Estudos Sociedade e Agricultura

autores | sumário

 

Adalmir Leonidio

Em torno das origens: Leroy-Beaulieu e o pensamento social brasileiro


Estudos Sociedade e Agricultura, 13, outubro 1999: 119-138.

Resumo: (Em torno das origens: Leroy-Beaulieu e o pensamento social brasileiro). Este artigo busca fazer uma análise da influência de Leroy-Beaulieu, através das categorias “colônia de exploração” e “colônia de povoamento”, em Caio Prado Jr. e Manoel Bomfim.

Palavras-chave: Colonização; Leroy-Beaulieu; Caio Prado Jr.; Manoel Bomfim.

Abstract: (On origins: Leroy-Beaulieu and Brazilian Social Thought). This article analyses the influence of Leroy-Beaulieu through the concepts/categories of "colony of exploitation" and "colony of settlement" in the thought of Caio Prado Jr. and Manoel Bonfim.

Key words: Colonization; Leroy-Beaulieu; Caio Prado Jr.; Manoel Bonfim.

Adalmir Leonidio é doutorando pela UFFR/CPDA


Em um estudo sobre a relação entre história e literatura Robert Darnton formulou a seguinte questão: o que é um clássico? O que acontece para um livro tornar-se um clássico? Por qual processo um texto se separa de todos os outros que pedem atenção? (Darnton, 1990).

Formação do Brasil contemporâneo de Caio Prado Jr. é exemplo da imposição de um clássico. Sobreviveu ao tempo, atravessou décadas, de edição em edição, reapareceu em sebos e afinal se estabeleceu nas prateleiras reservadas aos livros que hão de ficar (Prado Jr., 1942; 1995). Sorte muito diferente teve A América Latina: males de origem, de Manoel Bomfim. Repudiado por muitos em sua época, como Silvio Romero dentre outros, o livro obteve pouco sucesso literário. Editado pela primeira vez em Paris, em 1905, foi reeditado no ano seguinte no Porto, pela Livraria Chardron. A primeira publicação brasileira veio a lume apenas em 1939, feita pela tipografia Noite. Esquecido por longos anos, empoeirado, nas prateleiras de poucas bibliotecas brasileiras, apenas recentemente conheceu uma quarta edição (Bomfim, 1993). Livro enigmático, escrito em um tom pesado e carregado de metáforas biológicas, guarda semelhanças reveladoras com Formação do Brasil contemporâneo. O senso dos contrastes, o método genético de investigação, a estruturação dos capítulos, as categorias utilizadas, tudo levando à conclusão de uma sociedade “atrasada”.

Teria Caio Prado Júnior lido Manoel Bomfim? Aparentemente não, já que não o cita. Mas outra semelhança importante, aproximando os dois autores, lança um pouco de luz sobre o assunto. Trata-se de suas inspirações teóricas, se assim podemos dizer. Caio Prado Jr. cita, na forma de referência bibliográfica e de maneira bastante discreta, um livro que talvez possa ser uma das chaves do pensamento social brasileiro dos anos 20 e 30. Trata-se de De la colonisation chez le peuples modernes, de Paul Leroy-Beaulieu (Leroy-Beaulieu, 1882) [1] . Nossa hipótese é a de que esta obra contribue para a possibilidade teórica mais instigante de Caio Prado Jr., a idéia de “sentido da colonização”, para a qual concorreram duas categorias: “colônias de produção ou de exploração” versus “colônias de povoamento”.

O livro de Leroy-Beaulieu, no entanto, passou despercebido pelos críticos de Caio Prado Jr. Com exceção da referência de Fernando Novais (Novais, 1993: 34), salvo engano, o silêncio é absoluto. Este fato não deixa de causar um certo estranhamento, já que o próprio Prado Jr. considerava o autor um “clássico”, e a ele recorreu para embasar a sua idéia de “sentido da colonização”, conforme podemos antever na citação a seguir:

“Como se vê, as colônias tropicais tomaram um rumo inteiramente diverso do de suas irmãs da zona temperada. Enquanto nestas se constituíram colônias propriamente de povoamento (o nome ficou consagrado depois do trabalho clássico de Leroy-Beaulieu, De la colonisation chez les peuples modernes), escoadouro para excessos demográficos da Europa que reconstituem no novo mundo uma organização e uma sociedade à semelhança do seu modelo e origem europeus; nos trópicos, pelo contrário, surgirá um tipo de sociedade inteiramente original. Não será a simples feitoria comercial, mas conservará um acentuado caráter mercantil (...) No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical” (Prado Jr., 1942; 1995: 30-31)

Manoel Bomfim é um pouco mais indireto. A fonte por ele inúmeras vezes citada é Wilhelm Roscher, Principes d’économie politique (1857). Por outro lado, o livro Kolonien, kolonialpolitk und Answanderung (1848), deste autor, é a referência básica de Leroy-Beaulieu. Através da idéia de que o Brasil se constituiu para ser explorado, Bomfim elabora o conceito de “bragantismo”, um reiterar contínuo dos processos políticos instaurados com a metrópole portuguesa, e que não havia deixado de atuar em sua época. Portanto, a categorização de Bomfim parece ter a mesma origem da de Caio Prado Jr. [2] Então, o que os une afinal? Por que um se tornou clássico e outro ficou por tanto tempo empoeirado nas prateleiras?

I. Colônias de exploração e colônias de povoamento

Leroy-Beaulieu (1843-1916) foi um economista, ligado à economia política clássica inglesa e ao pensamento liberal francês de direita do século XIX. As bases de sua conceituação do processo de colonização encontram-se em dois autores principais: Adam Smith, que no livro quatro de sua obra mestra, A riqueza das nações, busca discutir o conceito de sistema mercantil e suas implicações coloniais; e W. Roscher, que no já citado Kolonien, kolonialpolitk und auswanderung faz uma importante classificação dos “tipos” de colônias.

O livro de Leroy-Beaulieu está dividido em duas partes. Na primeira é feito um balanço histórico da colonização, distinguindo-se dois grandes momentos: a colonização anterior ao século XIX e a colonização que passou a ter curso ao longo desse século. Na segunda parte, à luz do estudo feito anteriormente, o autor busca definir as categorias principais que compreendem o processo de colonização dos povos modernos [3] . São elas a “colônia de exploração” e a “colônia de povoamento”. Estas duas categorias permitiriam distinguir as diferentes sortes que tiveram os processos colonizadores, sobretudo na América. Dentro desta linha de raciocínio, a característica principal da colonização anterior ao século XIX foi a subordinação da colônia aos interesses da metrópole, a sua exploração e a sua “perpétua minoridade”. Esta situação só teria se modificado com a influência do “progresso das idéias políticas”, isto é, do liberalismo, pondo fim ao monopólio e ao comércio restritivo, bem como a toda forma de trabalho escravo. A partir daí todo processo de colonização deveria se basear numa nova concepção do trabalho e da produção (Leroy-Beaulieu, 1882: 1).

A colonização em geral, como movimento migratório dos povos, tem duas causas principais: o excesso populacional e as perseguições religiosas e políticas. “As razões que, no fim do século XV, levaram os povos da Europa a fundar estabelecimentos em além mar foram de outra ordem” (Leroy-Beaulieu, 1882: 2), basicamente econômicas. Criaram-se verdadeiras “empresas marítimas”, com o objetivo de explorar novas riquezas.

No espanhol ou no português predominava, como traço distintivo da personalidade destes “descobridores”, o “espírito de aventura”. Tais aventureiros não tinham o objetivo de se transportar para as novas regiões com suas famílias e lá fixarem-se, formando nova pátria. Iam com o único objetivo de encontrar mercadorias preciosas, abundantes e fáceis de extrair e trazer para seus países de origem. Entre esses “intrépidos navegadores” não havia lá um único homem com o “espírito e a característica de um colono (...) Característica esta e espírito este que possuíram, um século mais tarde, os puritanos e os quackers da Inglaterra, e que possuem nos nossos dias os emigrantes ingleses ou alemães para a Austrália e a América” (Leroy-Beaulieu, 1882: 2). Estava ausente, para Leroy-Beaulieu, o verdadeiro “pensamento colonizador”. Em contraste com a colonização inglesa, as colonizações portuguesa e espanhola desprezaram a produção agrícola, enfraquecendo o elemento produtivo. Não havia preocupações com os conhecimentos técnicos, “aprender a ler, escrever e dar preces é tudo que a América deve saber”. Como resultado tinha-se o “amor excessivo dos títulos e dos postos pela aristocracia crioula”, a abundância de advogados, notários, juizes, licenciados. Enquanto isso “os campos ficam desertos e sua fertilidade acusa inação”. Despreza-se em geral o elemento produtivo: “cada um vem para ser Senhor ou viver ociosamente”. E com isso a colônia permanecia num estado de “abatimento”, de “inércia” (Leroy-Beaulieu, 1882: 9).

Para o autor a idéia de “pacto colonial” está na base da “política colonial” imposta pelas coroas às suas colônias na América. Receosa de que suas dependências viessem a lhe escapar do controle, a metrópole buscou estabelecer mecanismos restritivos e exclusivos de comércio, segundo os quais as colônias deveriam se resumir à produção de matéria-prima destinada a abastecer o mercado europeu, recebendo deste, através dos portos espanhóis e portugueses, toda sorte de produtos manufaturados. Esta espécie de “perversão” do “sistema mercantil” deve-se ao desprezo pelo trabalho livre por parte dos colonizadores, mas também ao desprezo pelo livre comércio (Leroy-Beaulieu, 1882: 26).

Ao contrário das colonizações ibéricas na América, a colonização inglesa foi projetada, planejada, e não casual. Por isso os ingleses merecem ser chamados de “povos colonizadores por excelência”. Estavam ausentes neles a “sêde de ouro”, a “ambição das conquistas”, o “espírito de aventura e de tráfico”. Predominavam necessidades “mais urgentes”, “mais íntimas”. O típico colonizador inglês é “agricultor” ou “artesão”, “verdadeiro colono”. Ao passo que os colonizadores ibéricos eram oriundos, em sua grande maioria, de uma “nobreza ociosa” e “aventureira”, que pretendia recriar na América o ambiente aristocrático em que viviam, os colonizadores ingleses eram compostos por “trabalhadores” camponeses expulsos de suas terras.

“Enquanto os portugueses e espanhóis são marcados por sua visão quimérica, enquanto eles buscam no mundo inteiro o Eldorado de seus sonhos, os ingleses estão animados de um espírito prático e positivo (...) Eles buscam terras a cultivar, uma vez que a transformação agrícola ocorrida na Inglaterra deixou-os sem trabalho” (Leroy-Beaulieu, 1882: 91).

Segundo esta concepção a colonização inglesa foi a única que derivou de uma transformação interna da economia. [4] Os colonizadores ibéricos buscavam explorar riquezas já existentes através de monopólios e restrições a toda ordem de liberdade, enquanto os ingleses desejavam utilizar as terras livres para criar uma grande riqueza agrícola e industrial. Por tudo isso “observa-se nos ingleses disposições de espírito diferentes das dos espanhóis e portugueses” (Leroy-Beaulieu, 1882: 92).

Três fatores destacam-se do exame atento da colonização inglesa: o governo inglês, contrariamente ao que se passa com o espanhol e o português, não tomava parte na fundação das colônias; uma vez fundada as colônias, a ingerência da metrópole em sua administração interior foi sempre muito limitada de direito, e quase absolutamente nula de fato; por fim, um mesmo espírito aproximava as diversas províncias, por mais distintas que fossem: os “cidadãos” ingleses faziam valer, em toda parte para onde se deslocavam, os direitos inalienáveis de que gozavam na mãe-pátria (Leroy-Beaulieu, 1882: 93-94). O “self gouvernement” seria portanto a base do grande desenvolvimento americano: “a organização simples, elementar das colônias, e no entanto completa do ponto de vista das liberdades e garantias dos cidadãos, se presta admiravelmente ao desenvolvimento da cultura, da população e da riqueza” (Leroy-Beaulieu, 1882: 100).

Tanto quanto a constituição política, a organização econômica constitui fator essencial ao grande progresso observado nos Estados Unidos. A vantagem em relação às colônias espanholas e portuguesas manifesta-se, a exemplo do self gouvernement, no predomínio da auto-administração e no “bom regime” de apropriação de terras. Prevalece ainda um sistema de sucessão que favorece a igualdade de condições e a transmissão rápida de bens estimulando o trabalho. Por fim, há um sistema de tributação moderado.

Contudo, é o regime de terras livres e seu modo de apropriação “o ponto principal de todo sistema colonial inglês”. A metrópole ficou ausente do processo de distribuição das terras coloniais, deixou todas as terras livres à disposição, seja dos proprietários fundadores, seja das companhias de comércio, seja das assembléias coloniais. O resultado deste regime foi duplamente importante: favoreceu um forte movimento de ocupação do interior, que muito contrastou com o isolamento dos espanhóis e portugueses em determinados distritos; e mais importante ainda, propiciou a formação de pequenos proprietários agrícolas. Segundo Leroy-Beaulieu, até existiram grandes concessões de terras, mas estes grandes domínios não eram inalienáveis, ao contrário do que ocorria nas colônias espanholas e portuguesas.

“As substitutions, os majorats, a mão-morta, todos os entraves à livre circulação dos bens são desconhecidos (...) O bom senso dos colonos deixa de lado estes métodos caducos que não têm outro efeito senão criar uma sociedade velha em uma região nova. As terras obtidas pelos proprietários fundadores, ou pelas companhias de comércio, ou pelos governos coloniais, são todas submetidas ao regime de “livre soccage” (Leroy-Beaulieu, 1882: 103).

As “boas leis” de sucessão, a livre circulação, a livre disposição das terras, a ausência de distinção entre as propriedades fundiárias e de uma casta protegida por privilégios e com direitos distintos da maioria dos cidadãos, as garantias que cercavam a aquisição de terras e sua exploração e, enfim, a igualdade de condições, teve como efeito um poderoso estímulo ao trabalho e à prosperidade porque se baseou em um movimento emigratório muito particular. Em primeiro lugar, conforme vimos, no fim do século XVI e começo do XVII operam-se transformações profundas na agricultura inglesa, criando um excedente de braços. Em segundo lugar houve as perturbações religiosas. A organização especial dos puritanos, a severidade dos costumes, o gosto pelo trabalho, o espírito de ordem, de economia e de honestidade nas transações são qualidades que faltam aos católicos que migraram para as colônias espanhola e portuguesa. O “espírito protestante” constituiu-se em elemento mais seguro da grandeza e da opulência das sociedades. Em suma, ele foi o fundamento das necessidades de uma sociedade “adolescente e laboriosa”, que se desenvolveu sem entraves sob a influência de “uma Igreja animada de espírito de trabalho” (Leroy-Beaulieu, 1882: 107-108). Em uma palavra, este é o “povo americano”. [5]

Em vista dos exemplos espanhol, português e inglês, pode-se classificar as colônias em “três tipos irredutíveis”: as colônias ou feitorias de comércio; as colônias de plantação, ou de exploração; e as colônias agrícolas ordinárias, ou de povoamento.

As “colônias de comércio” são simples feitorias, estabelecidas em uma região rica e povoada. Como exemplo temos as colônias portuguesas nas Índias Orientais. Elas não atraem imigrantes e aqueles que para elas se dirigem, jamais trazendo suas famílias, são meros comerciantes que ostentam em geral o desejo de retornar à sua pátria de origem. Este é o tipo mais simples de colonização, nasce espontaneamente das relações comerciais e da supremacia de certos povos, e conserva-se enquanto as condições de comércio não se modificam.

As “colônias de exploração” caracterizam-se por possuírem facilidades especiais para a produção de matérias primas de exportação. Especializam-se em produtos destinados ao comércio exterior e organizam-se internamente para atender a este fim. Nas palavras de Leroy-Beaulieu, trata-se de uma “economia artificial”, formada por estabelecimentos que são “verdadeiras fábricas para o fornecimento de certos produtos como o açúcar, o café ou outro de alto preço no mercado”. São três as características principais de sua organização: concessão gratuita de grandes extensões de terra; necessidade de grandes capitais; e uma “organização artificial do trabalho”, seja do trabalho escravo, seja do imigrante, seja no uso de criminosos deportados. Une-se a estas três características uma quarta que age como cimento, isto é, a ausência de liberdades administrativa e comercial, os monopólios e privilégios mais ou menos restritivos, uma relação estreita entre a metrópole e a colônia que se denomina “pacto colonial”.

“Insistiremos mais uma vez na organização artificial que o pacto colonial e a escravidão imprimiram na economia  das colônias tropicais: elas organizam-se como fábricas que têm por único objetivo a exportação de açúcar, de café e de outros produtos, importando do exterior a maior parte do que necessita” (Leroy-Beaulieu, 1882: 199).

A exploração ativa e à outrance tende a promover um declínio mais ou menos rápido, porém inevitável, da produção. Em contrapartida, a riqueza se multiplica rapidamente, ao contrário da população, que cresce muito lentamente. Em outras palavras, não se forma um mercado interno vigoroso e regular. Em virtude disto o crescimento está submetido a constantes e repetidas crises. A exemplo de uma “economia artificial”, constitui-se uma sociedade igualmente “artificial”, desorganizada e isenta de espírito democrático. Predomina o absenteísmo dos proprietários, inexistem as classes médias e a opressão de uma multidão de homens sem direitos, considerados meros instrumentos de trabalho, constituem poderosos fatores anti-sociais.

Por outro lado temos as “colônias de povoamento”. Sua característica central é o fato de estarem voltadas para si mesmas. Isto é, centra-se nelas mesmas o princípio de seu desenvolvimento, não se sujeitando aos determinantes do comércio e do controle metropolitano. Desenvolvendo-se autonomamente, logo se tornam independentes da “mãe-pátria”, formando “estados livres e poderosos”. Ostentando um forte caráter democrático, a forma republicana é a que melhor se adequa à sua situação econômica. Como exemplo podemos citar a Nova Inglaterra e o Canadá.

Estas são as categorias principais quando se quer pensar a colonização moderna. No entanto, expressando um weberianismo avant la lettre, Leroy-Beaulieu adverte que “estes três tipos bem distintos, não se oferecem sempre em estado puro; às vezes dois deles podem se combinar sobre um mesmo aspecto” (Leroy-Beaulieu, 1882: 751).

II. O “sentido da colonização”

Inúmeros foram os trabalhos que buscaram analisar a obra e o pensamento de Caio Prado Jr. Seria excessivo, para um trabalho desta natureza, qualquer tentativa de colocá-los em diálogo. De maneira bastante genérica pode-se concordar com a afirmação da grande maioria destes trabalhos, de que foi preciso a Prado Jr. abandonar o marxismo - ao menos um certo marxismo - para fazer uma teoria consistente sobre a sociedade brasileira.

Entendemos isto num duplo sentido. Em primeiro lugar o conceito de “sentido da colonização” só se tornou possível à medida que Prado Jr. abandonou um determinado tipo de marxismo que, contrariamente a Marx, prestava obediência às categorias marxistas, tornando-as “eternas e imutáveis”. Isto é, para que Prado Jr. elaborasse este conceito foi preciso que saísse do determinismo da categoria de modo de produção e, sem deixar de lado o essencial da dialética materialista, pensasse a colônia a partir do conceito de totalidade (Almeida, 1996: 13-29). Portanto, uma das suas fontes é inequivocamente Marx.

Em segundo lugar, foi preciso que Prado Jr. buscasse em outras fontes, não marxistas, um nexo explicativo que lhe permitisse sair da camisa de força da categoria de modo de produção. A hipótese que sugerimos é a de que a sua segunda fonte inspiradora foi Leroy-Beaulieu, mais especificamente as suas categorias de “colônia de exploração” e de “colônia de povoamento”. Analisemos o conceito de “sentido da colonização” e vejamos a sua relação com estas categorias.

Olhando-se a história como um todo se perceberá uma linha mestra e contínua de acontecimentos que se sucedem em “ordem rigorosa”, e dirigida sempre numa determinada orientação. “Sentido da colonização”, portanto, pode ser compreendido como aquilo que houve de fundamental e permanente na evolução colonial. Segundo esta fecunda visão dialética da história, existe um fato histórico elementar, um átomo que dá sentido aos acontecimentos históricos em sua totalidade. Através da idéia de “todo histórico” é a unidade “estrutural” dos acontecimentos que importa a Prado Jr., as suas articulações reais, os seus traços globais, sociológicos, em uma palavra, a síntese histórica. É preciso ver o conjunto da formação brasileira dentro de um quadro mais amplo, que é o da atividade colonizadora dos países europeus, inserida no processo de acumulação mundial de capital. A colonização, portanto, integra o mundo em uma nova ordem, a da era moderna. A ocupação e o povoamento do Brasil seriam apenas um “detalhe” deste processo.

Como o descobrimento das terras brasileiras é um acontecimento situado dentro de um todo maior que é o comércio europeu, não há interesse inicial pelo povoamento por parte dos portugueses. É o comércio que lhes interessa nas ricas e povoadas terras da Ásia. Inicialmente, portanto, não há colonização no Brasil, se acompanhamos o pensamento de Leroy-Beaulieu. A ocupação de territórios , seu progresso e flutuação, subordinaram-se por muito tempo ao maior ou menor sucesso da mera  extração do pau-brasil.

Mas os objetivos comerciais da Coroa portuguesa seriam marcantes na colônia e iriam ditar-lhe o destino. Todo o processo colonizador é realizado tendo como sentido maior, fim último, a empresa comercial, e é esse sentido que explicará os elementos fundamentais, econômicos e sociais, da formação e evolução histórica brasileira. Em uma palavra, a sociedade que se organiza no Brasil está “voltada para fora” e não para dentro (Prado Jr., 1942; 1995: 19-32). O tipo de colono europeu que procura os trópicos e nele permanece não é o trabalhador, o simples povoador, como se dá nas colônias inglesas da América do Norte; é o explorador, o empresário de um grande negócio. O povoamento em grande parte efetivado no litoral reforça o caráter da colonização como empresa comercial. A economia, por seu lado, subordina-se à finalidade de exportar certos gêneros agrícolas. A produção está organizada a partir da grande propriedade monocultural trabalhada por escravos. As causas que determinam este tipo de organização encontram-se em um conjunto de condições externas e internas: a distribuição gratuita de terras; o caráter tropical do clima, propício a culturas de produtos valorizados no comércio internacional; os objetivos que animam o colonizador; as condições gerais desta nova ordem econômica mundial.

Mas o essencial a destacar é que a economia se organiza em função do mercado externo. A grande exploração rural torna-se a célula fundamental da economia agrária brasileira e a base principal em que assenta toda a estrutura social do país (Prado Jr., 1942; 1995: 119-127). A economia colonial está destinada a manter seu funcionamento em benefício de objetivos completamente estranhos. Sua estrutura conforma um organismo meramente produtor, constituído de um pequeno número de empresários e uma massa de trabalhadores escravos. Não há mercado interno, não há consumo, não há povo, tal como definia Leroy-Beaulieu. Em uma palavra, a colônia encontra-se voltada para fora de si mesma; constitui um núcleo de exploração e não de povoamento. O conceito de “sentido da colonização”, portanto, fornece um nexo explicativo, um todo coerente que ultrapassa as categorias de Leroy-Beaulieu, embora guarde estreitas relações com elas.

O que caracteriza a sociedade brasileira, a escravidão, está presente em todos os setores da vida social. A raça escravizada é percebida como um “corpo estranho e incômodo” e representa um sério obstáculo à integração da sociedade colonial como conjunto homogêneo. Sendo a escravidão onipresente, o trabalho torna-se ocupação pejorativa e desabonadora. Os dois grupos “bem classificados na hierarquia social” são portanto os senhores - dirigentes de um grande negócio - e os escravos - a massa trabalhadora. Os pobres livres são os desclassificados da escala social. Além deles os agregados e moradores de favor conformam a segunda parte da população vegetativa da colônia. Vive-se portanto em um “ambiente asfixiante” (Leroy-Beaulieu diria “economia artificial”) que não deixa lugar para outras atividades de vulto, para além da grande lavoura. O clã patriarcal, no qual estão integrados os escravos, é a base essencial da organização social. Trata-se de uma unidade composta do grande domínio rural e do conjunto de indivíduos que participa das atividades ou que a ele se agrega (proprietário e sua família, escravos e agregados). Em suma, é no clã que toda sociedade se abriga. O grande domínio centraliza a vida social da colônia e o proprietário se aristocratiza, formando uma classe à parte e privilegiada (Prado Jr., 1942; 1995: 269-289). Voltada para fora de si mesma, a sociedade tem sua razão de ser no grande clã rural. Há, por outro lado, uma completa ausência de organização regular do poder, que se encontra centralizado na metrópole portuguesa. Tudo isto dá à administração colonial o aspecto de uma “monstruosa, emperrada e ineficiente máquina burocrática” (Prado Jr., 1942; 1995: 333).

Por trás disto, conferindo-lhe sentido, está o “espírito particular” que anima o governo metropolitano na gestão de sua colônia. Mercantilizados os objetivos da colonização, negligencia-se tudo que não seja percepção de tributos. Os aspectos construtivos da administração e da política são relegados a um segundo plano. Expressão mais tarde consagrada, o Brasil torna-se uma “nação sem povo”, resultado do aglomerado de raças que a colonização reuniu ao acaso, sem outro objetivo que o de realizar uma vasta empresa comercial. Neste caso o “cimento original” da sociedade brasileira seria unicamente a subordinação do escravo ao seu senhor.

III. Da metrópole parasita ao polvo-capital: tradição de classe e bragantismo na política brasileira

Em Bomfim a relação com as categorias “colônia de exploração” e “colônia de povoamento” constitui um problema mais delicado, já que ele não cita Leroy-Beaulieu. Seria portanto uma análise forçada, a que pretende estabelecer tal conexão? Acreditamos que não. Em primeiro lugar porque Bomfim efetivamente conhecia Leroy-Beaulieu, ao menos de nome. A revista A Universal, fundada em 1901, que tinha como diretores Thomas Delfino, Rivadávia Correa e Manoel Bomfim, recebeu, em 1902, um artigo de Leroy-Beaulieu intitulado “América Latina” (Leroy-Beaulieu, 1902) em que o autor analisa o problema do colonialismo. Em segundo lugar Bomfim tem como referência teórica importante W. Roscher, origem das classificações e categorizações de Leroy-Beaulieu. Além disso, quando Bomfim escreveu A América Latina: males de origem, em 1903, não havia muitos livros sobre colonização, enquanto o do economista francês estava já em sua quinta edição, um relativo sucesso editorial entre os interessados no assunto. É preciso não esquecer que Bomfim escreve o seu livro em Paris, onde toma contato com vários autores importantes da época. Sem contar que um exemplar do livro havia sido doado à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Dadas estas circunstâncias, seria possível negligenciar um livro como De la colonisation chez les peuples modernes? Por que razão então Bomfim não o cita? A este respeito é preciso lembrar que o autor de A América Latina: males de origem tinha um estilo de escrever, muito comum na época, que tendia a omitir a autoria de longos trechos citados.

Da copiosa literatura produzida por Manoel Bomfim três livros merecem destaque, pelas conexões que estabelecem entre si. São eles A América Latina: males de origem (1903), A obra do germanismo (1915) e O Brasil nação: realidade da soberania brasileira (1928). São três obras atravessadas por um mesmo conceito, o de “bragantismo”, isto é, uma tradição política, uma herança da cultura ibérica que atravessa os diferentes momentos da história brasileira, e que tem origem na forma pela qual se realizou a colonização do Brasil. [6]

Em A América Latina: males de origem sustenta o autor que os “males atuais da América Latina” são efeito do “parasitismo das metrópoles ibéricas”. Tantos séculos de exploração teriam feito do Brasil um país enfermo, sem razão de ser em si mesmo. A idéia de “regime de exploração parasitária” coloca o Estado bragantino como ator privilegiado do processo de colonização. Centralizando em si todas as ações, a ele compete a distribuição de terras, a tributação do comércio, os monopólios e os privilégios. Enquanto em Prado Jr. o Estado aparece como uma peça do “sistema colonial” montado, em Bomfim, ao contrário, ele é o fator determinante, perdendo espaço para o comércio. A idéia de “parasitismo da metrópole” é rica no sentido de um problema originário que continua sufocando sua vítima, como em Leroy-Beaulieu o é a de “artificialidade”, tema recorrente em Prado Jr. em suas formulações sobre a constituição da economia nacional (Santos, 1999b). O parasita é, na biologia, aquele corpo simples, sem funções diferenciadas e complexas, porque vive sobre um outro corpo, sugando-o, exaurindo-o e tornando-o igualmente simples. Tudo o mais daí decorre: os grandes latifúndios, o uso do trabalho escravo, a monocultura, a estrutura social, todas formas muito simples de organização econômica e social. A grande propriedade é uma espécie de réplica do Estado metropolitano, “com toda a sua corte de parasitas”. “Quer na lavoura agrícola, quer na mineração, o regime adotado é exclusivamente a exploração” (Bomfim, 1993: 116-117). Em suma, colônias de exploração, e não de povoamento, são o objetivo da colonização nos trópicos, uma completa “perversão da vida econômica”. A grande propriedade centralizava toda a produção; tudo o mais tornava-se secundário. De um lado os grandes proprietários e de outro a massa de escravos: “era do trabalho agrícola ou mineiro que viviam todos; e para que ele pudesse bastar a tantos parasitas, era preciso que o trabalhador produzisse como dez e consumisse como zero” (Bomfim, 1993: 130).

O diagnóstico é muito parecido com o de Caio Prado Jr.: não há mercado interno; não há povo. A comparação com os Estados Unidos torna-se, neste ponto, inevitável: a colônia inglesa pôde se organizar segundo seus próprios interesses, sem a ingerência e o peso da metrópole. No Brasil, ao contrário, “os exclusivos mercantis, instituídos sobre o comércio colonial, as restrições fiscais, o sistema bárbaro de tributos, o embaraço, a proibição formal às indústrias manufatureiras” tornaram impossível qualquer esforço  de iniciativa particular. O grande elo entre a produção no Brasil e o comércio internacional é a idéia de “pacto colonial”. Bomfim não emprega o termo, mas expressa o seu conteúdo inequivocamente: “em matéria de vida econômica só se permitia às colônias: o praticarem a agricultura e a mineração de certos produtos, contanto que tudo fosse comprado e vendido à metrópole” (Bomfim, 1993: 134).

A produção não se organiza internamente. O Brasil tornava-se, na fecunda expressão de Bomfim, “uma fazenda de Portugal na América”. Nada de efetivo se cria: “riquezas econômicas - nenhuma; instrumentos de produção - escravos e açoites; regime de trabalho - a ignorância sistemática”. A sociedade colonial compreendia então três categorias de gente, nitidamente distintas: os escravos, “que só conheciam da vida o açoite e o tronco”; os senhores, vivendo “parasitariamente” do trabalho dos escravos; e, finalmente, “uma população de miseráveis” (Prado Jr. diria de “desclassificados”), germinando entre uma e outra, “ignorante, imprevidente, descuidosa, apática, nula”. Esta era a “massa popular”, a base do “trabalhador nacional”, “deseducada” do trabalho regular e verdadeiramente produtivo. [7] O mundo do trabalho no Brasil constituía portanto uma “patologia”, consequência natural do “regime de exploração parasitária” implantado pela metrópole portuguesa. “Quando todo o trabalho nacional era feito por negros e índios cativos, quando era possível haver escravo para tudo, não havia lugar para o trabalhador livre, a menos que ele quisesse trabalhar nas mesmas condições e pelo mesmo ‘preço’ que o escravo” (Bomfim, 1993: 140).

Os “desastrosos efeitos” deste regime econômico e social refletiam-se fatalmente pela imposição “às novas sociedades (de) uma organização política inteiramente antagônica e incompatível com os seus interesses próprios”. O aparelho político mantinha-se com o pensamento exclusivo de “sugar toda a riqueza colonial”. O Estado resumia-se a um simples “orgão de opressão”, um “corpo estranho” à evolução histórica do país. Os serviços públicos eram nulos e a máquina administrativa constava tão somente do fisco. “Faltava muito , ainda, para que ele (o Estado) apresentasse essa forma do Estado moderno, garantidor, protetor, orgão da nação, seu defensor e representante” (Bomfim, 1993: 141). O Estado metropolitano é então “satanizado”: ele não possui nenhuma idéia “de bem ou de útil”. “Ainda hoje se notam estes sentimentos, porque, ainda hoje, ele não perdeu o seu caráter, duplamente maléfico - tirânico e espoliador”. Aqui já podemos ver a idéia da presença contínua do Estado português abafando a vida nacional, idéia esta que mais tarde daria origem ao conceito de “bragantismo”. O parágrafo a seguir resume bem esta idéia:

“Os representantes do Estado são em rigor os caixeiros da coroa, na gerência das fazendas de ultramar (...) A vida política autônoma é, geralmente, perturbada, entravada, abafada, pelo poder absorvente, centralizador, sem contraste, dos agentes da metrópole. Destarte, se estabelece por toda a parte um regime político-administrativo, não só antagônico, como ativamente infenso aos interesses das colônias. Não era, como nos Estados Unidos, um regime político espontâneo, inspirado pelas necessidades próprias das sociedades nascentes. Não; era um regime antipático, iníquo, arcaico e incompleto” (Bomfim, 1993: 143-144).

Em 1914 surge um texto de ocasião, A obra do germanismo, com reflexos, porém, de longa duração. Em agosto daquele ano a Alemanha invade a Bélgica: inicia-se a Primeira Guerra Mundial. Alguns dias depois Bomfim escreve um artigo, posteriormente publicado no Jornal do Comércio, que é, em parte, um panfleto de repúdio à guerra que se iniciava, mas por outro lado revela conceitos chaves nas concepções políticas do autor. A Alemanha, unificada tardiamente e tendo como principal agente modernizador o Estado, adotava uma atitude imperialista e agressiva, que aparecia como o “mais cruel atentado à civilização”. O termo civilização tem aqui o sentido restrito de civilização ocidental, cujo melhor exemplo seria a França. Frente à tradição democrática desse país, a “obra prussiana”, como Bomfim gostava de se referir à política germânica, aparecia como uma “monstruosa catástrofe”. Certamente o autor havia sido impregnado pela francofilia da campanha contra a guerra, mas isto não impede que neste texto se revelem conceitos chaves para sua concepção política e para sua visão de Brasil.

A Guerra era então entendida como o resultado lógico da ação imperialista das nações européias, em particular da Alemanha, que queria pacificar o mundo dominando-o e acabando com a “pluralidade das nações independentes”. Segundo Bomfim, era crença entre os alemães que, vitoriosos na Guerra, o bem-estar social conquistado com a “obra prussiana” de centralização política se generalizaria. Trata-se de um “estado de espírito” comum, para além das classes: “o socialista ao lado do burguês, o camponês ao lado do sábio, o príncipe ao lado do operário, todos lutam pela liberdade alemã, pela familia alemã, pela ciência alemã e pelo progresso alemão” [8] (Bomfim, 1915: 11). Esta era mais uma razão para se opor ao imperialismo, personificado no “despotismo de ferro” do “Estado Prussiano”. Cooperar na luta em favor do operariado internacional significava se opor ao “inimigo das nossas mais sagradas aspirações - o militarismo prussiano, o imperialismo alemão” (Bomfim, 1915: 15). Toda forma de ação despótica igualava-se ao “parasitismo metropolitano” e por isso não podia ser sinônimo de “real progresso”. A “desgraça” da civilização moderna podia então ser resumida no “espírito prussiano” que dominou a Alemanha. “A expansão prussiana, que, ontem, era apenas nacional, unidade germânica, tornou-se mundial, imperialista”; tornou-se símbolo de “conquista e espoliação”.

É preciso não dar menos crédito do que a idéia verdadeiramente merece. O “espírito prussiano” tem aqui a dimensão de um importante conceito em Bomfim, a idéia de que “com o prussianismo, substituem-se os Kant pelos Bismark”. Quando da unificação da Alemanha vê-se surgir um “império moderno-barbaroxa, monstro político, doloroso contraste daquele ideal que Fichte propusera à Germânia culta e pensadora”. O “grande Estado” que se forma na Alemanha e substitui a sociedade em sua obra de modernização. Assumindo a forma de um “parasitismo político-econômico”, é a “obra política mais imperfeita, a mais estéril e incapaz das instituições políticas da Europa”. Por trás de sua aparência modernizadora e civilizadora, escondem-se “instituições arcaicas” que se prolongam no tempo; “por baixo dele (do Estado), o feudalismo, perturbando, retardando a evolução nacional” (Bomfim, 1915: 21).

Esta idéia da permanência de um “espírito conservador” por trás do Estado prussiano tem importantes consequências teóricas para as formulações posteriores de Bomfim. Ela será o fio condutor para a elaboração do conceito de “bragantismo” e para o estudo do problema da direção política na formação da “nação brasileira”. Em O Brasil nação: realidade da soberania brasileira (1928), o Estado aparece sob uma dupla configuração: de um lado tem-se as “classes dominantes” e de outro “os profissionais dirigentes”, ou “castas-classes”. Estes dois elementos conjugados representam a garantia da posição privilegiada e exploradora do Estado sobre a massa da população, criando um antagonismo entre os “interesses individuais e as necessidades gerais”, e portanto esterilizando a democracia (Bomfim, 1996: 49).

Bomfim quer mostrar que a classe de proprietários rurais, desde os grandes senhores de engenho até os barões do café, nunca representou fator de oposição ao Estado bragantino, herdeiro direto do “parasitismo metropolitano”. Com isso não se forma um grupo de interesses genuinamente nacional, pronto a generalizar as suas atitudes políticas. Incorporadas ao Estado, estas classes diluem-se em demandas particularistas e aderem à tradição política que se perpetua. “Se há um gênio nacional-brasileiro, esse ainda não teve realização pois que a nação continua abafada, escravizada, pela classe dirigente, como o era antes pelo governo da metrópole, de quem são, os mesmos dirigentes, herdeiros diretos e continuadores imediatos” (Bomfim, 1996: 451). O conceito de “tradição de classe”, destacando o aspecto conservador das classes que buscam se perpetuar no poder, remete ao conceito de “bragantismo”, e emparelha ou homogeiniza as classes dominantes e os grupos dirigentes do Estado. Os grupos dirigentes aos quais Bomfim se refere são a burocracia estatal, formada na tradição jurídica coimbrana. Graças a ela perpetua-se uma “ordem passiva e fixa”. Neste sentido Bomfim não deixa de se admirar com o “progressismo” da burguesia européia, se comparada com o conservadorismo das classes dominantes no Brasil.

Assim, “nação ou colônia, o Brasil continua o triste destino: domínio, farta pastagem da bestialidade má em que se refaz e se perpetua o regime bragantino”. “Nação sem voz nos próprios destinos” o Brasil era ainda uma pátria a conquistar, uma sociedade a construir. Era preciso assegurar a liberdade política, condição para a justiça, e criar as próprias possibilidades de progresso. “Nação sem povo”, portanto, o Brasil apenas existia como “serventia de uma política de feitores”. “Explorados, subjugados, escravizados, aviltados, espoliados de tudo, eles deram feição e tom ao povo brasileiro” (Bomfim, 1996: 553).

Para usar um termo que se tornou corrente entre alguns historiadores e sociólogos, Bomfim seria um americanista. Através do conceito de “bragantismo” pretende mostrar um contínuo reiterar, através do tempo - Colônia, Império, República - da cultura de fundação. A noção de “cultura ibérica herdada” é o “fio vermelho” da obra de Bomfim, como o é o de “sentido da colonização” para Prado Jr. E como vimos, ambos derivam das categorias “colônia de exploração” e “colônia de povoamento” de Leroy-Beaulieu. Em A América Latina: males de origem, Bomfim faz todo um estudo prévio da cultura ibérica. Esforça-se por definir o “tipo ibérico” que se transporta para os trópicos. Nação formada na constante guerra contra os árabes, Portugal definiu-se por seus hábitos de viver de “saques e rapinas”. O que lhe define a alma é “a audácia do bandido, a intrepidez cruel do toureiro, a selvageria das festas e torneios”, a cultura intensiva dos “instintos guerreiros e depredadores”. O “gosto ao luxo e à riqueza facilmente adquiridas” levaram os portugueses a “ter horror e repugnância ao trabalho normal, sedentário, verdadeiramente produtor”. A “vergonha é trabalhar, lavrar a terra”.

Portanto, não foi a escravidão que gerou a “cultura do ócio”, ela apenas a confirmou e intensificou. “Quando começou a colonização da América, já as nações peninsulares estavam viciadas no parasitismo, e o regime estabelecido é, desde o começo, um regime preposto exclusivamente à exploração parasitária”. O “estado de espírito” que formou a sociedade colonial havia sido herdado de Portugal e se perpetuava ao longo dos anos. O resultado era uma sociedade “disforme”, “doente”, “descaracterizada”. Neste tipo de interpretação está implícita uma determinada concepção de estrutura social sobre a qual o trecho a seguir fala por si:

“As classes sociais estavam confundidas, e os plebeus olhavam com desdém para as profissões mecânicas. Não haveria barbeiros, nem sapateiros, nem artífices, se não fossem os de fora. A América produzia com o trabalho dos negros o bastante para alimentar o luxo de uma aristocracia perdida e a ociosidade de uma classe média beata. O povo embrutecido e mole, perdidos os hábitos do trabalho e o vigor da inteligência, deixava correr ociosa e idiota uma vida cujo princípio não compreendia” (Bomfim, 1993: 109).

O atraso era avaliado então como função da persistência da herança ibérica na formação histórica brasileira. “O regime parasitário sob o qual nasceram e viveram as colônias da América do Sul influiu naturalmente sobre o seu viver posterior, quando já emancipadas”. O “iberismo herdado”, como mais tarde alguns sociólogos prefeririam chamar, era o caminho natural do autoritarismo e do burocratismo, conforme vimos. Daí a metáfora do “polvo-capital” para se referir ao Estado, que além de monstruoso, possui inúmeros tentáculos, com garras e ventosas, através das quais se pode fixar à sua “presa”, sendo necessário uma força também “monstruosa” para apartá-lo.

Conclusão

Buscou-se, com este artigo, chamar a atenção para um autor praticamente esquecido no Brasil (Leroy-Beaulieu), mas que teve grande importância não apenas para Caio Prado Jr., consagrado por nossa historiografia, como também para Manoel Bomfim que, embora muito instigante, tem permanecido no ostracismo, a não ser por algumas raras teses, ou artigos recentemente publicados. Há inúmeras diferenças entre os três autores, sobretudo porque viveram em épocas distintas. Caio Prado Jr. era marxista, militante do PCB dos anos 40 aos 70, embora com certa liberdade teórica. Manoel Bomfim era simpático à causa do socialismo, durante os anos em que o PCB havia sido recém-fundado, mas sem a inserção política de Prado Jr. Por outro lado, Leroy-Beaulieu era um liberal de direita, aderindo ao bloco de republicanos que fazia ferrenha oposição aos socialistas e ao movimento operário nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial (Gallo, 1984: 539). Talvez por isso o silêncio em torno de Leroy-Beaulieu, entre os críticos de Prado Jr.

Contudo, parece incontestável a influência das categorias “colônia de exploração” e “colônia de povoamento”, de Leroy-Beaulieu, nas formulações dos dois autores brasileiros. Caio Prado Jr., embora esteja pensando na constituição de um capitalismo que se torna mundial, acaba por esbarrar com a idéia do Brasil como uma “colônia de exploração”, dando com isso maior consistência ao conceito de “sentido da colonização” e captando o “sentido não clássico” de estruturação da economia nacional (Santos, 1999b).  Bomfim, por outro lado, com o conceito de “bragantismo”, também está pensando no Brasil como uma colônia que se constituiu para ser explorada, graças ao peso avassalador do Estado metropolitano. Embora se trate de um autor relativamente confuso, romântico e utópico, é fácil antever sua perspectiva política: defendia uma espécie de “revolução agrária”, próxima do modelo mexicano, mas na qual o papel dos intelectuais seria decisivo no sentido de “formar uma opinião incompatível com a injustiça”, ou melhor, um “consenso” revolucionário. Esta seria a única maneira do Brasil acordar de seu “sono colonial”. É preciso lembrar que Bomfim diz isto nos anos 20, época em que o tema do caráter colonial mantido pelo Brasil independente não era corrente. Não é demais lembrar que Prado Jr. só desenvolveria o tema em 1933 (Santos, 1999b).

Referências bibliográficas

Almeida, Angela Mendes de. “Notas de leitura de uma visão histórica do campo”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n° 40, 1996, p. 13-29.

Bomfim, Manoel. A América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 1993.

__________. O Brasil nação: realidade da soberania brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

__________. A obra do germanismo. Rio de Janeiro: Typ. Besnard Frères, 1915.

Darnton, Robert. O beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

Freyre, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.

Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Leroy-Beaulieu, Paul. De la colonisation chez les peuples modernes. Paris: Guillaumin, 1882.

__________. “América Latina”. A Universal. Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1902, n° 31, ano II.

Novais, Fernando A. Estrutura e dinâmica do antigo sistema colonial. São Paulo: Brasiliense, 1993.

Prado Jr., Caio. Evolução política do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1933.

__________. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1995.

Santos, Raimundo. “‘Opinião pública’ e partidos políticos em alguns textos de Caio Prado Jr.”. Rio de Janeiro: CPDA/UFRRJ, 1999b.


Notas

[1] A primeira referência de Caio Prado Jr. a Leroy-Beaulieu aparece em Evolução política do Brasil (1933), mas é em Formação do Brasil contemporâneo (1942) que ela adquire maior consistência.

[2] Resta pesquisar, como se verá adiante, qual a importância que estas categorias tiveram na obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1995). Da mesma forma, seria frutífera uma análise que buscasse estabelecer as influências de Leroy-Beualieu em Gilberto Freyre, uma vez que este autor o cita em sua obra, também considerada clássica, Casa grande e senzala (1987). Neste caso é preciso lembrar que Freyre também cita, com relativa frequência, algumas das principais obras de Manoel Bomfim.

[3] O termo “povos modernos” é usado para distinguir os processos colonizadores iniciados com as expansões marítimas no século XVI, da colonização em sentido geral, como migração de povos.

[4] O autor portanto envolucra em um mesmo processo, carregado de valores positivos, tanto o deslocamento dos perseguidos pelas lutas religiosas, no século XVI, quanto aqueles que expulsos do campo pelo cercamento das propriedades rurais, no século XVII, ao invés de engrossar as fileiras do proletariado inglês, emigram para a América.

[5] Como diria mais tarde Sérgio Buarque de Holanda, este é o “tipo trabalhador”, em oposição ao “tipo aventureiro” do espanhol ou português (Buarque de Holanda, 1995).

[6] Este conceito, com outros nomes, continuará presente na bibliografia posterior.

[7] Raimundo Santos sustenta a idéia de que o tema da miserabilidade é um problema estratégico de Prado Jr., levando-o inclusive ao seu supusto “marxismo circulacionista” (Santos, 1999b).

[8] Optamos por atualizar a grafia em língua portuguesa nas citações desta obra.