvendo-os, à bibliografia mais antiga, numerossíssima, que existe no Brasil sobre o seu problema rural.

Havendo tais estudiosos, antigos e modernos, não custa à Universidade Rural, se quiser, levar adiante, em bases científicas, um trabalho sério de estudo da sociedade rural brasileira, à luz das ciências sociais, cumprindo o que se deseja e o que se espera de sua criação oportuna.