Estudos Sociedade e Agricultura

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Izabel Maria R. Ratto

De boa mãe de família à consumidora esclarecida: os currículos dos cursos de economia doméstica


Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994: 155-160.

Izabel Maria R. Ratto é mestre pela UFRRJ/CPDA.


Uma análise crítica do currículo dos cursos de Economia Doméstica, a partir de sua criação (1937) até 1990, revela a existência de um grande número de títulos que mostra a ampla gama de temas abordados pelos cursos e retrata o que se espera da atuação deste profissional.

Durante o período analisado, o currículo dos cursos sofreu modificações, muitas vezes em função do mercado de trabalho.

Em nossa análise, visando um melhor entendimento do problema, agrupamos as disciplinas em 4 grupos: Moral e Filantropia; Agricultura; Formação Geral e Ciências Aplicadas.

As disciplinas do grupo de Moral e Filantropia constituíam, no caso do primeiro curso de Economia Doméstica, então chamado Educação Familiar, o próprio núcleo do curso, deduzindo-se desse sistema moral a necessidade da educação familiar, que definia e ordenava os valores, as virtudes e os deveres da família. O eixo central, portanto, era constituído pela família, pela mulher mãe de família, visando prepará-la para ser esposa e mãe, únicas funções a que estava destinada e que estariam de acordo com sua "natureza".

Embora as disciplinas que explicitamente se referem à Moral desapareçam da grade curricular dos cursos em geral, seu "espírito" permanece, assumindo um caráter normativo em outras matérias. O que inicialmente constituía uma norma moral passa a ser uma norma "científica": normas e princípios para tomar decisões, uso eficiente do tempo e energia e racionalização do trabalho caseiro exemplificam essa mudança.

No segundo grupo, Agricultura, estão relacionadas primeiramente as disciplinas que tratam, de modo específico, de culturas e criações, principalmente as domésticas, atividades estas vistas como femininas no meio rural e, em segundo lugar, disciplinas como Economia e Sociologia Rural e ainda Extensão Rural, numa referência explícita a uma das atividades profissionais dominantes no mercado de trabalho do economista doméstico, até por volta dos anos 70.

O terceiro grupo é constituído por disciplinas de Formação Geral, incluindo as ciências exatas, naturais, humanas e sociais, pedagogia, psicologia e intervenção social.

As ciências exatas, nos primórdios dos cursos, achavam-se integradas aos ensinamentos profissionais. Seu peso é pequeno nos anos iniciais de funcionamento dos cursos. Porém, essas disciplinas vão-se desdobrando em muitas outras como a Química que se desdobra em Geral, Orgânica, Inorgânica, Analítica, Experimental, etc. Esse mesmo fenômeno se repete com relação à Física, Matemática, Estatística e outras. A diversificação e ampliação destas disciplinas tiveram a função de justificar o valor das ciências domésticas no mundo científico, com o papel implícito de legitimação dos cursos.

É válido ressaltar que este mesmo processo se dá em relação às ciências naturais: inicialmente poucas disciplinas que se desdobram mais tarde em outras tantas, com mais especialização.

Nas disciplinas relacionadas à Pedagogia observa-se que existem, cursos. Uma diversificação e um aumento de títulos é verificado após 1966, ocasião em que foi estabelecido o currículo mínimo dos cursos de Economia Doméstica, para formar licenciados para o ensino de Economia Doméstica e Educação para o Lar, no primeiro e no segundo graus. Os cursos continuam mantendo uma grande carga horária para atender a esse reduzido campo de atuação do profissional. Os títulos referentes à Psicologia atuam como apoio para as disciplinas de ensino. Ainda neste grupo encontram-se conteúdos que visam a fornecer técnicas para uma intervenção sobre a sociedade, como comprovam os títulos: Trabalho em Comunidade, Desenvolvimento de Comunidades, Técnicas de Trabalho com Grupo e outras. Grande número destes foi introduzido mais recentemente, o que denota um deslocamento do enfoque inicial dos cursos. O ensino, inicialmente voltado para treinar as mulheres a bem cuidar do lar e de seus ocupantes já não tem esse objetivo exclusivo; interessa-se, também agora, em trabalhar com comunidades.

O último grupo de disciplinas, as Ciências Aplicadas, inclui as áreas denominadas profissionalizantes, isto é, aquelas da formação específica de Economia Doméstica: Saúde, Família e Criança, Administração do Lar, Vestuário, Nutrição e Alimentos, Habitação, Decoração, Conservação e Artes.

Este apanhado de disciplinas profissionalizantes trata fundamentalmente da construção física, emotiva e estética do espaço doméstico, tendo por função não só normatizar este espaço, como também as pessoas nele existentes.

A área de Saúde comporta disciplinas como Higiene, Puericultura, Enfermagem, Programas de Saúde e Educação Sanitária, mostrando uma permanência, sem grandes alterações, desde os anos iniciais até o momento desta análise. O estudo dos programas de tais disciplinas aponta para o agrupamento dos saberes profissionais conforme as diferentes tarefas que as mulheres deviam desempenhar dentro do lar. Com Higiene e Enfermagem a preocupação era transmitir um conjunto de práticas que permitisse manter a boa saúde, prevenir as doenças e cuidar dos enfermos. A Puericultura não apresenta programas muito diferenciados: partem da puericultura pré-natal para a pós-natal, com prescrição de cuidados relativos à amamentação, higiene, banhos, enxoval, ambiente, móveis, etc., constituindo uma verdadeira série de técnicas de normalização das condutas maternas e da manutenção das crianças. Estes conteúdos não são totalmente descartados no percurso dos cursos de Economia Doméstica; a eles são acrescentados novos saberes, condizentes com a nova proposta de trabalho em comunidade, implicando na criação de outras disciplinas para tratar de saúde pública, saneamento, planejamento familiar, etc.

Na área Família e Criança as disciplinas incluídas estão relacionadas ao desenvolvimento e psicologia infantis em diferentes etapas da vida (Desenvolvimento da Criança, Psicologia Infantil, Psicologia do Adolescente, entre outras) e as que se referem especificamente à família. Neste caso, as disciplinas têm um caráter especialmente normativo, pois tratam das normas a serem acatadas dentro de um modelo idealizado de família. Mais recentemente, foram feitas novas introduções ao currículo, abordando o planejamento e administração de serviços de atendimento à criança, demonstrando que os objetivos dos cursos de Economia Doméstica se ampliam para a orientação e prestação de serviços.

A área de Administração do Lar engloba disciplinas que tratam da organização e administração do ambiente doméstico (Administração da Casa, Administração Familiar, Economia Familiar, entre outras); as que propiciam a prática e a análise das atividades domésticas e ainda Equipamentos Domésticos e Educação do Consumidor. Ficou visível através da análise dos programas destas disciplinas que elas se originam com a idéia de tornar "científicas" as atividades domésticas que sempre foram feitas pelas mulheres. O processo de organização e utilização do ambiente doméstico traz em seu bojo um discurso racional e científico, repleto de normas técnicas, que define uma parte do cotidiano sobre o qual o economista doméstico tem a "missão" de intervir. Assim, as disciplinas que compõem este grupo, independente de variação de conteúdo, visam a dispor, organizar, utilizar e manter o espaço doméstico, aplicando normas e procedimentos que se pretendem oriundos da administração científica. Porém, esse espaço da casa inclui também o material doméstico que é preciso saber usar e manter: para cada equipamento as instruções de seleção, usos, cuidados e funcionamento; para cada superfície as instruções sobre o material e as técnicas de limpeza. É exatamente esta a conotação das disciplinas do tipo Equipamentos Domésticos.

Ainda na área profissionalizante merece destaque a temática Vestuário que, em princípio, trata de produzir e conservar o necessário cotidiano da família: Confecção do Vestuário, Conservação do Vestuário, Têxteis, entre outras. A partir da década de 60 algumas disciplinas vão se diversificar e especializar, surgindo assim Vestuário Especial, Vestuário Infantil, Vestuário para Grupos de Baixa Renda, para Zonas Rural e Urbana, etc. Ao mesmo tempo outras disciplinas desaparecem formalmente: Lavagem e Engomagem, Remendo e Conservação, etc. Novos conteúdos são incorporados aos cursos a partir da década de 70, como Vestuário Industrial, Técnicas de Confecção Industrial e Administração da Produção na Indústria de Confecção. Estas inclusões comprovam claramente o desaparecimento da perspectiva de um trabalho artesanal voltado para a confecção e conservação das roupas no lar, que é substituída por uma perspectiva de ensino de técnicas para a produção em escala de pequena indústria.

Nutrição e Alimentos é, dentro da área profissionalizante, a que comporta maior número de disciplinas. Desta área fazem parte: Nutrição, Dietética, Preparo de Alimentos, Planejamento de Refeições, Cocção Experimental e inúmeras outras assemelhadas a essas. Com diferentes nomenclaturas estiveram presentes desde a origem dos cursos, permanecendo algumas delas ainda hoje na grade curricular dos cursos em questão. Observamos também em nossa análise que alguns títulos desapareceram (Ciência Culinária, por ex.); outras tiveram sua nomenclatura alterada e além disso, verificou-se um alto grau de especialização, aumentando conseqüentemente o número de disciplinas. A título de exemplo, Nutrição se diversifica em: Básica, Aplicada, Humana, Geral, Princípios de Nutrição e Bioquímica da Nutrição. Outro aspecto a ressaltar refere-se à tentativa de, também nesta área, alterar nomes de disciplinas, sugerindo uma tentativa de eliminar tudo aquilo que pudesse ser visceralmente associado ao doméstico. Em anos mais recentes são introduzidas disciplinas que favorecem o treinamento de funções técnico-administrativas em serviços de alimentação, significando uma busca da indústria como campo de trabalho profissional.

A parte que se refere à Habitação, Decoração e Artes compõem-se de títulos como Habitação, Decoração, Planejamento do Espaço Habitacional, Estilos em Interiores e outros relacionados. Aqui também se observa um desdobramento, com maior especialização das disciplinas, à medida que os anos avançam. Parece-nos que inicialmente o objetivo destes saberes correspondia às atividades afeitas às donas de casa, isto é, organizar, dispor, conservar e manter o espaço doméstico. Porém, em alguns casos, tratava-se realmente de fabricar caseiramente o necessário cotidiano: "Como fazer móveis simples" e "Aproveitamento de caixotes e pedaços de madeira", são exemplos desta faceta. Estes conteúdos desapareceram das programações. A organização e disposição da casa, indo desde sua localização, construção, arejamento, iluminação, ventilação, até regras de salubridade e saneamento, são conteúdos das disciplinas de Habitação. Já as de Decoração tratam mais especificamente do interior da habitação, do mobiliário em geral, quando não existe uma disciplina específica para isto. Atualmente está sendo deixado um espaço para a habitação no contexto social e político brasileiro.

Assim, a partir da análise dos currículos podemos apontar algumas questões para o conjunto dos cursos, como expomos a seguir: