Estudos Sociedade e Agricultura

Autores | sumário

 

Luiz Flávio de Carvalho Costa

Introdução


Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 7-11

A maior parte das informações aqui presentes foi obtida nas matérias publicadas em 1944 e 1947 nos jornais Diário de Notícias, Jornal do Commercio e Jornal de Brasil, todos do Rio de Janeiro. Para outras informações, consulte o Centro de Leitura e Estudos Romulo Cavina (Clerc) do ICHS que já iniciou um trabalho de coleção de fontes para a preservação da memória da UFRRJ.

Luiz Flávio de Carvalho Costa é professor da UFRRJ/CPDA


Professores que não pesquisam, insuficiência de recursos; professores sem empenho para despertar interesse dos alunos, ensino secundário deficiente; universidade elitizada, democratismo paralisante; comprometimento político, desvinculação da realidade; salários desmotivantes, péssima administração; má cumpridora de sua missão, formadora de quadros e produção de conhecimento. A listagem poderia ser bem maior, pois a falta de unanimidade faz da universidade brasileira alvo de muitas acusações saídas do descrédito na instituição, e também de reconhecimento de sua importância, como lugar principal da produção do conhecimento e de capacitação profissional do país. A discussão não é nova nem original, mas tampouco ultrapassada ou privada de interesse.

A idéia de reservar uma parte do terceiro número de Estudos Sociedade e Agricultura para tratar questões, direta ou indiretamente relacionadas à universidade, surgiu associada à hora presente em que se revisam os estatutos da Universidade Rural e se reflete sobre o acontecimento, há cinqüenta anos, da sua fundação em dezembro de 1943.

Quanto ao primeiro aspecto, não é intenção dos editores provocar uma discussão imediatamente relacionada com o processo da Estatuinte. Tal debate tem lugar reconhecido e legitimado. Ao invés de lidar com os temas mais específicos de uma instituição, preferimos ampliar a problematização para o terreno do debate mais de princípios gerais.

A forma escolhida para iniciar tal discussão foi criar uma seção a partir da elaboração de um questionário a ser respondido por professores da instituição. Escolhemos os nomes entre colegas que tiveram ou têm experiência na condução dos rumos da Universidade: Ariane Luna Peixoto, Hugo E. Barbosa de Rezende, José Antônio S. Veiga, José Carlos Netto Ferreira, Manlio Silvestre Fernandes, e incluímos ainda Roberto José Moreira, colaborador desta publicação. Não pretendemos criar polêmicas provocativas, mas sim, um espaço para que, através de suas experiências na administração, no ensino e na pesquisa,  cada um desses professores convidados possa contribuir tanto para o momento conjuntural da Estatuinte, quanto para o debate permanente em torno da universidade brasileira.

Em relação à trajetória da Rural, fizemos uma averiguação que nos forneceu dados interessantes. Fundada no final de dezembro de 1943 na gestão do Ministro da Agricultura Apolônio Sales e inaugurada em julho de 1947 com a presença do presidente Dutra, a Universidade Rural, subordinada ao Centro Nacional do Ensino e Pesquisas Agronômicas (CNEPA), do Ministério da Agricultura, agrupava as Escolas Nacionais de Agronomia e Veterinária e os Cursos de Aperfeiçoamento e de Especialização. Naquele momento, o Ministério da Agricultura procurava reorganizar o ensino e as pesquisas agronômicas para tornar mais eficiente o trabalho rural, estabelecendo mecanismos de orientação e de ajuda ao agricultor. Seu objetivo era preparar técnicos capazes de impulsionar, em bases racionais, a lavoura e a pecuária do país. A experiência que se iniciava na antiga fazenda de Santa Cruz deveria se reproduzir em outras regiões, a fim de que sua influência racionalizadora se generalizasse no país, atraindo, senão o fazendeiro ou o lavrador lúcido, o seu filho ou o adolescente que deverá sucedê-lo no amanho da terra e nos campos de criação.

Até então, as escolas de agronomia e veterinária sempre tiveram o Ministério da Agricultura como órgão estruturador.[1] Foi também subordinada ao Ministério da Agricultura, na gestão de Fernando Costa, que foram iniciadas em 1938 as obras da Universidade Rural. O ministro havia incluído em seu programa a transferência da Escola de Agronomia e Veterinária da Praia Vermelha para o Km 47 da Estrada Rio/ São Paulo, local visto então com certas reservas por causa da malária e pela presença de um grande número de grileiros na região.

A partir de 1944, as instituições que compunham a Universidade Rural contavam, anualmente, com aproximadamente 1300 alunos, com alguns Institutos ainda sendo instalados (o de Biologia, naquele momento, já estava em atividade). Passaram então a funcionar diversos serviços de experimentação e ecologia agrícola e, pouco mais tarde, já seriam ministradas aulas práticas de agronomia e veterinária. Em interessante reportagem, o jornal Diário de Notícias daquela época descreve: “Ao chegar-se no Km 47, avista-se um conjunto de construções novas, em estilo colonial, disseminadas por diversas colinas de pequena elevação. O grupo de estabelecimentos de ensino de que se compõe a Universidade Rural fica à esquerda. À direita, localizam-se os estabelecimentos de pesquisas agronômicas. Assim, praticamente, acham-se lado a lado o ensino e a experimentação”.

Em 4 de julho de 1947, tendo Waldemar Raythe como diretor-geral do CNEPA e Artur Torres Filho como reitor (ambos do quadro técnico do Ministério da Agricultura), foi inaugurada a Universidade Rural, com a entrega de dez dos dezessete edifícios e instalações escolares que integravam o campus para os cursos de Engenharia Rural, Biologia, Química, além das Escolas de Agronomia e Veterinária e dos Cursos de Aperfeiçoamento e Especialização.

Os pronunciamentos durante a solenidade de inauguração compõem uma interessante peça discursiva reveladora de formulações ideológicas que nos remetem à problemática da construção da consciência nacional. A tradição intelectual brasileira sempre se radicara fora dos muros das universidades. As instituições universitárias, apenas no final da década de 1940, começavam a se fazer mais presentes - era o momento em que elas procuravam se afirmar no campo intelectual e na renovação da crítica.

Daí ser forte a intenção de um centro de pesquisa e ensino como a Universidade Rural de interferir nos rumos do país através da produção e divulgação de um conhecimento tido como essencial para o nosso desenvolvimento. Este é o motivo condutor das diferentes falas do evento. O ministro da agricultura, Daniel de Carvalho, defendia a racionalização das atividades rurais e condicionava o futuro da economia brasileira à influência benéfica da instituição universitária. Artur Torres Filho colocava o progresso intelectual e material da Nação na dependência de sua agricultura e pecuária racionalmente organizadas. Convém registrar que tanto o ministro quanto o reitor se ajustavam ao novo clima do desenvolvimento planejado do pós-guerra. O representante do embaixador norte-americano, por sua vez, atribuía aos alunos a responsabilidade de intensificar a educação do povo útil e inteligente das zonas rurais do Brasil.

O tema da vocação agrária, tão caro ao movimento nacionalista do início do século e ainda presente nas discussões em torno do caráter nacional brasileiro, reaparece no discurso de Torres Filho ao considerar a terra a fonte do progresso das nações: “O Brasil, pelo império das circunstâncias que concorreram para sua formação econômica, e devido à variabilidade das suas fontes de recursos naturais, precisará traçar rumos seguros à vida rural, de modo a garantir em bases sólidas o bem-estar social.” Ao setor rural brasileiro estava reservada uma missão maior: a solução do problema econômico e social passaria pela racionalização dos métodos e pelo progresso técnico que, ao elevarem o nível de civilização das populações do interior, fortaleciam o mercado interno e a renda nacional, viabilizando a indústria nacional.

Claramente, prevalece uma visão tecnicista nos diferentes discursos. A despolitização reaparece nas considerações sobre a segurança nacional. Para Torres Filho, por exemplo, uma nação mal alimentada teria seu destino comprometido, porque não poderia subsistir e prosperar. O reitor alertava ainda para o fato de que uma agricultura tecnicamente não-orientada poderia levar à indigência, com todas suas perturbações de ordem social e, assim comprometer a soberania nacional. A racionalidade, aplicada à produção rural, permitiria a formação de uma raça forte e viril.

Nesse mesmo mês de abril de 1947 o sociólogo L. A. Costa Pinto aproveitava a inauguração da Universidade Rural para publicar um artigo no jornal Diário de Notícias (RJ). L. A. Costa Pinto aproveitava o evento para voltar a uma discussão que o ocupava há tempo: as tendências do ensino das ciências sociais e a solução dos problemas brasileiros através de uma mudança cultural provocada, na qual elas teriam lugar importante na orientação dessa mudança de mentalidade. Naquele momento, o autor discutia o lugar das ciências sociais na orientação dessa mudança e seu papel nos currículos universitários. Pareceu-nos de interesse o resgate do artigo, mais do que mera curiosidade, pois ele inicia uma reflexão ainda atual, como, ademais, podemos observar nas considerações sobre o tema neutralidade do conhecimento técnico produzido nos meios acadêmicos, que aparecem na primeira seção do presente número da publicação.

Esperamos que, dentro das suas limitações naturais, esta edição de Estudos preste um serviço a seus leitores. Especialmente aos da Rural, uma universidade que, com a sua participação no debate universitário brasileiro, poderá contribuir significativamente com análises e reflexões sobre o tema, no qual nos parece ser ineliminável a discussão sobre o acesso ao ensino superior. Não se trata de questionar o número de vagas hoje disponível, mas sim a possibilidade de existir uma universidade democrática sem um ensino de base democrático. Referimo-nos à igualdade de oportunidade que todos devem ter para freqüentar a escola superior, igualdade essa sobretudo assegurada pela democratização do ensino elementar e secundário. É tal ensino de base que enriquece o horizonte e amplia o poder de decisão de uma larga faixa da população hoje apartada dos direitos da cidadania.

Notas

[1] Então, o ensino agrícola tinha uma longa história. Em 1808, quando a família real chegou ao Brasil, já havia interesse manifestado na lecionação de aulas voltadas para o ensino da agricultura. Em 1838 foi criada, na Lagoa Rodrigo de Freitas, a Escola de Agricultura da Fazenda Real. Na Bahia, através da iniciativa particular, foi criada em 1877 a Escola Agrícola de São Bento das Lages, que formou, desde então até 1904, 377 engenheiros agrônomos. É também do período imperial, a constituição da Estação Agronômica de Campinas (Instituto Agronômico), iniciativa do Ministro da Agricultura da época, Antônio Prado. Em 1913 foi fundada a Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária.