Estudos Sociedade e Agricultura

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Luiz Carlos Beduschi

A formação dos assentamentos rurais no Brasil


Estudos Sociedade e Agricultura, 13, outubro 1999: 151-153.

The Establishment of Rural Settlements in Brazil: Social Processes and Public Policies


A elaboração de uma resenha bibliográfica pode ser motivada por duas situações. A primeira é aquela em que alguém lê um livro e descobre que as opiniões nele contidas contrapõem-se totalmente às suas, o que provoca neste leitor a necessidade incontrolável de refuta-las através da fundamentação de um ponto de vista próprio sobre o mesmo objeto de estudo. A segunda situação é aquela em que alguém lê o livro e descobre em suas paginas um universo de idéias e argumentos que o convencem da sua importância e coerência, fazendo com que sinta necessidade de dividir com todos aqueles que estão minimamente relacionados com o tema as suas impressões sobre o mesmo.

Essa segunda situação é a que caracteriza e justifica a elaboração desta resenha da recente publicação organizada por Leonilde Servolo de Medeiros e Sergio Leite sobre a formação dos assentamentos rurais no Brasil. Sua leitura é fundamental para os que estão envolvidos com a temática agrária e do desenvolvimento rural no país.

Fruto de um esforço de equipe, o livro nos brinda com uma abrangente coletânea de artigos, elaborados pelos pesquisadores das equipes regionais que integram o projeto “Impactos dos Assentamentos Rurais – dimensões econômicas, políticas e sociais”, que relacionam a formação e consolidação dos assentamentos rurais no Brasil com os processos sociais e a elaboração e implementação de políticas públicas em seis estados representativos das microrregiões brasileiras. Alem dessa abrangência espacial, a fundamentação em processos históricos, desencadeados nas ultimas décadas, possibilita ao leitor visualizar e compreender o quadro amplo de atores sociais que compõem a rede sociotécnica, para falar como Bruno Latour, relacionada à reforma agrária no Brasil.

Já na apresentação, os organizadores introduzem os principais aspectos que serão abordados no livro, como “a gênese e o desenvolvimento das formas de reivindicação e pressão social, o papel das organizações rurais e dos movimentos socais, as tendências, evolução e marcas principais dos assentamentos rurais e as relações com o Estado e suas políticas, além de mapear os principais processos sociais desencadeados no período em diferentes regiões”.

Assumindo como verdadeiro o fato de que todos os assentamentos surgem como resultado de conflitos sociais relacionados a contextos onde o tema reforma agrária ganha visibilidade na mídia e impõe-se na agenda política, o que resulta em desapropriações ou compra de terras, o livro mostra que a criação dos assentamentos tem como objetivo fixar os grupos demandantes, que se organizam principalmente a partir do final da década de 70 e inicio dos anos 80, e aliviar as tensões sociais decorrentes destas demandas. É assim no caso do Rio Grande do Sul, onde a analise de quase duas décadas permite a identificação de três diferentes fases, marcadas pela alteração do tipo de “interlocutor governamental” e pela relação entre a “dinâmica social” empreendida pelo MST e seus resultados geográficos, em termos de novos assentamentos. Ou em São Paulo, onde a organização e difusão dos movimentos sociais no campo ocorreram em paralelo à disputa e conquista de frações localizadas do espaço agrário e sua transformação em assentamentos. O que existe, portanto, não é uma política de reforma agrária com vistas ao desenvolvimento rural e mudanças significativas da configuração territorial rural, mas ações que buscam atenuar conflitos sociais. Marcados, então, pela inexistência de um planejamento prévio, os assentamentos enfrentam situações bastante adversas, que comprometem sua viabilização econômica e social. Em Sergipe, por exemplo, mais da metade dos assentamentos está localizada no semi-árido, o que traz problemas adicionais à sua reprodução. Em Mato Grosso, a marca é o isolamento,o que dificulta o acesso a mercados e à infra-estrutura urbana.

Como os conflitos são regionalizados e heterogêneos, as ações, tanto do poder publico quanto dos grupos demandantes, são muito variadas. Ainda que o surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), na década de 80, consiga colocar o tema reforma agrária ma mídia em nível nacional, grande parte dos projetos de assentamento surgem e são responsabilidade de órgãos estaduais criados especialmente para esse fim, deslocando para esse nível a intervenção do poder publico, antes restrita ao nível federal. A reforma agrária passa a ser disputada como espaço político por diferentes atores, formando complexas redes que devem ser analisadas e compreendidas.

Os artigos, portanto, desnudam as redes de interesses que se formam em torno do tema da reforma agrária nos diferentes estados analisados. Os grupos demandantes, que se apresentam sob múltiplas formas (assalariados, posseiros, arrendatários, pequenos produtores, seringueiros, trabalhadores urbanos excluídos do mercado de trabalho), interagem com diversos organismos governamentais (Governo Federal, Incra, Poder Judiciário, Governos Estaduais e Municipais, Secretarias de Agricultura, Institutos de Terra etc.), e não-governamentais (ONG’s voltadas ao desenvolvimento rural e de assessoria aos trabalhadores, entidades vinculadas à Igreja, organizações de representação como os sindicatos, associações e cooperativas, entidades patronais etc.), formando redes que são caracterizadas pela constante tensão entre os diferentes interesses dos seus componentes, que têm concepções também diferenciadas a respeito do seu papel.

Essa idéia de rede leva a um grau de heterogeneidade que só pode ser apreendido pela análise detalhada dos seus componentes e do sentido de sua ação, o que é conseguido no livro através dos artigos elaborados pelas equipes regionais do projeto.

É dado destaque também às formas de organização dos trabalhadores que, após o processo de assentamento, têm que viabilizar a produção e a comercialização para garantir a sua reprodução. São analisadas as condições produtivas e as principais características dos assentamentos, bem como os resultados que estão sendo alcançados, significativos em termos de renda e melhoria da qualidade de vida. Alem disso, são apontadas algumas transformações importantes no modo de organização da produção e divisão interna do trabalho, que se contrapõem ao modelo estereotipado de viés produtivista. São exemplos dessas transformações os assentamentos pluriativos do Rio de Janeiro, marcados por fortes relações com os centros urbanos, e uma nova modalidade de assentamento no Acre, as reservas extrativistas.

Em suma, o livro consegue, com êxito inquestionável, cumprir o seu objetivo, que é, segundo os organizadores, oferecer uma ampla visão da diversidade atual dos assentamentos rurais no Brasil, bem como tratar as condições que pautaram sua origem, emergência e consolidação, regatando. Para tanto, os processos sociais e as políticas públicas a eles diretamente relacionados.

 

A formação dos assentamentos rurais no Brasil: processos sociais epolíticas publicas / Organizado por Leonilde Servolo de Medeiros e Sérgio Leite. Porto Alegre / Rio de Janeiro, Ed.Universidade / UFRGS /CPDA, 1999.