Estudos Sociedade e Agricultura

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Ana Luiza Fontenelle

Consciência ecológica e ciências sociais: uma aproximação a Capra


Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 177-181.

Ana Luiza Fontenelle é mestre pela UFRRJ/CPDA.


Segundo Fritjof Capra, houve um momento na história do desenvolvimento da ciência moderna em que se vislumbrou uma surpreendente perspectiva. Contrariando séculos e séculos de "evolução humana", a ciência parecia ter mostrado seus limites. Os físicos contemporâneos foram os primeiros a fazer tal advertência. Segundo eles, seria impossível avançar sem rever os paradigmas fundadores desta ciência. Da mesma forma, ambientalistas, políticos e empresários do mundo inteiro sentem inexorável necessidade em frear a destruição da natureza em nome do progresso e do bem-estar humano. O mundo parece enfrentar um amplo processo de transformação e adequação a novas realidades. Os paradigmas da racionalidade newtoniana, da precedência do masculino, da combustão, do burocratismo e do particularismo individualista, as ideologias sectárias nacionalistas e xenófobas; enfim, tudo que já foi sólido parece querer desmanchar-se. As instituições tradicionais, hoje verdadeiras estruturas geológicas da sociedade, aparentemente imutáveis, vêm sofrendo um processo de transformação radical.

O mundo encontra-se em estado de anomia cuja causa Capra entende ser a própria decadência dos valores fundamentais da ordem capitalista. A ciência, tal como a conhecemos, não é senão um instrumento de dominação da natureza. Hoje, o individualismo como ideologia da ciência moderna não significa bem geral. Não se espera mais que cada um, fazendo o que lhe apetece, resulte em bem geral.

Um dos aspectos fundamentais da explicação de Capra sobre as origens da crise do paradigma científico moderno reflete a própria natureza desse conhecimento, fragmentário e especializado, em contraste com a realidade, que é sempre múltipla e interdependente. Não há, portanto, para Capra, quem, do ponto de vista cartesiano, possa ordenar este nosso mundo.

A civilização ocidental demonstra viver um impasse frente à crise mundial. As causas desta não são localizadas. São múltiplas crises e inúmeros impasses. Vivemos em um mundo que, no geral aponta para um lado mais "sistêmico", sem fronteiras e hipercomunicativo. Ao mesmo tempo em que estas tendências aparecem e se firmam, explodem as mais diversas reações. Guerras, nacionalidades a se afirmarem geopoliticamente; personagens de todas as épocas mais tristes do passado humano nos revisitam e impõem novos impasses.

O pensamento ecológico é hoje, enquanto consciência, uma das formas de intervenção neste mundo. A natureza desta intervenção só pode ser desvendada se observados processos macro-históricos. Percebe-se, no entanto, a construção de uma ética mais ecológica, entre cujos objetivos encontra-se principalmente um redimensionamento das relações sociais. Para além das preocupações ambientais, emerge uma consciência holística e sistêmica. Basta observar nos fenômenos sociais contemporâneos as tendências à relativização das hierarquias de poder. O masculino e o feminino, a ordem antropomórfica, o predomínio da maioria sobre a minoria; a própria idéia de progresso tecnológico sofre revezes em face dos novos questionamentos.

Assim como a natureza, a mulher também foi subjugada pelo homem. Vivemos ainda sob o patriarcalismo, no qual mulher e a natureza são figuras submissas e passivas frente ao poder. Nesse sentido, Capra associa o feminismo à questão ecológica, envolvendo-os de parentesco natural. E assim como estes, outros movimentos sociais, baseados na recusa ao padrão ocidental de desenvolvimento, emergem nos anos 50 e 60 deste século, trazendo no seu interior aspectos de uma nova visão da realidade, e até mesmo de uma nova realidade social.

Um ponto importante a ser frisado sobre estes aspectos é a conformação social dos novos movimentos sociais, entre eles o ecológico. Na maioria dos casos, o plano da vida que induz à criação de identidades entre os indivíduos não se relaciona com o mundo do trabalho. As organizações da esquerda verde recusam o industrialismo, impondo ao pensamento socialista um questionamento sobre suas próprias bases sociais. Tem-se hoje a idéia generalizada de que os processos de mudança e transformação das sociedades capitalistas não devem passar por articulações originadas no mundo do trabalho. Os sindicatos são o lugar do interesse, não da revolução. Esta deve passar pela reordenação paradigmática mais geral da sociedade. Reverter valores mais básicos é o motor do ecologismo. O próprio fim do socialismo real mostrou até que ponto as transformações baseadas nos mesmos modelos racionais poderiam chegar.

Ademais, os impasses que vivenciamos no mundo contemporâneo não comportam soluções baseadas em uma compreensão fragmentária do problema. Vivemos sob o signo da interação universal; e, portanto, as ferramentas de que necessitamos precisam ser adequadas a tal realidade.

Entre os vários impasses que experimentamos hoje em dia é possível situar aqueles vividos pelas diversas tradições do pensamento social. Nas ciências sociais, tais impasses remetem a uma certa impropriedade de seus postulados mais gerais em relação ao mundo real. O impasse da economia, a ciência social mais afetada pelo método racional fragmentário, remete a essa impropriedade de seus postulados em relação ao mundo real, o que tem gerado um distanciamento cada vez maior da ciência econômica e daquilo que ela toma como o real do real em si. Isto é, o racionalismo exagerado nas ciências traz como conseqüência fundamental o afastamento dos postulados que lhes dão consistência de questionamentos éticos ou morais externos à natureza do conhecimento científico. A ciência, livre de impedimentos éticos, tem um caráter extremamente negativo, principalmente pelo fato de liberar forças desagregadoras e "destrutivas" da natureza. Cabe hoje avaliar a negatividade do específico racional das ciências modernas no que se refere à falta de condições em explicar e ordenar o mundo contemporâneo.

Diferentemente das ciências naturais, que já provaram do poder de transformação liberado pela derrubada dos preceitos éticos e morais que impediam sua plena realização, e que hoje cedem terreno aos temas do autocontrole e da necessidade de um desenvolvimento sustentado, nas ciências sociais, não se verifica de forma generalizada tal movimento de negação da ciência pela ciência. As ciências sociais ainda se encontram, "na doce posição de neutralidade dos filósofos sociais dos séculos XVII e XVIII". Ainda se jubila a cada teoria explicativa do real. Particularmente na economia, observa-se a negligência com que essa ciência vem agindo diante do crescimento econômico, cujo descontrole tem trazido conseqüências funestas para a sociedade de modo global. Não só os países do terceiro mundo têm sido afetados, como também os países do primeiro mundo se ressentem da avalanche do economicismo matemático. Os postulados básicos da economia e das ciências sociais não têm servido senão para legitimar os "absurdos" da civilização moderna.

No entanto, há alguma luz no fim do túnel. Assim como em outros aspectos da vida - na saúde, na qualidade do meio ambiente, etc. - nas ciências sociais começa-se a andar no sentido da crítica aos postulados racionalistas. Nas universidades verifica-se cada vez mais o aparecimento de cursos e departamentos interdisciplinares, cuja diversidade de interesses procura exatamente formar pesquisadores e pensadores menos especializados e burocráticos. A adoção da disciplina "ecologia" em alguns cursos de graduação e pós-graduação, em diferentes áreas, seja na engenharia seja na antropologia, é um exemplo desse despertar para uma nova consciência.

Ademais, a ecologia, como categoria explicativa do real, já abrange a priori várias questões. Na verdade, de um determinado ponto de vista, a abrangência dos temas referidos à ecologia faz dela um sistema próprio, uma visão de mundo. Independentemente das diversas correntes que estudam a ecologia, seus princípios básicos se referem à totalidade da vida, à diversidade das relações sociais e naturais. A consciência ecológica é quem desvenda as necessidades profundas
que informam as inter-relações sistêmicas em sua infinita complexidade. Amor e aliança entre os seres humanos e amor e aliança entre homens e natureza.

O pensamento e a consciência ecológica poderão influir decisivamente na resolução dos impasses dessa sociedade em ritmo de transformação. Não há dúvida de que a construção do futuro deverá passar inevitavelmente pela reavaliação dos paradigmas e postulados que sustentam a ordem mundial. Se nas ciências naturais esse processo já seria visível, - para Capra, a partir da inovação da física moderna, cuja visão sistêmica dos eventos naturais ultrapassou a noção de mundo como máquina, deslocando a base científica para outros rumos, nas ciências sociais, e principalmente na economia reside o problema central. O racionalismo exagerado implica restrições à intervenção salvadora do caos econômico social e prescreve sempre remédios baseados nos velhos paradigmas.

Em suma, para Capra, é a noção de mundo interdependente que requer uma mudança radical dos conceitos básicos de eficiência, produtividade e lucro na economia moderna. A problematização de impactos sociais e ecológicos, por exemplo, não podem ficar na dependência das considerações das teorias economicistas. A ciência do futuro deverá, portanto, negligenciar seu passado fragmentário e especializado, e transformar-se de modo a seguir positivamente o fluxo dos movimentos históricos contemporâneos.

Bibliografia

Buarque, Cristovam. A desordem do progresso e o fim da era dos economistas e a construção do futuro. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.

Capra, Fritjof. O ponto de mutação. Cultrix, São Paulo, 1982.

Moreira, J. Roberto. "Pensamento científico, cultura e ECO-92: alguns significados da questão ambiental". Reforma Agrária – Abra, 23, jan/abr, 1993.