Estudos Sociedade e Agricultura

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José Luis Petruccelli

Café, escravidão e meio ambiente - o declínio de Vassouras na virada do século XIX


Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 79-91.

José Luis Petruccelli é analista especializado da Fundação IBGE.


1. A região de Vassouras

Em meados do século XIX, a produção de café do estado de Rio de Janeiro concentrava-se na região do vale do rio Paraíba, espaço privilegiado, por suas terras altas e seu clima, para esta cultura. Os eixos em torno dos quais se organizava esta atividade eram a grande plantação e a força de trabalho escrava. Como a partir de 1850 o tráfico de escravos africanos tinha sido definitivamente banido, os produtores da região fizeram uso do comércio intermunicipal ou interprovincial para satisfazer às suas necessidades de trabalhadores cativos. Naquela época, o atual primeiro distrito do município de Vassouras correspondia à antiga paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Em 1833 o vilarejo de Vassouras tinha sido elevado à categoria de vila e escolhido como sede do município (Raposo, 1935: 16-25).

Durante a fase de exploração das minas no século XVIII, a região não era mais que um território de passagem entre a capital Rio de Janeiro e a província de Minas Gerais. Com a instalação de albergues ao longo dos caminhos se iniciou o seu povoamento, o qual tomou verdadeiro impulso com a concessão de sesmarias nos anos de 1780. A criação de porcos e o cultivo do índigo foram citadas como as primeira atividades agrícolas dos seus habitantes por C. Ribeyrolles, viajante francês que visitou o país em 1858 (Ribeyrolles, 1980: 226). O nome do município e da vila foi provavelmente tirado da presença numerosa dos arbustos com que se fabricavam as vassouras, nos relata o viajante.

O esgotamento das minas de ouro, a expansão do café em direção das terras mais altas do vale do Paraíba e a eliminação de um último grupo local de índios coroado favoreceram a ocupação progressiva da região (Stein, 1990: 33). No século XIX, o cultivo do café substituiu gradualmente todas as outras atividades agrícolas, em virtude do crescimento prodigioso da demanda internacional e dos enormes lucros que este produto rendia. A floresta primitiva foi cortada e queimada para dar lugar, cada vez mais, à expansão dos arbustos de café. Mas a fina camada de terra fértil das colinas, desprovida da proteção da floresta primitiva, foi rapidamente levada pelas águas pluviais que tinham se tornado torrenciais cada ano, como conseqüência do desmatamento. O ciclo recomeçava e se fechava, tornando infértil uma área cada vez mais importante de terras, que se esgotavam ainda pelas sucessivas colheitas de café.

Ribeyrolles tinha já constatado à época de sua viagem, em 1858, que o cultivo do café se apoiava sobre bases muito frágeis. Ele se questionava sobre o futuro desta região, que dependia, ainda, do trabalho de “vinte mil trabalhadores sem interesse e sem responsabilidade”, os escravos do campo (Ribeyrolles, 1980: 230). Apenas duas décadas depois sua apreensão se confirmava - o declínio do café no vale era irreversível. De acordo com o cronista I. Raposo, no final dos anos 1870 a “decadência já francamente se manifestava, podendo-se designar o ano de 1880 como o marco divisório da idade de ouro do município para a de prata que desde logo lhe sucedeu” (Raposo, 1935: 209). Com efeito, na própria organização produtiva das grandes fazendas já existiam as “sementes da decadência”, como veremos mais adiante (Stein, 1990: 253).

Por outro lado, a concentração da propriedade fundiária era uma característica da região. Citado por S. Stein, o registro de imóveis do início da década de 1850 indicava que 28 propriedades detinham a parte mais produtiva dos 1400 Km2 do município de Vassouras, e que alguns clãs familiares possuíam a maioria dessas fazendas. Todavia, apesar da divisão legal das terras entre os herdeiros, as famílias dominantes garantiam a preservação das propriedades e até a expansão das mesmas, com estratégias de alianças matrimoniais como os casamentos endogâmicos (Raposo, 1935: 41-2).

Grandes plantações e concentração de escravos iam sempre juntos, e num período de crise como o que estava passando o cultivo do café no vale do Paraíba, a oposição dos grandes proprietários ao movimento abolicionista se baseava no interesse em conservar a base mais importante de suas riquezas. Mas os esforços dos fazendeiros da região para impedir a chegada da Abolição foram em vão. Frente à eminência da Abolição, em 1886 eles tinham fundado uma sociedade, o Clube da Lavoura do Município de Vassouras, com o fim de promover a emancipação dos escravos, mas só dentro do sistema da Lei do Ventre Livre (Raposo, 1935: 230). Pretendiam até ampliar a aplicação desta lei, mas sempre em função das necessidades de cada região.

2. População e escravidão

Em pleno apogeu da produção cafeeira, a região do vale do Paraíba desfrutava de amplos recursos para gastar abundantemente no consumo suntuoso. O reflexo na estrutura social por categorias ocupacionais da população da paróquia de Vassouras é muito eloqüente, não só pela presença de numerosos profissionais de alto nível e de serviços exclusivamente utilizados pelas camadas com alto poder aquisitivo, mas também pela constatação da extrema polarização a que tinha chegado esta sociedade, como uma das conseqüências da distribuição desigual da sua riqueza. O reverso da medalha se revela, então, sob a forma de uma miséria e de uma mendicidade reiteradamente mencionadas como características da Vila de Nossa Senhora de Vassouras e, como conseqüência, a prática da caridade, como meio de minorar essa presença inoportuna (Stein, 1990: 163-164; Raposo, 1935: 106, 119, 211). Esta configuração social permanecerá por bom tempo, mesmo após as mudanças estruturais que aconteceram com a Abolição e a reconversão produtiva da região.

A paróquia constitui o exemplo mais extremo de presença de escravos na província do Rio de Janeiro, e muito provavelmente do país. À época do primeiro recenseamento nacional, em 1872, 58.2% da população era escrava, quase 60% dos homens e 56.4% das mulheres, para um total de pouco mais de dez mil habitantes. Na província, excetuando Vassouras, não se encontravam mais de duas paróquias -Valença e Piraí, as duas vizinhas de Vassouras - cuja população escrava superasse a metade da população total. Entre os escravos, uma característica a ser anotada é a elevada proporção de homens, o que pode ser explicado pelas particularidades da força de trabalho necessária nas grandes plantações.

A população branca da paróquia, nesse mesmo ano do censo, não alcançava um quarto do total de habitantes de Vassouras; dos restantes, classificados como pretos ou pardos, quase 4 de cada 5 eram negros. Porém, se mais de 3/4 da população de Vassouras estava na condição de escravos, entre a população negra esta proporção alcançava quase 9 de cada 10 indivíduos. A população parda, no entanto, estava relativamente mais representada entre os livres, principalmente as mulheres, para as quais 2 de cada 3 classificadas como pardas eram livres. A marcada preferência pela alforria de mulheres de pele relativamente mais clara é uma constante na história da escravidão.

O segundo recenseamento da população do Brasil foi realizado em 1890, dois anos após a promulgação da Lei Áurea, mas com resultados muito menos detalhados que os do censo anterior. Uma comparação ilustrativa pode ser feita entre as distribuições pela cor da população de Vassouras nas duas datas, levando em conta, no entanto, a diferença de critérios utilizados nos dois recenseamentos para esta classificação. Enquanto em 1872 foi utilizada a categoria “parda”, esta foi substituída em 1890 pelo grupo de “mestiços” para dar conta, segundo o relatório deste último censo, do “quesito em quanto à cor designativa da raça”.[1] A mudança expressa a passagem de uma definição baseada diretamente da observação de características físicas ou fenotípicas, como a cor da pele, para diferenciar os indivíduos, a uma outra definição que enfatiza mais o biológico ou étnico que classificaria, a princípio, as pessoas nascidas de cruzamentos de indivíduos de “raças” diferentes.

  Vassouras, população segundo a cor nos anos dos censos

Cor

 1872

1890

Branca

 2.764

4.046

Parda

 1.797

2.223

Negra

 6.103

3.397

TOTAL

10.664

9.996

Fonte: Recenseamentos de população, 1872 e 1890

Na tabela apresentada pode-se constatar a diminuição absoluta da população total da paróquia em quase 10% do seu valor inicial, devido, principalmente, ao decrescimento da população negra em quase metade dos seus componentes. A população branca, no entanto, mostra um crescimento da ordem de 45% entre os dois recenseamentos, o dobro do aumento apresentado pelos pardos. A partir destes dados, a hipótese da deserção dos antigos escravos das suas regiões de origem fica mais uma vez respaldada.

3. Grandes fazendas e estrutura social

O que constituía a base da estrutura social da paróquia na região de Vassouras eram as grandes fazendas de produção de café. Considerada como unidade social e produtiva, segundo Stein, a fazenda “proporcionava o contato entre todas as classes da sociedade de Vassouras: os fazendeiros e seus escravos, os atacadistas e varejistas, advogados, médicos e os pobres livres” (Stein, 1990: 151). Esta influência exercida sobre o conjunto da sociedade de Vassouras pelas grandes plantações e a sua organização social, incluindo aí a escravidão até 1888, continuou da mesma forma após a Abolição e a crise da produção cafeeira. Sendo assim, a concentração de terras também se manteve como característica da região: os valores citados por Stein indicam que 20% dos proprietários detinham 70% das terras disponíveis no município.[2]

As diferentes fontes de dados analisados coincidem em apontar os privilégios e contradições desta sociedade. Em primeiro lugar se constata uma presença marcante dos grupos mais favorecidos: capitalistas, proprietários, profissionais liberais, banqueiros e industriais, seguidos de empregados públicos, negociantes e pequenos comerciantes. Em segundo lugar, os serviços reservados às camadas mais ricas: alfaiates, costureiras e modistas, dentistas, professores particulares de música ou línguas. Finalmente, as classes trabalhadoras: operários, trabalhadores sem qualificação, jornaleiros, etc. Para a categoria denominada “camponeses e agricultores” tem que ser feita a ressalva de que a mesma comporta, de fato, uma mistura de grandes e pequenos agricultores, com ou sem terra, impedindo de analisá-la como um todo.

Entre as informações do recenseamento de 1872, chama a atenção a desproporção da quantidade de pessoas praticando um ofício ligado à produção de bens e serviços para os grupos mais privilegiados da sociedade. Encontram-se, assim, 640 mulheres classificadas como costureiras, representando 19% do total de mulheres com alguma atividade econômica e 44% das mulheres livres com alguma profissão. Este grupo se mostra ainda mais importante quando comparado com o de operários que só apresenta 463 indivíduos. Nesta sociedade escravista da segunda metade do século XIX, poderosa mas encravada no meio rural, separada do grande centro de consumo como era a capital do país, a cidade do Rio de Janeiro, até 10% de sua força de trabalho total estava ocupada na confecção de vestimentas.

A vida mundana instalada em Vassouras, o gosto pelo luxo e a ostentação se expressam tanto nas estatísticas quanto nas referências como a que segue: “Pelo tamanho e qualidade dos espelhos que ainda hoje brilham nas fazendas de Vassouras, podemos avaliar o amor que se desenvolveu em todo o município pela arte do bem vestir”.[3]

Fora as oportunidades de exibição pública da opulência durante as festas religiosas, bailes, espetáculos de teatro ou de canto lírico, o consumo exorbitante era um fim em si mesmo; ele fornecia um critério social de riqueza e era definido por um fazendeiro com o “esbanjamento de altas somas em ‘objetos inúteis e fastuosos’ e excessiva hospitalidade” (Stein, 1990: 156). Os joalheiros, a boa cozinha, o aluguel de carruagens, a mobília de luxo, a construção de mansões na cidade ou no campo, davam igualmente oportunidades de despesas ostensivas. Fazer-se pintar ou encomendar retratos da família faziam também parte dos hábitos das casas privilegiadas, como testemunham os quadros encontrados nas residências dos grandes proprietários.[4] Assim, por exemplo, em Vassouras foram recenseados 93 artistas em 1872, o que representa 3.2% da população livre ocupada da região.

Todavia, é necessário assinalar a importância do número de pessoas classificadas na categoria “serviço doméstico” na época, principalmente entre as mulheres. A porcentagem de mulheres livres trabalhando como domésticas alcançava 39%, e a daqueles na condição de escravidão subia a 42%, nível comparável ao de mulheres escravas trabalhando na agricultura, 46%.

Estas informações, no entanto, devem ser submetidas a alguma crítica. A primeira questão diz respeito à composição da categoria “operário”, que aparece como muito importante entre os homens livres (entre 18 e 24% dos mesmos, de acordo com a condição de brasileiros ou estrangeiros, são classificados neste grupo). Excetuando os 128 indivíduos que trabalham na confecção de vestimentas, 92 pessoas declaram atividade econômica na construção civil, 103 trabalham os metais e 140 a madeira. Chama a atenção nesta distribuição que 13 anos mais tarde o Almanaque Laemmert apresenta um número muito baixo de oficinas onde podiam trabalhar estes operários e que, por outro lado, no registro civil esta categoria só apareça a partir de 1910.

Sobre a composição da categoria “camponês”, principal grupo de ocupação econômica recenseado na região, os grandes fazendeiros não constituíam, como assinala Stein, mais que uma pequena parte desta vasta massa, que incluía também pequenos proprietários, meeiros, colonos, agricultores e trabalhadores sem terra. Só um pequeno grupo de fazendeiros, os mais importantes em termos de superfície de terras ocupadas, números de cafeeiros cultivados e quantidade de escravos, exercia a dominação política da paróquia. A esse grupo pertenciam as pessoas escolhidas como juízes (Stein, 1990: 153), e como chefes de Guarda Nacional (Raposo, 1935: 91-92). O título de barão (não hereditário) era outorgado pelo Imperador às pessoas desse grupo - os barões do café -, em reconhecimento da sua importância econômica.

Finalmente, nesta categoria “camponês”, que representa a metade da população com alguma atividade econômica, a enorme maioria está constituída por escravos (83%); entre os livres, um terço do total dos homens era constituído por camponeses, entre os quais se misturam, como já foi assinalado, uma gama bastante larga de situações econômicas e sociais.

4. Declínio econômico e fim do café

Entre 1870 e 1890 a região em estudo sofreu as conseqüências de calamidades de diversas ordens. O declínio da produção de café tinha se esboçado a partir de fatores como as fortes flutuações do seu preço no mercado internacional, a insuficiência da força de trabalho escrava, o aumento dos preços dos trabalhadores cativos, o endividamento dos produtores na compra de escravos ou de maquinarias e o esgotamento das terras produtivas. Todavia, os proprietários se encontraram impedidos de solicitar a renovação dos seus créditos bancários em função da perda do valor de garantia, ligado até então aos escravos possuídos, frente à iminência da Abolição. Mas o que contribuiu preponderantemente para esta derrubada da capacidade de produção de café foi o conjunto dos métodos de cultivo empregados que minaram progressivamente o suporte material e ambiental deste produto. Foram poucos os que realizaram os fundamentos da recessão irreversível que começava localmente: a eliminação da floresta primitiva que protegia a terra fértil nas colinas, a ação das águas pluviais erosionando a superfície desprovida da proteção das árvores e suas raízes, as queimadas excessivas, o envelhecimento dos cafezais já esgotados. Na época, os agricultores procuravam a razão do declínio no valor dos juros aos empréstimos agrícolas ou na falta de maquinaria de tratamento dos grãos de café. Os contemporâneos não conseguiam perceber a destruição do meio ambiente como um dos fatores essenciais da decadência econômica. E mesmo em 1935, o cronista I. Raposo dava como explicação do início da deterioração do “comércio, da indústria e das artes”, o início do funcionamento da via férrea que unia a região à cidade de Rio de Janeiro - para ele, as pessoas teriam se orientado mais para a capital do país do que para a própria cidade onde viviam, até para fazer compras.

Segundo S. Stein, as raízes deste declínio existiam desde meados do século XIX: “A próspera estrutura erigida pelos fazendeiros de café nos anos anteriores a 1850 e após esse ano já continha as sementes da decadência” (Stein, 1990: 253). Mas, apesar das advertências de espíritos mais lúcidos que se expressaram, por exemplo, à ocasião do Congresso Agrícola de 1878, os agricultores continuaram com suas antigas práticas de desflorestamento, queimadas e destocadas, baseadas no trabalho dos escravos, característica de uma agricultura extensiva ou mesmo extrativa. Ao desmatamento e suas conseqüências, chuvas menos regulares e mais torrenciais, se juntaram a ação de pragas periódicas como a das formigas (Atta sexdens) (Stein, 1990: 79) e a dos gafanhotos. A produção de café começa a cair na região de Vassouras ao mesmo tempo que se expande sobre bases novas no estado de São Paulo.

Se durante o período de opulência a miséria já mostrava todo seu alcance, ao instalar-se a crise a mesma não fará senão amplificar-se, contando-se com múltiplos testemunhos. Durante as duas epidemias de febre amarela que se sucederam nos anos de 1880 e 1881, um rico agricultor da região distribuiu alimentos aos pobres da cidade. Em reconhecimento das boas ações do Barão de Cananéia, este era seu título, a população lhe ofereceu seu retrato pintado por um artista local. Da manifestação pública que se produziu à noite do 3 de junho de 1882, o jornal O Vassourense publicou uma longa descrição.[5]

Por outro lado, a existência do hospital público, a “Santa Casa da Misericórdia”, concebido como “casa de caridade” em 1848 e construído com os donativos de particulares, expressa a necessidade desta sociedade de tratar por “misericórdia” seus doentes sem recursos. Entre 1853, o início de seu funcionamento e 1882, o hospital recebeu 6589 doentes “tendo a todos socorrido com medicamentos, alimentos e roupas que substituíram os andrajos da maior parte deles”. (Raposo, 1935: 211).

Finalmente, o grau de pobreza se expressava também diretamente pela mendicância quotidiana, que aumentava ainda aos sábados, quando os pequenos agricultores iam para a cidade vender sua produção e fazer suas compras. Entre as mulheres da classe alta constituía uma prova de fervor religioso “cuidar dos pobres”, o que complementava o “apoio espiritual” proporcionado pela Igreja (Stein, 1990: 163).

O quadro apresentado pelas fontes oficiais corresponde inteiramente aos dados aqui analisados. Se o trabalho de A. J. Silva sobre o estado do Rio de Janeiro em 1896 tenta apresentar uma imagem favorável do “próspero e opulento município” de Vassouras na época (Silva, 1906: 392-6), ele se trai finalmente quando analisado mais de perto e, ao mesmo tempo, contradiz as informações proporcionadas por outras fontes. Primeiramente, porque o volume da população total citado para o Primeiro Distrito da região, a partir dos dados do recenseamento do estado de Rio de Janeiro de 1892, aparece ainda menor que o de 1890, apesar da superestimação reconhecida dos resultados de 1892 (Vianna, 1986: 466): a população total, continuando a diminuir na região, não se revela como um indicador da pretendida prosperidade local. Depois, porque a enumeração dos seis principais prédios da cidade mostra que três deles são dedicados a minorar os problemas derivados da fração da população desprovida de meios de subsistência e que, como pode ser deduzido, era bastante numerosa. Esses prédios são: “o edifício da Misericórdia (existente desde 1848), estabelecimento subvencionado pelo Estado” e os “dois asilos, Furquim e Porciúncula (fundados em 1895), piedosas instituições destinadas ao abrigo de órfãos desamparados”. (Silva, 1906: 393; Raposo, 1935: 266). O problema da miséria, analisado para os períodos precedentes de opulência econômica, agrava-se com a instalação da severa crise da região.

Por outro lado, as respostas da Câmara Municipal ao Questionário da Secretaria de Obras Públicas do Estado de 1898 são bastante eloqüentes na sua circunspeção, mesmo que esta instituição admita que, como conseqüência da “falta absoluta de uma estatística rigorosa e perfeita”, ela podia apenas dar informações deficientes”.[6] Assim, à primeira questão sobre a superfície do município e as características de suas terras, a resposta é seca: “Ignora-se”. À segunda questão sobre a população, a Câmara se expressa: “a mesma população, senão menos, do último recenseamento de 1892”. Muito comedida, ainda, como resposta, pode indicar um certo mal-estar provocado pela obrigação de falar de temas que não expressam resultados muito positivos para a região.

Mas à terceira pergunta sobre as “indústrias mais importantes” do município, a resposta é: “Agrícola e pastoril, sendo a agrícola explorada na cultura de café, cana e cereais”, e continua com uma informação que mostra a gravidade das transformações sofridas pela região: “são unicamente produtos de consumo e não de exportação”. Para um município de uma região que contribuía com quase 2/3 do comércio mundial de café em 1870, o balanço de 1898 aparece como bastante dramático.

Em relação ao método de exploração das terras, quinta pergunta do questionário, a resposta indica: “ainda extensivo”; para o sistema empregado: “parceria na cultura de café e cana e salário nas outras”. As poucas disponibilidades financeiras dos grandes proprietários e o interesse dos trabalhadores em garantir sua subsistência de forma direta, durante uma época problemática para a região, favorecia a parceria nas culturas tradicionais, as mais afetadas pela crise. Dez anos após a abolição da escravidão, o mesmo sistema de produção se mantinha em Vassouras. No século XX que começava não se via mais nesta região os barões do café, nem a planta que a tinha feito famosa.

O conjunto de transformações aqui descritas culminou com a “transição para a nova economia de Vassouras - criação de gado - e proporcionou à região uma completa associação na comunidade de ‘cidades mortas’ do desgastado e devastado Vale do Paraíba.” (Stein, 1990: 323). A região se empobreceu e as necessidades de força de trabalho se reduziram com a expansão da criação de gado de forma extensiva nos pastiçais.

O exemplo da família Correa e Castro é típica desta transformação. As terras e bens da fazenda do Secretário, propriedade da família, foram hipotecadas pelo Banco do Brasil como garantia de um empréstimo monetário. Em 1908, ante a impossibilidade dos herdeiros de devolver o dinheiro, a fazenda foi confiscada e vendida. Ela mudou diversas vezes de proprietários até sua aquisição pelo frigorífico Anglo, do vizinho distrito de Mendes, e suas terras foram transformadas em pasto (Padilha, 1977: 59). Outras propriedades tiveram o mesmo destino.[7]

Entre 1910 e 1913 o Ministério de Agricultura levou a cabo uma pesquisa sobre as condições da agricultura no estado de Rio de Janeiro.[8] Os resultados da mesma expressam que os agricultores no município de Vassouras continuavam sofrendo as conseqüências dos processos aqui analisados, suas condições são qualificadas como “médias” na pesquisa. A comparação entre o salário dos trabalhadores agrícolas e o dos operários da construção civil na cidade de Rio de Janeiro, outro dos dados apresentados pela pesquisa, mostra as disparidades regionais: um auxiliar da construção civil na capital, ganha quatro vezes mais que um trabalhador agrícola no interior do estado. A fraqueza do poder de compra dos salários desta última categoria fica evidente quando se leva em conta o preço dos gêneros alimentícios também apresentados pela pesquisa: um salário mensal equivale a 60 Kg se açúcar branco, ou a 40 Kg de carne de boi, ou a 26 Kg de carne de porco ou a 6 Kg de manteiga. Com estes níveis de remuneração, um êxodo permanente de trabalhadores deve ter acontecido em direção às regiões onde eram melhor pagos. Assim, o fraco crescimento de população indicado pelo recenseamento de 1920, ou mesmo um decrescimento temporário, parece ser a hipótese mais provável de evolução demográfica regional.

Em meados dos anos 20 a criação de gado estava bem implantada, com todas as conseqüências sociais e econômicas para a região. De acordo com uma lista de propriedades de valor igual ou superior a 2 contos, de 33 fazendas recenseadas no primeiro distrito, 29 tinham criação de gado, associada ou não à agricultura.[9] Da próspera Vassouras não restavam mais que lembranças.

Bibliografia

Direção Geral de Estatística. Recenseamento Geral da República dos Estados Unidos do Brasil em 31/12/1890. A população do Rio de Janeiro.

Diretoria de Agricultura: Serviço de Estatística, Propriedades Agrícolas, Vol. 1. Rio de Janeiro, Papelaria e Typographia Marques Araujo e Cia, 1927.

Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio, Serviço de Inspeção e Defesa Agrícola: questionário sobre as condições da agricultura dos municípios do Rio de Janeiro. Inspecionados de 25 de Julho 1910 a 29 de Abril de 1913. Rio de Janeiro, Typographia do Serviço de Estatística, 1913.

Motta, Marcia M. Pelas ‘Bandas d’Alem’ – Fronteira fechada e arrendatários-escravistas em uma região de policultura - 1808-1888), dissertação apresentada à UFF, Rio de Janeiro, 1989.

Padilha, Silvia F. Padilha. Da monocultura à diversificação econômica. Um estudo de caso: Vassouras, 1880-1930, dissertação apresentada à UFF, Rio de Janeiro, 1977.

Raposo, Ignacio. História de Vassouras. Vassouras, Fundação 1. de Maio, 1935.

Ribeyrolles, Charles. Brasil Pitoresco, (1ª ed. 1859). Itatiaia, Universidade de São Paulo, 1980.

Secretaria de Obras Públicas e Indústrias. Questionário constante da Circular n. 3 de 20 de janeiro do corrente ano e Respostas dadas pelas Câmaras Municipais, Anexo. In: Relatório da Secretaria de Obras Públicas e Industrias. Rio de Janeiro, Papelaria Jeronymo Silva, 1898.

Silva, Antonio José Caetano da. Chronographia Fluminense (O Estado de Rio de Janeiro em 1896). In: Revista do IHGB, Tomo 67, Parte II, Rio de Janeiro, 1906.

Stein, Stanley. Vassouras – um município brasileiro do café, 1850-1900, 1a. ed. 1957. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990.

Vianna, Oliveira. Resumo histórico dos inquéritos censitários realizados no Brasil. São Paulo, IPE-USP, 1986.

 

Notas

[1] Direção Geral de Estatística, Recenseamento Geral da República dos Estados Unidos do Brasil em 31/12/1890. A população do Rio de Janeiro, p. XVI.

[2] Stanley Stein (1990: 266). Dados da Relação de todos os proprietários de terras, Intendência Municipal de Vassouras, março de 1890, Arquivo da Prefeitura de Vassouras.

[3] Ignacio Raposo (1935: 142). O mesmo autor nos informa que em 1864 foram fundadas as primeiras casas de costura em Vassouras, por duas senhoras francesas provenientes do Rio de Janeiro, acompanhadas de modistas da mesma nacionalidade.

[4] Uma visita ao atual Museu de Vassouras, o Museu da Hera, antiga residência da família Teixeira Leite, permite apreciar este consumo faustuoso: quadros, biblioteca particular, mobília, louça, espelhos, luminárias, vestimentas de luxo, pertenciam a esta família instalada na vila e que se enriqueceu pelas atividades financeiras.

[5] Esta matéria foi recuperada por S. Stein (1990: 164) e por I. Raposo, (1935: 220). O jornal chama de Festa da pobreza esta manifestação popular, à qual participaram representantes de todas as classes sociais. Os aderentes percorreram as ruas da vila com o retrato do benemérito protetor da pobreza vassourense até a sua residência. Aos discursos de circunstância se seguiu um abundante jantar oferecido pelo homenageado aos pobres no térreo. Mas o que Raposo não transcreve na sua crônica é que a classe alta foi convidada aos salões do andar superior, onde teve início um baile, resplandecente pela elegância dos trajes das damas e cavalheiros.

[6] Relatório da Secretaria de Obras Públicas e Indústrias, Questionário constante da Circular N. 3 de 20 de janeiro do corrente ano e Respostas dadas pelas Câmaras Municipais, Anexo, 1898.

[7] Como as fazendas de: José Caetano Alves, Manoel Machado Guimarães, Luiz Antônio de Aguiar, Virgílio José de Ávila, Antônio Furquim Werneck de Almeida e Lindorf Moreira de Vasconcelos. Ver Stanley Stein (1990: 331-2).

[8] Ministério de Agricultura, Indústria e Comércio, Serviço de Inspeção e Defesa Agrícola: questionário sobre as condições da agricultura dos municípios do Rio de Janeiro. Ver também Márcia M. Motta, 1989.

[9] Diretoria de Agricultura: Serviço de Estatística, Propriedades Agrícolas, Vol. 1. p. 470-483.