Estudos Sociedade e Agricultura

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Héctor Alimonda

Mariátegui: vanguardas, tradição e modernidade


Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 101-113.

Héctor Alimonda é professor da UFRRJ / CPDA.


No outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado, Manape foi no mato e Jiguê foi no rio. Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do Rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? Nem ele. Então o herói pegou a consciência de um hispano-americano, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma. Mario de Andrade, Macunaíma, XVI (1928)

Muito já se debateu sobre a ortodoxia de Mariátegui, e preferimos não nos deter nessa vertente da discussão. Interessa-nos, em todo caso, destacar sua heterodoxia, segundo toda uma outra linha de interpretação. Heterodoxia que tem por fundamento não só sua particular apropriação da tradição socialista, senão um horizonte problemático específico, uma leitura a partir das chaves estratégicas de um contexto histórico nacional determinado: se para Mariátegui é necessário inventar o socialismo, também será necessário inventar um corpo teórico interpretativo dessa realidade nacional.

Não se trata, obviamente, de uma espécie de fundamentalismo nacionalista. Precisamente todo o contrário: a especificidade nacional que preocupa Mariátegui não só está historicamente determinada e configurada como um amálgama de elementos diversos, como também é absolutamente contemporânea do intenso processo de modernização e de transformações econômicas, sociais e políticas que se desenvolvem no resto do mundo.

A particularidade nacional é resultado complexo de um vasto processo histórico multidimensional. O nacional em Mariátegui é sempre visto como um processo em formação, não como uma cristalização ou sacralização de elementos já existentes. A leitura não se limita a integrar o nacional no contexto internacional, mas tem como ponto de partida uma interrogação formulada desde a modernidade. Se o nacional é um processo em formação, sua problemática se organiza desde a sua dinâmica.

Assim, a análise do nacional proceder-se-á segundo uma leitura que destaca suas potencialidades na ótica de um processo de mudanças sociais, integrando modernização, desenvolvimento, integração, na perspectiva de um modelo diferente de sociedade.

No caso peruano, a reivindicação das formas comunitárias de organização camponesa não é para Mariátegui uma mera defesa autóctone ou conservadora. Não são defendidas enquanto supervivências do passado, mas valoradas como formas presentes de organização de setores populares, que constituem um importante predicado; ou ponto de partida para esse processo de construção de uma sociedade alternativa.

Mariátegui reivindica as comunidades, em primeiro lugar, porque elas têm sobrevivido, isto é, porque constituem um efetivo mecanismo de organização e de identidade dos setores camponeses. Mas setores camponeses que, ademais, são indígenas: as comunidades são parte fundamental, mas não excludente, de um complexo cultural e racial onde se constituem as classes populares peruanas. Por outro lado, as comunidades têm origem anterior à conquista; são a evidência viva de uma continuidade histórica nacional-popular que, com sua presença, questiona os discursos da dominação, e se torna eixo articulador de um campo de forças antioligárquicas.

Desta forma, a reivindicação do indígena e camponês deve ser feita em articulação com a sua fusão com um movimento social e político que reconheça e integre as contribuições das forças sociais produzidas pela modernização, como a classe operária, os setores populares urbanos, os intelectuais de vanguarda. Com a clássica metáfora espacial peruana, Mariátegui diz que a Serra não se salvará sem Lima. Não só a cidade constitui o lugar indispensável da modernidade e da sua dinâmica: a cidade é também o jogo de espelhos que permite ao campo reconhecer-se.

Daí uma outra questão importante: a reivindicação do tradicional, do indígena, do nacional, sempre seletiva, não será nunca antimodernista, muito pelo contrário, sempre se definirá como autêntica vanguarda, como a vanguarda própria dessas condições sociais.

Se alguma coisa caracteriza a obra de Mariátegui é justamente essa notável capacidade para transitar pelos diferentes registros que compõem uma sociedade heterogênea e fragmentada e para, respeitando sua especificidade, ser capaz de extrair propostas unificadoras. Nesse sentido, é notável sua capacidade para desenvolver um agudo tratamento conjunto da política e da cultura, segundo um critério interpretativo comum.

Aqui Mariátegui se vincula com os imperativos em que se debatiam seus companheiros de geração em toda a América Latina: como ser ao mesmo tempo vanguardistas e nacionalistas? A vigência deste desafio coloca às vanguardas artísticas latino-americanas em uma encruzilhada crítica. À diferença dos europeus, os latino-americanos não podiam rejeitar a tradição nacional em nome da modernidade. Tratava-se, em troca, de “pôr em hora” o próprio relógio, como proporiam os modernistas brasileiros, de trabalhar assumindo o caráter antropofágico da tradição nacional e sua contemporaneidade como mundo em transformação.

Resulta sumamente interessante uma aproximação comparativa neste tema entre Mariátegui e os modernistas brasileiros. Não podemos desenvolvê-la aqui, mas podemos assinalar algumas opiniões de críticos.

“O caso mais interessante na relação do modernismo com a tradição é a viagem de Mario e Oswald de Andrade e Blaise Cendars a Minas Gerais em 1924. Eram poetas absolutamente embebidos dos princípios futuristas, e com uma fé absoluta na civilização das máquinas e do progresso. Mas, repentinamente, decidiram viajar à procura do Brasil colonial. Ali encontraram nossa história nacional e o primitivismo do barroco mineiro do século XVIII” (Santiago, 1987: 136). Mario continuará com suas viagens, percorrendo os rios da bacia amazônica até o Peru e a Bolivia, enquanto ia nascendo Macunaíma (1927), e em uma exploração musical, etnográfica e arquitetônica pelo Nordeste (1928), que teria seus frutos uma década mais tarde, no projeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

“As vanguardas brasileiras (em contrastes com as européias, as quais, segundo Peter Bürguer, tentavam reintegrar a arte com a vida desmantelando as instituições) não estavam em situação de ruptura com o passado (indígena, afro-brasileiro ou colonial), senão que almejavam sua rearticulação em um projeto de estabelecimento de uma cultura nacional. Mário de Andrade, um dos líderes do modernismo dos anos 20, admitiu que este movimento ‘antecipou e preparou o caminho para a criação de um novo Estado Nacional’, em referência ao “Estado Novo” de Getúlio Vargas, que centralizou a economia e a maquinaria estatal com um regime autoritário” (Yúdice, 1992: 21).

Se a busca é equivalente, as diferenças no campo político-cultural entre Peru e Brasil levaram o movimento modernista a acabar identificando seu programa com uma política do Estado. Não existia no Brasil uma força social com a presença, densidade e auto-identificação do campesinato peruano; ao mesmo tempo, existia um Estado Nacional incomparavelmente mais consolidado e com maior capacidade de implementar políticas ativas do que o peruano.

Por aqui Mariátegui se vincula com os imperativos nos quais se debatiam seus companheiros de geração em toda a América Latina: ser ao mesmo tempo vanguardistas e nacionalistas. A vigência deste desafio coloca as vanguardas artísticas latino-americanas em uma encruzilhada crítica: à diferença das européias, não podiam rejeitar a tradição nacional em nome da modernidade. Tratava-se, em todo caso, como proporiam os modernistas brasileiros, de “por em hora” o relógio próprio, de trabalhar assumindo o caráter antropofágico da tradição nacional e sua contemporaneidade com o mundo em transformação.

O mais forte em Mariátegui é justamente essa qualidade para transcender nesta busca do plano estético para as propostas políticas. Nesta perspectiva, é possível verificar uma total continuidade entre as suas concepções estéticas referidas à tradição nacional e as vanguardas, e a sua estratégia política de recuperação de elementos não-modernos como integrantes de uma fusão de forças sociais comprometidas com a modernização. O cerne desta visão reside precisamente na sua concepção do nacional como um contínuo heterogêneo, sujeito permanentemente a recomposições na sua relação com o resto do mundo.

“O Peru é ainda uma nacionalidade em formação. Está sendo construído sobre os inertes estratos indígenas pelos aluviões da civilização ocidental” (Mariátegui, 1981: 26). “Uma rápida excursão pela história peruana informa-nos de todos os elementos estrangeiros que se misturam e combinam na nossa formação nacional” (...) “Temos o dever de não ignorar a realidade nacional, mas temos também o dever de não ignorar a realidade mundial” (Mariátegui, 1981: 27).

Este texto foi publicado na revista Mundial em 28 de novembro de 1924. Encontramos ali uma visão do nacional como um conglomerado de mestiçagens heterogêneas, que se constitui em relações de incorporação permanente de elementos estrangeiros.

Sublinhemos aqui uma afirmação pelo menos curiosa: a nacionalidade peruana estaria sendo construída pelos aluviões da civilização ocidental agindo sobre “inertes estratos indígenas”. È ainda uma perspectiva eurocêntrica a que informa Mariátegui, a que se reflete nos seus artigos dessa época e nas suas conferências, reunidas nos volumes que formam a História de la crisis mundial.

Esta visão eurocêntrica não só irá privilegiar unilateralmente a civilização ocidental como dinamizadora eficiente da História, segundo um modelo de modernização unilinear, como se resolve igualmente em um privilegiamento do sujeito revolucionário por excelência, o proletariado. Daí que a reivindicação mariateguiana da heterogeneidade da formação nacional exclua precisamente o elemento mais autóctone e majoritário: a campesinato indígena.

O resultado absolutamente surpreendente é que uns poucos dias depois, em 9 de dezembro, a mesma revista Mundial publica outro artigo de Mariátegui, onde desde o título, apresenta-se uma completa ruptura com suas concepções anteriores. Abre-se agora no seu discurso uma perspectiva de reivindicação do elemento indígena, não só como fundamento da nacionalidade, mas também como ator central de uma proposta política de transformação, nova perspectiva que Mariátegui não irá abandonar até morrer.  E trata-se de uma reivindicação do indígena que começa por situá-lo na complexidade de determinações que o constituem na formação social peruana, como agente econômico, político e cultural (isto é, como classe).

O artigo se denomina abruptamente “El problema primario del Peru”, e começa homenageando Clorinda Matto de Turner, a militante indigenista. Diz Mariátegui: “O problema dos índios, é o problema de três quartos da população do Peru. É o problema da maioria. É o problema da nacionalidade”.

O corpo do artigo será reproduzido textualmente no ensaio “El problema del índio”, um dos Siete Ensayos de Interpretación de la Realidad Peruana. Contém, com exceção da questão das comunidades camponesas, o essencial do pensamento mariateguiano em relação à questão indígena.

Em primeiro lugar, aparece a impugnação das classes dominantes e do processo histórico da sua constituição a partir da perspectiva da questão indígena. Do regime independente, nacional e liberal, poderia se esperar uma reivindicação do indígena ou, pelo menos, um tratamento melhor que o outorgado pela dominação colonial. Mas aconteceu o contrário: “A República tem significado para os índios a ascensão de uma nova classe dominante que se tem apropriado sistematicamente das suas terras”. A capacidade da classe dominante invalida qualquer conteúdo social do seu liberalismo, e destrói o possível fundamento popular e autóctone do seu  nacionalismo.

Por outra parte, enquanto o mundo indígena supõe uma relação entranhável com a terra, o saqueio republicano desagrega a cultura e a identidade indígenas. “Em uma raça de costumes e alma agrárias, este despojo tem constituído uma causa de dissolução material e moral”.

O segundo tema do artigo é a revolução burguesa frustada por não incorporar um programa social, que Mariátegui toma do debate italiano, a partir do seu admirado Piero Gobetti, e que aparecerá também nas análises do Antonio Gramsci sobre a questão meridional.

Não dispondo de uma política para as reivindicações do campesinato indígena, as classes dominantes peruanas fracassaram no seu projeto constitutivo da nacionalidade. Não puderam estabelecer um capitalismo dinâmico, nem uma sociedade burguesa, nem sequer um Estado Nacional autêntico. “Dilatando a solução do problema indígena, a República dilatou a realização dos seus sonhos de progresso. Só quando o índio obtiver para si o rendimento do seu trabalho, adquirirá a qualidade de consumidor e produtor que a economia de uma nação moderna necessita em todos os indivíduos”.

Para Mariátegui, então, a reivindicação do indígena é traçada desde um ponto de leitura que privilegia a modernidade. Não defende o indígena desde uma tradição passadista ou imutável, mas, ao contrário, só pensa que uma incorporação dessas massas permitirá constituir uma nação moderna. Jamais faz uma defesa do “atraso” por si mesmo. Neste texto de 1924 ainda não descobriu a problemática herziana das comunidades camponesas como um predicado essencial para a construção de um socialismo latino-americano. Por isso, frizemos que seu ponto de partida é sempre a aposta na modernidade; é antes uma impugnação política das classes dominantes por causa do atraso do que uma reivindicação das suas virtualidades.

Um texto posterior pode ajudar a situar essa ruptura. Trata-se de “Vidas paralelas: E.D. Morel – Pedro S. Zulen”, publicado em Mundial em 6 de fevereiro de 1925, onde Mariátegui traça um paralelismo entre os ideais destes dois homens recentemente falecidos: um inglês pacifista e anti-imperialista e um peruano lutador pelas reivindicações indígenas.

Entre as suas lembranças de Pedro Zulen está a seguinte: “lembro de outro encontro ainda mais emocionado: o encontro de Pedro Zulen e Ezequiel Urviola, organizador e delegado das federações indígenas do Cuzco, na minha casa, faz três meses. Zulen e Urviola se comprazeram reciprocamente em se conhecer”. “O problema indígena – disse Zulen – é o único problema do Peru”.

Segundo este testemunho, a velada na casa da rua Washington teria acontecido em novembro de 1924, isto é, precisamente quando Mariátegui processava sua ruptura. Parece-nos pertinente atribuir a essa reunião um papel decisivo na significativa alteração nas chaves de leitura de Mariátegui, que já seria definitivo.

 

Tradição e vanguarda

Repetimos: o vigor do discurso mariateguiano reside no amálgama de diferentes registros, na constituição de um lugar de enunciação que funde elementos heterogêneos, nesse impulso amplo que se esforça por traçar uma unidade possível entre formações discursivas que parecem antagônicas, em visualizar a história e a identidade nacional como processos em construção, com uma perspectiva de futuro que reconciliará todas essas vozes, “todas las sangres”, como no título do romance de José Maria Arguedas [1] .

Essa unidade é possível porque a perspectiva se traça desde o futuro. A modernidade é desejável e possível na América Latina, inclusive no país mais dilacerado e cristalizado, o Peru. Mais do que isso: será precisamente a modernidade a condição e o espaço para a reconciliação da sociedade e da história peruanas consigo mesmas. A aposta na modernidade é para Mariátegui uma utopia eficiente, um mito mobilizador e unificador das forças presentes para convocá-las à construção do futuro. Esta é a resposta mariateguiana à pergunta que, nesses mesmos dias, atormenta Antonio Gramsci na sua cela da prisão de Turi: como suscitar uma vontade coletiva nacional-popular de transformação social?

Por que  a força dessa busca de Mariátegui e por que a sua modernidade? Reside, acreditamos, no fato de que essa inequívoca aceitação da modernidade não é em nenhum momento acrítico, mas cuidadosamente qualificado.

Essa constitui a ponte que, através de Mariátegui, liga o mais avançado do debate dos populistas russos com as discussões contemporâneas, não só latino-americanas. Não se trata da adesão a uma visão abstrata da modernidade, em última instância vetusta, como a que recentemente (e em forma brilhante) recolocou Marshall Berman (1986), mas de uma interrogação sobre as vias nacionais para a modernização, o que supõe uma pesquisa cuidadosa das raízes históricas e das forças presentes em cada situação nacional.

Para Mariátegui, essa procura supõe então que as vanguardas contemporâneas devem assumir toda a densidade das problemáticas sedimentadas por uma história nacional concreta, de forma a poder articulá-las em uma perspectiva de futuro. Daí sua insistência (na forma peculiar da discursividade peruana, onde metáforas espacias referem-se a complexos sócioculturais) em que as reivindicações regionais da Serra não podem vingar contrariando as de Lima.  Lima não é apenas uma cidade, o espaço da modernidade: é também a capital, a síntese da nacionalidade, é a possibilidade de unificação e de potencialização dos discursos regionais em uma totalidade, a da modernidade pluralista.

Por isso Mariátegui não pode ser reduzido a um indigenista, como pretende Ángel Rama. Porque, simultaneamente, no mesmo movimento em que ressalta a especificidade, frente ao projeto ilusório de uma modernidade homogeneizadora, impugna, cordial mas severamente, a tentativa passadista do indigenismo mais exaltado, que pretende fechar as portas e as janelas à influência ocidental.

Assim critica a Luis Valcarcel, um dos indigenistas pelo que tem maior apreço, quando este, no seu livro De la vida incaica, propõe o repúdio à civilização ocidental. Diz Mariátegui: “Nem a civilização ocidental está tão esgotada e pútrida como Valcarcel supõe, nem, uma vez adquirida sua experiência, sua técnica e suas idéias, o Peru pode renunciar misticamente a tão válidos e preciosos instrumentos da potência humana para voltar, com áspera intransigência, aos antigos mitos agrários. A Conquista pôde ser impugnada, mas já aconteceu faz quatrocentos anos” (Mariátegui, 1981: 66).

É desde este lugar que Mariátegui se defronta com o conservadorismo e com o indigenismo ortodoxo, unidos numa visão comum da tradição nacional. Com efeito, a chave é que, independentemente da polaridade de leituras que ambas as tradições desenvolvem sobre a história nacional, as duas coincidem em perpetuar e em reivindicar elementos do passado como constituintes dessa tradição nacional.

Contra ele, Mariátegui propõe uma leitura alternativa, a de uma vanguarda (e emprega este termo como toda a força da sua acepção na época, tanto estética quanto política) que seja também um indigenismo revolucionário, e que procure para sua obra “os materiais mais genuinamente peruanos” (...) “Este indigenismo não sonha com utópicas restaurações. Sente o passado como uma raiz, não como um programa. Sua concepção da história e dos seus fenômenos é a realista e moderna. Não ignora nem esquece nenhum dos fatos históricos que, nestes quatro séculos, tem modificado a realidade do Peru e a realidade do mundo” (Mariátegui, 1981: 74)

Para esta alternativa que Mariátegui propõe, a do nacionalismo revolucionário (que é a invenção do socialismo indo-americano), a Nação e, por conseguinte, a tradição nacional “é viva e móvel. Criam-na os que a negam para renová-la e enriquecê-la. Matam-na os que a pretendem fixa e morta, prolongação do passado em um presente sem forças”. Nação e tradição são processos em desenvolvimento, são utopias mobilizadoras para o futuro, à medida que possam constituir-se em mitos revolucionários. Sendo assim, o mais nacional será ao mesmo tempo o mais revolucionário.

Na leitura de Mariátegui, as vanguardas revolucionárias da época, estéticas ou políticas, do futurismo italiano ou bolchevismo russo, não aboliram a tradição nacional. Pelo contrário, a revitalizaram, por tê-la apropriado criticamente, e levado-a a assumir o desafio da assunção da modernidade. A vanguarda é intrinsecamente revolucionária, diz Mariátegui, mesmo que, como no caso italiano, sua irrupção estética tinha sido absorvida por uma formação político-discursiva contra-revolucionária, o fascismo.

Assim, propõe em Heterodoxia da la tradición: “Não existe um conflito real entre o revolucionário e a tradição, senão para os que concebem a tradição como um museu ou uma múmia. O conflito é efetivo só com o tradicionalismo” [2] . Desta forma, em uma operação que tem muito de gramsciana, Mariátegui assenta firmemente a problemática da história das idéias na estrutura de um campo político-cultural, composto de relações de poder institucionalizadas e que outorgam sentido aos discursos. Um discurso alternativo se formula a partir de recomposições e rearticulações de elementos, sustentado em uma redefinição das relações de força do campo cultural.

Também neste sentido Mariátegui é filho do seu tempo. Não fala aqui apenas o observador atento da realidade européia, ligado com os embates vanguardistas. É também o contemporâneo da Reforma Universitária latino-americana, que tem questionado os modos de produção e de apropriação do saber, e que teve no Peru seu chão mais fértil.

A Reforma Universitária abriu uma brecha no fechado campo cultural das oligarquias, que era uma outra face da sua dominação política. Como sempre, Mariátegui procura a fusão, a confluência: essa ruptura processada pela juventude estudantil deve rearticular-se em duas direções. Para dentro, ligando-se com o ímpeto ao movimento indigenista, que expressa não só a procura de uma tradição nacional, mas também a constituição de novos sujeitos históricos e políticos. Para fora, assimilando o que de mais avançado está propondo a civilização ocidental.

O indigenismo cumpriu parte da tarefa de constituição da nacionalidade, recompondo uma trajetória histórica que não começa com a Conquista, mas que se perpetua no presente nas quatro quintas partes da população. Ao vanguardismo peruano compete agora assumir como centro da sua constituição a reivindicação do indígena e, desde aí, recriar, formular, inventar um caminho específico para a modernidade, o do socialismo indo-americo, “que não pode ser decalque nem cópia”.

 

Marxismo e invenção

As mesmas idéias ressonam nos textos mariateguianos, com singular coerência em um escritor tão polifacético. Sem dúvida, tem um mesmo paradigma organizador do seu pensamento entre sua “ruptura” de novembro de 1924 e sua morte em abril de 1930. Mas é evidente que esta linha de leitura recupera também valiosos antecedentes no Mariátegui anterior, o da época anterior à viagem à Europa, que ele rejeitou como sua “idade da pedra”. Essa rejeição explícita a fórmulas cientificistas como método pré-constituído de abordar a realidade, sua convicção da importância da emoção e, portanto, do mito mobilizador para a constituição de sujeitos coletivos, sua desconfiança frente à noção abstrata de progresso, mas sua aceitação da modernidade, seu antieconomicismo, sua concepção das classes sociais como realidades complexas, ancoradas em uma base econômica, mas existentes nos seus desdobramentos políticos e culturais...

Todos estes elementos continuam vigentes no Mariátegui marxista, e constituem predicados centrais das suas concepções teóricas e das suas propostas estratégicas. Como se sabe, o levaram a um progressivo conflito com a ortodoxia da Terceira Internacional, e ao isolamento e repúdio das suas posições no seu próprio partido.

Poupando-nos de retomar longas discussões, limitamo-nos a constatar que não há marxismo mariateguiano, mas uma forma peculiar em que Mariátegui se apropria da tradição marxista. Também  neste ponto, sua leitura continua sendo plural e determinada pelas suas chaves interpretativas.

Assim, sua leitura da importância dos fatores econômicos na evolução histórica e na conformação da sociedade se desdobra em vários registros, nenhum deles economicista.

Por um lado, sua ênfase numa leitura econômica da evolução histórica do Peru tem um sentido crítico heurístico equivalente, talvez o da Ideologia alemã. A partir de uma reconstituição desta evolução, Mariátegui submete a crítica um conjunto de formações discursivas dominantes na sociedade peruana, e propõe não só um novo método de interpretação, mas também um programa de transformação. Não é casual que em Defensa del Marxismo desenvolva o paralelismo metodológico entre a psicanálise de Freud e a interpretação econômica da história de Marx, a partir precisamente do seu conteúdo crítico em relação às formações discursivas de base idealista.

Por outro lado, essa leitura do econômico não o leva jamais a deixar de perceber a complexidade dos fenômenos de formação de classes que Mariátegui, em uma perspectiva muito contemporânea, visualiza fundamentalmente como sujeitos coletivos constituídos por auto-identificações. Na sua estratégia política, a reivindicação econômica se vincula com uma transformação social global, mas criará as condições para uma participação ativa do conjunto das classes subordinadas na construção da Nação Moderna.

Da mesma forma, sua apropriação da própria tradição marxista é seletiva, e daí o peso e a presença permanente que tem na sua obra um autor tão heterodoxo como Georges Sorel. Trata-se precisamente de alguém não só alheio, como impugnador da institucionalização do marxismo; crítico, implacável da idéia de Progresso Histórico e o reivindicador do caráter revolucionário de elementos irracionais (como o mito e a violência), excluídos do catecismo racionalista formulado pela Segunda Internacional.

Para Mariátegui o marxismo não é, como para as ortodoxias das Internacionais, uma “ciência da revolução”. A revolução, como a Nação, como o socialismo, são utopias mobilizadoras, são algo para ser construído, para ser inventado.

Não se trata, então de “assimilar” o marxismo e de aplicá-lo à realidade nacional. Pelo contrário, trata-se de “inventar”: ler o marxismo não em chave do real, mas do possível, por meio de uma operação de apropriação que seja também uma “criação heróica”, uma produção sempre recomeçada da tradição socialista.  

Em um país da periferia capitalista, marginal também às grandes correntes da cultura ocidental, Mariátegui descobre a possibilidade de formular uma proposta socialista precisamente em ausência das condições pressupostas pelas leituras clássicas, e incluso pelo próprio Marx.

Mariátegui propõe uma hermenêutica autoprodutora de sentido, que procura a possibilidade da modernidade precisamente no lugar onde se aferram os fantasmas que povoaram os pesadelos do liberalismo e do marxismo clássicos: o campesinato indígena.

Trata-se de uma aposta arriscada. Mas é por tê-la formulado que hoje podemos ler Mariátegui como nosso contemporâneo. Como a Marx, como a Herzen, como a Oswald de Andrade...

Bibliografia:

Berman, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Companhia das Letras, 1986.

Mariátegui, José Carlos. Peruanicemos al Perú. Lima, Amauta, 1981.

Rama, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. México, Siglo XXI, 1985.

Santiago, Silviano. “Permanência do discurso da tradição no modernismo”. In: Bornheim, Gerd et ali, Cultura brasileira: tradição/contradição. Rio de Janeiro, Zahar/Funarte, 1987.

Yúdice, George. “Postmodernity and transnational capitalism in Latin America”. In: Yúdice, George et ali, On Edge: the crisis of contemporary latin american culture. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1992.

 

Notas

[1] Segundo Ángel Rama, o mais evidente continuador da proposta político-cultural de Mariátegui (Rama,

 1985).

[2] Mundial, 25/11/27.