Estudos Sociedade e Agricultura

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Delma Pessanha Neves

Assentamento rural: confluência de formas de inserção social


Estudos Sociedade e Agricultura, 13, outubro 1999: 5-28.

Resumo: (Assentamento rural: confluência de formas de inserção social). O artigo explicita os caminhos metodológicos e as estratégias analíticas adotadas para compreender o processo de assentamento rural – reconhecimento do acesso a terra por trabalhadores segundo o Programa Nacional de Reforma Agrária. Este processo é definido como expressão de mudanças desejadas, coordenadas pela mobilização dos candidatos à posição de produtor agrícola e tuteladas pela intervenção, nem sempre favorável, de titulares do Estado. Enfatizo a confluência de fatores diversos para a viabilidade do acesso à posição social reivindicada.

Palavras-chave: grupos de interesse; mobilização social; mediadores sociais.

Abstract: (The rural settlement: the convergence of forms of social insertion). In this study, I explain the methodological approaches and the analytical strategies adopted in order to understand the process of rural settlement – recognition of access to land by workers in accordance with the National Programmer of Agrarian Reform (Programa Nacional de Reforma Agrária). This process is defined as an expression of desired changes, led by mobilization of candidates to the position of agricultural producer and supervised by the intervention – not always in favor of the workers – of State officials. It is stressed that the convergence of several factors makes access to the claimed social position viable.

Key words: interest groups; social mobilization; social mediators.

A versão original deste texto foi apresentada na mesa redonda Assentamentos rurais - metodologia de pesquisa e sistemas de avaliação, do IX Congresso Brasileiro de Sociologia: A sociologia para o século XXI, Porto Alegre, 30 de agosto e 3 de setembro de 1999.

Delma Pessanha Neves é professora da UFF.


Em correspondência à intensidade do debate sobre as razões favoráveis ou desfavoráveis à implementação de um programa de reforma agrária no Brasil, emergem os investimentos no sentido de mensurar a eficácia do processo de assentamento rural, isto é, das intervenções pontuais do Estado no sentido de corresponder às pressões dos trabalhadores mobilizados para a constituição da posição social de titular de lote de terra, conforme regras do Plano Nacional de reforma Agrária (1985), do Estatuto da Terra (1964), leis e atos complementares (Ver D’ Incao e Roy, 1995; Medeiros et alii, 1944, 1999; Romeiro et alii, 1944). Múltiplos são os fatores levados em consideração para esta avaliação [1] , embora sejam econômicos os quais estimulem os balanços [2] .  A unilateralidade da avaliação, embora demonstrando a eficácia econômica dessa inserção vis-à-vis o assalariamento e a parceria rurais, empobrece a concepção sobre o processo de assentamento rural [3] . O processo de construção do produtor agrícola assim reconhecido – assentamento rural - [4] se substancia pela transversalidade de relações e de interferências institucionais.

Desinteressados pela avaliação prática, mas motivados pelo registro analítico do processo de reforma agrária a partir dos dispersos projetos de assentamento rural, pesquisadores têm considerado como objeto de análise, ora o processo social, ora a unidade territorial, ou as duas unidades, muitas vezes sem plena consciência da passagem de uma à outra. Ressaltam, então, múltiplos aspectos, alguns de natureza prática e política, outros mais vinculados a um reducionista estranhamente empírico. Este estranhamento, em grande parte, deve-se ao fato de o Assentamento, enquanto unidade territorial, se constituir em espaço de reorganização dramática das relações e de constituição ou de reconversão de posições, permitindo que fatores geralmente naturalizados na vida social venham à tona. É o caso, por exemplo, da ênfase no sistema de parentesco e nas relações familiares ou vicinais, como se tais relações pudessem ser compreendidas pela excepcionalidade. É também o caso do distanciamento entre idealização e prática, como se o processo de assentamento representasse ou devesse representar uma suposta homogênea vontade política dos titulares do Estado.

Visando contribuir para a construção de caminhos metodológicos e estratégias analíticas para a compreensão do processo de assentamento rural, neste artigo, levanto algumas questões que considero fundamentais para a compreendê-lo, desde que concebido como processo de mudança desejada, coordenada pela mobilização dos candidatos à posição de produtor agrícola autônomo, mobilização cujo objetivo é obter a intervenção do Estado na administração de conflitos e na reforma da estrutura fundiária.

O objeto de análise enfatiza, assim, a confluência de processos diversos. Tais processos permitem a redefinição social de agentes mobilizados em torno de reivindicações de condições para produzir e, por tais instrumentos, consolidar o acesso à terra; em torno do reconhecimento de suas demandas na agenda de redistribuição de recursos; e em torno da ruptura do isolamento, quase sempre instrumentalmente ampliado, em face dos efeitos de desmobilização desejada por titulares de certos órgãos do Estado, em tese voltados para a objetivação do PNRA.

Mas a proposta de construção de modelo de pesquisa e sistema de avaliação não comunga com qualquer pretensão de apresentar caminhos para toda e qualquer pesquisa sobre processo de assentamento; ou não cai na tentação inocente de achar que uma proposta pode cobrir a multiplicidade de aspectos aí em jogo. O processo de assentamento como situação empírica permite tantos olhares quanto desejados. Minha pretensão é explicar, de forma sistemática, os pressupostos que me orientaram na construção do texto que agrega dados de pesquisa sobre processos de assentamento (Neves 1997b). Suponho que esta tomada de consciência e exposição pode colaborar com outros pesquisadores, no sentido de facilitar a compreensão das especificidades que desejam demonstrar e destacar. Ao final, participando deste trabalho intelectual coletivo, os procedimentos valorizados para o estudo do processo devem ser melhor consolidados.

O atendimento à proposta de reflexão sobre sistemas de avaliação dos processos de assentamento rural se circunscreve a colocar em relevo alguns dos aspectos imponderáveis, pelo fato de ter optado pela análise do processo de mudanças subjacentes à construção ou à reconversão para posição de assentado, processo que pressupõe alterações também junto àquelas que a ela se associam. Por esta preocupação também pretendo ter me distanciado dos riscos de contrapor a proposta idealizada de reforma agrária a seus constrangimentos práticos. Assim sendo, enfatizo aspectos cuja eficácia está longe de ser quantificada, mas cujos significados fazem revelar os processos de mudança social em curso.

Para tanto é preciso diferenciar o Assentamento, com “a” maiúsculo, uma unidade espacial que guarda especificidades, pois que território de investimentos cuja referência se orienta: pela aplicação de projetos concorrentes de reforma agrária ou de redistribuição fundiária e pela descentralização de recursos públicos e serviços sociais.

O Assentamento constitui uma unidade social local de construção de identidades de pertencimento, a partir da vivência de experiências comuns. Sua especificidade decorre do fato de que, neste espaço, se objetivam rupturas nas posições sociais e, por conseqüência, nas relações de poder e na visão de mundo, cujos desdobramentos são de diversas ordens. A organização social revela a constituição ou a reconstituição de posições sociais mediante jogo de forças em que se destacam as demandas e as pressões dos que se desejam beneficiários da propriedade da terra. Expressa ainda efeitos que tal aquisição assegura, benefício cuja possibilidade depende de intervenções imediatas ou anunciadas por uma autoridade estatal, de rede de relações onde interagem seus demandantes, opositores, apoiadores e mediadores [5] .

 

Processo de assentamento rural ou de mudança desejada.

A inserção num processo de assentamento equivale à participação em situações de mudanças desejadas, necessárias ou impostas. Nem sempre os atores constituídos como assentados foram incorporados por um exercício de expressão da vontade política; mas por serem atingidos por medidas cuja única alternativa é mudar ou redefinir visões de mundo. Tanto nas situações em que as reivindicações de mudança no processo de redistribuição de bens por eles foram gestadas e encaminhadas, como nas que elas foram as alternativas possíveis, a morte social sendo a única contraposição, o entendimento do processo exige o conhecimento da estrutura social preexistente, para fugir de concepções sociológicas baseadas na relação direta entre causas e efeitos.

Outrossim, é fundamental levar em conta que se trata de um processo em que a presença da instituição estatal é dele também fundante, razão pela qual, mesmo que em muitos desdobramentos os interesses dos demandantes tenham sido contrariados, a presença de titulares daquela instituição continua sendo desejada. As conquistas pressupõem a aceitação e a reivindicação desta participação, por vezes equivocada ou contraposta.

Independente das condições em que os assentados se associam ou se dissociam, enquanto demandantes do processo de assentamento devem se integrar a mudanças compulsórias, devem aderir a um sistema de crenças que contribui efeitos positivos às transformações. Neste processo, é fundamental que incorporem a concepção de que a conquista dos recursos desejados só é alcançada se os demandantes se constituírem em grupos de interesses, organizando-se para influenciar o poder político no sentido favorável às preocupações sociais que tomem a cargo, estruturando protestos e institucionalizando suas lutas.

 

A mudança desejada e a ação coletiva.

O processo de assentamento rural se objetiva enquanto uma forma de ação coletiva – produto de condutas humanas reciprocamente referenciadas (cf. Weber, 1977: 5) -, concertada em favor de uma causa a associada a uma atividade política (cf. Neveu, 1996). Ele se expressa por um conjunto de acontecimentos e praticas que denunciam formas de descontentamentos, razão pela qual canaliza protestos e encaminhamentos de reivindicações. Enquanto ação coletiva, sua viabilidade depende do engajamento e da convergência entre uma pluralidade de agentes sociais. O engajamento pressupõe a produção de sentido orientador da construção de um novo estilo de vida ou da preservação de uma ordem social desejada [6] . A convergência se torna possível pela capacidade de os agentes em jogo se apresentarem como portadores de intenções de cooperação para reconhecimento de reivindicações.

Ela também se faz necessária diante da inserção em campos de disputas extremamente radicalizadas. A aplicação da política de reforma agrária fere interesses de grupos desde há muito organizados no sentido de criar condições legais e ilegais favoráveis à concentração de recursos em terra, em infra-estrutura, em crédito, em prestigio e em referência para construção de parâmetros de ordenação social. Ela se estrutura por um processo de negociação – por vezes desconcertante – com seus opositores. A eficácia dos instrumentos postos em ação não é linear, razão porque, conforme contextos e situações, a transferência de título da terra vai se objetivando.

Além disso, como as políticas públicas são também instrumentos de opacidade, pela forma e pelos meandros como são definidas e objetivadas as regras de apropriação e redistribuição de recursos públicos, (cf. Neves, 1995b), caso especial das voltadas para a objetivação do processo de assentamento, elas suscitam mobilizações propiciadoras da explicitação das relações em jogo e colocam cada vez mais em cena as autoridades do Estado [7] .

Esta especificidade exige que a análise considere a articulação do processo de assentamento rural a um campo onde agentes diversos estão engajados, em face mesmo da colocação da estrutura de poder em questão. A despeito de os trabalhadores se encontrarem sob posições extremamente diferenciadas, eles estão engajados no mesmo campo de disputa de interesses fundamentais e comuns. A preservação de interesses próprios reproduz o jogo do qual eles partilham, as regras devendo ser constantemente redefinidas (cf. Bourdieu, 1981).

As relações que se tornam possíveis pela articulação e contraposições de interesses pressupõem ou fazem existir instituições externas, que legalizam as apropriações julgadas legítimas e expurguem as condenadas.Portanto, para se colocar na condição de agentes sociais, os trabalhadores devem aceitar a concorrência no jogo e na crença das regras que ele permite instaurar. Só desta condição criam os meios para qualificar os questionamentos sobre apropriações da terra, do crédito, da infraestrutura produtiva e converte-las em conquistas a serem asseguradas.

Noções instrumentais à compreensão da dinâmica de ações coletivas têm sido a de campo e de arena, embora utilizadas sob diversos significados. Segundo Swarts, arena e campo são termos interdependentes que permitem estudar ações políticas a partir de situações objetivas. Enquanto a noção de campo enfatiza as relações interativas entre atores sociais em fluxo, conforme maior ou menor interesse e mobilização; a de arena enfatiza a valorização de uma área cultural equivalente ao espaço social coberto pelo campo, ressaltando os valores, os significados e os recursos em jogo (Swartz, 1968: 6-17) [8] . Neveu (1996), por outras perspectivas analíticas, também valoriza a noção de arena como instrumento teórico-metodológico, definindo-a como um sistema organizado de instituições, de procedimentos e de atores, no qual forças sociais podem se fazer compreensíveis. Uma arena é um espaço de exposição e visibilidade dos elementos que levam um fenômeno a ser considerado problema social e os recursos a serem convertidos em respostas e reivindicações.

Como o processo de assentamento coloca em fluxo modos de encaminhamento de reivindicações que, assegurando o acesso à terra, o faz como base de construção de um modo de vida, as noções de campo e arena ajudam a refletir as contraposições, os constrangimentos e as conquistas cujos significados estão entre si referenciados. Para tanto, os participantes dessas ações coletivas podem usar arenas (cf. Neveu, 1996) institucionalizadas – imprensa, tribunais, parlamentos, conselhos municipais etc -, mas também, através de ações protestarias, produzir arenas específicas ou teatralizadoras dos conflitos – manifestações, campanhas de formação de opinião, passeatas, ocupações de espaços públicos – ou das reivindicações – exposições de fotografias, panfletagem etc. O reconhecimento dessas arenas facilita o acesso a outras instâncias externas, onde se encontrem concentradas as possibilidades de veredicto favorável. Os participantes, por isso mesmo, devem operar no sentido de deslocar campos de luta e de construir novos aliados, cujos pontos de vista sobre a contenda, embora diversos, possam ser convertidos por efeitos da demanda ou da mobilização da opinião publica.

Por isso, no estudo do processo de assentamento rural, isto é, da construção do Assentamento enquanto unidade territorial e do assentamento enquanto produtor agrícola, isto é, agente político econômico, algumas condições de viabilidade devem ser consideradas. Essas condições de possibilidade devem ser pensadas articuladamente à compreensão dos planos de organização ou dos princípios de filiação, de modo a revelar, como já ensinava Geertz (1983), os que alcançam formas hegemônicas e se expressam pela abrangência incluidora. De qualquer forma, esta análise visa ultrapassar os riscos de isolamento da unidade de ação social e de sua dissolução, numa integração explicativa de não importa qual forma de agregação social. A compreensão a partir das interferências das redes sociais de interseção deve então ressaltar a construção de espaços específicos de mediação, cuja economia analítica pode ser buscada pela emergência das arenas políticas.

 

A mudança desejada e as medições necessárias.

Em se tratando de um processo de mudança desejada, a construção do assentado exige sua incorporação num processo de desnaturalização dos modos de vida anteriormente consagrados e de percepção de que integra, como ator concorrente, um campo de disputas pela definição da sociedade desejada segundo interesses específicos. Para tanto, é fundamental a intervenção de mediadores externos, especialmente no início do processo, colaborando para a emergência dos mediadores constituídos entre os próprios trabalhadores em processo de assentamento.

A instrumentalidade de assentamento evocam modalidades de tomada de palavra no espaço publico, no caso por grupos ou segmentos distanciados dos domínios de verbalização e organização de interesses coletivos. Por isso, torna-se importante entender as formas de mobilização de energia para organização e encaminhamento de reivindicações, que pressupõem a construção de uma crença coletiva numa causa e nos desdobramentos de seu conhecimento por agentes institucionais, dotados de poder de posição que transforme idéias e referencias em práticas ou direitos. As formas de mobilização pressupõem a ação militante, voltada para a construção de associativismos ou de representação política do porta-voz. A viabilidade da ação do porta-voz se ancora na organização mais ou menos burocrática, também resposta ao reconhecimento de tais interlocutores (Bourdieu, 1981). O papel dos mediadores é fundamental porque o processo de assentamento vem incorporando atores cuja experiência transcenda o universo social da categoria ou mobilizável.

Sua função principal é criar condições para a construção de novas representações e explicações que permitam a elaboração de estratégias adequadas à situação; para a aquisição-construçaõ de consciência coletiva referente à visão de mundo e à posição em disputa.

Uma das ações elementares da mobilização necessária à construção do projeto de mudanças que o processo de assentamento preconiza é a desnaturalização – pela desqualificação – dos modos anteriores de integração ou filiação dos mediados. A politização de questões referentes à ruptura de regras de comportamento internalizadas inclui a mobilização destes em torno da definição de um padrão de dignidade e do seu distanciamento prático. Instigando os mediados a pensarem sobre o futuro, os mediadores incorporam ao exercício de mediação a construção de uma ética. Assim sendo, estimulam a sistematização de valores que ordenam os ethos do grupo, revertendo sobre os mediados os efeitos não dignificantes do distanciamento do modo de vida que dizem prezar [9] .

O efeito do processo de construção dessa identidade social é a elaboração de novos sistemas classificatórios e de visão do mundo, concebidos de acordo com seus interesses (cf. Bourdieu, 1981: 68-69). Redefinindo socialmente os outros, os mediados submetidos a processos de mudança reconstroem simbolicamente o grupo e os princípios de seu pertencimento. Aceitando e incorporando este papel, elaboram e colocam em prática outras alternativas de vida.

Valorizar o papel dos mediadores nos processos de assentamento é também reconhecer a importância do entendimento do processo de construção de relações de força e de sentido, de difusão de instrumentos cognitivos e de quadros de percepção do problema e das possibilidades de mudança, de modo a dotar o grupo da crença em seu poder de ação e de confrontação e no valor da contestação. Da mesma forma, dotar os participantes da percepção do pertencimento a um campo de lutas, reforçando sua identificação a uma causa e seu engajamento a um projeto de controle de situações adequadas.

Corretamente o termo mediação alude à conciliação diante de divergências ou da intervenção de outrem com o objetivo de propor o acordo ou o compromisso. Portanto, refere-se à objetivação de sistemas de regulação instituídos para reduzir a dissonância entre visões de mundo e forma de comportamento de distintos segmentos constitutivos das sociedades complexas. Equivale a institucionalização de um sistema de regras destinadas a assegurar a hegemonia de uma ordem consagrada ou em busca de consagração. Contempla fenômenos cuja objetividade põe em jogo relações socais estruturadas por interações que agregam redes de interseção. Envolve, por fim, engajamentos e mobilização de segmentos selecionados para reordenação de modos de conduta e visão social de sua posição.

Portanto, a ação dos mediadores não pode ser reduzida a uma intercessão ou a uma interligação. Ela mesma só se produz por novas construções de modos de gestão das contradições derivadas da posição de interseção. Os mediadores constroem as representações dos mundos sociais que pretendem interligar e o campo de relações que propicia este modo específico de interligação.

A análise deve ainda considerar a diversidade das posições que vão sendo constituídas, produto das lutas internas entre os pretendentes beneficiários, mas também destes com os excluídos, seja pela oposição às formas de redistribuição colocadas em prática, seja pelas tentativas de se tornarem igualmente beneficiários. Esta diversidade expressa as diferenciações provocadas, reafirmadas ou invertidas, em qualquer caso estruturantes do processo [10] , e também a construção dos próprios mediadores.

Para considerar algumas questões orientadoras do sistema de avaliação de deslocamentos e desdobramentos sociais, nem sempre ponderáveis, orientarei a construção dos temas básicos de reflexão que estruturam o artigo, por algumas perguntas que considero cruciais ao entendimento do processo social.

Essas questões, longe de pretenderem a exaustão, visam influenciar a imaginação sociológica do pesquisador pela construção de um quadro analítico, propiciador da compreensão das formas de ação coletiva que promovam a constituição de grupos de interesse, pondo em destaque as solidariedades e as contraposições, ambas orientadas por moralidades cujas regras devem ser em cada caso consideradas.

 

O processo de assentamento rural e a produção de imagens.

Pelos aspectos acima levantados, torna-se importante considerar o papel mediador da imprensa na construção dos movimentos sociais e, em especial, dos que organizam tendo em vista o questionamento da estrutura de poder que sustenta formas concentradoras de recursos materiais e simbólicos. Nestes termos, pode-se mesmo diferenciar as condições de luta dos assentados segundo sua capacidade ou possibilidade – sempre contextual – de obter adesão ou rejeição da imprensa nacional e especialmente local, no caso de unidades territoriais onde a opinião publica seja, em boa parte, constituída pelo monopólio ou privilegiamento dos agentes vinculados à imprensa escrita, falada ou televisionada.

Sob esse aspecto, para se entender o processo de mudanças sociais, a pesquisa deve responder às seguintes questões:

Como os assentados constroem interlocutores ou arautos da visibilidade das demandas coletivas?

Como os porta-vozes da imprensa local participam da construção da identidade dos assentados enquanto atores econômicos e políticos? Como são eles e seus representantes definidos para a opinião pública? Consideram as imagens criadas pelos próprios assentados?

Diante destas imagens, que novas capacidades de mobilização são articuladas por representantes e representados?

Contudo, se o peso dos jornalistas e editorialistas é considerável (ver Champange, 1990), ele não pode ser tomado de forma absoluta. É preciso entender e revelar a capacidade de os assentados poderem investir no sentido de dissociar o movimento social da imprensa e difundi-lo fora deste espaço, como geralmente acontece quando eles acedem às praças de mercado. Integrados por essas redes, eles podem auferir contatos sistemáticos e pessoalizados com uma clientela, que nem sempre atribui importância à opinião pública dos porta-vozes dos órgãos da imprensa. Além disso, produzindo eventos que socializem as lutas fundamentais em torno da disputa entre concentração e desconcentração de recursos, os assentados podem auferir outras formas de visibilidade, podem tentar administrar a construção dos eventos segundo interesses próprios. De mais a mais, é preciso considerar que, em muitos casos, como demonstra a organização regional e nacional do MST, os protagonistas da defesa do programa de reforma agrária podem dispor de meios próprios para difundir idéias, crenças, objetivos e formas de legitimação de suas ações. E, dessa forma, minimizar os efeitos das escolhas parcializadas da grande imprensa, geralmente orientada pela valorização das ações alheias, que objetivam a participação privilegiada daqueles porta-vozes na construção do fato e do desdobramento social (ver Champange, 1990).

 

O processo de assentamento e a representação política.

Como os assentados encaminham os modos de protesto? Que capacidades dispõem para constituir em grupo, para objetivar ações significativas e operá-las acumulativamente?

Como os assentados concebem a construção participativa em formatos institucionais que propiciem a existência de grupos de interesse ou organizações associativas?

Como constroem a representatividade política?

Que tipo de institucionalização melhor corresponde aos modos preexistentes de organização política, geralmente baseados nas relações de parentesco, vizinhança e clientelismos? Quais as condições para reconversões deste capital?

Como os mediadores ou porta-vozes conseguem mobilizar os representados e construir as adesões?

A análise da representação política deve considerar as múltiplas formas de mediação: pelas elites intermediárias, por intelectuais, por tecnocratas, cada uma correspondendo a proposições contraditórias sobre a representação. Sob qualquer uma dessas modalidades, está em jogo o controle da participação na sociedade, ou do encaminhamento do atendimento de interesses contra os de outrem. Em se tratando de atos de delegação, de substituição, de transferência de competência para agir no lugar de ou em nome de alguém, na prática pode produzir grandes distorções. O representante está sempre relativamente distanciado de qualquer evocação dos representados (cf. Bordieu, 1981).

O reconhecimento destas alternativas permite relativizar a pressuposição de representatividade apenas através das organizações corporativas. Permite também relativizar a idéia de que apenas as organizações formais de representação política constituem o espaço por excelência das mediações necessárias à construção de certa unidade de propósitos. A representação de interesses de certos grupos pela mediação do clientelismo não reproduz na linearidade, mas pode, por ruptura de acordos de significados quase morais, estimular a constituição da autonomia política, isto é, ser base de um movimento político, como geralmente o processo de assentamento é caudatário. Outrossim, é preciso dar o devido valor às formas de delegação sustentadas na autoridade familiar e do parentesco, bem como os modos de acumulação e de distribuição próprios a tais domínios sociais, Entendendo outros modos de delegação de poder, pode-se, por fim, relativizar a idéia de que delegação só existe quando a categoria aparece enquanto tal, isto é, quando reconhecida sob o modo de dominação formal legal.

 

A integração em circuitos mercantis e a concorrência entre mediadores.

A visibilidade política do produtor agrícola vinculado a processos de assentamento rural tem sido definida pelos assentados e pelos mediadores como a objetivação mais acabada e eficaz do fragmentado programa de reforma agrária. Esta valorização considera o fato de a produção assegurar as condições concretas de reprodução física e social do grupo, além de demarcar o reconhecimento político deste produtor agrícola mercantil como agente econômico. Outrossim, assegura a construção de direitos sobre a apropriação da terra e sustenta a implementação de estratégias em torno das demandas por recursos e pela legalização da redistribuição dos lotes. Por fim, tais conquistas integram os assentados a outros campos sociais de reconhecimento, permitindo alternativas de reprodução e de contraposição às instituições que administram e impõem a tutela sobre tal processo.

A análise das formas de integração política e econômica do assentado deve valorizar a compreensão das condições de existência deste produtor, considerando as relações que subjazem à produção social e demonstrando os resultados plausíveis e mais objetivos do processo de assentado. Eles podem ser expressos pela produção agrícola levada aos diversos circuitos de mercado. Completamente, pelo reconhecimento deste ator como parceiro no jogo de disputa e de troca que consubstancia o campo da política partidária e da administração municipal.

A integração dos assentados ocorre diferenciadamente, razão pela qual deve-se levar em conta as maneiras diversificadas pelas quais eles objetivam a produção social e se inserem nos circuitos de trocas econômicas e políticas. Estas alternativas diversas de integração pressupõem a construção diferenciada de representações sobre si mesmos, de cálculos econômicos, de estratégias políticas e, portanto de posições sociais. Esta diversidade é também expressiva das circunstâncias heterogêneas em que ocorre o processo de assentamento e das elaborações específicas sobre o senso de limite e de possibilidades que cada assentado, individualmente ou através do seu grupo de residência, incorpora.

Como os assentados se encontram em processo de constituição nesta posição, a unidade de estudo deve recair sobre as relações que, para tanto, os agentes sociais envolvidos vão construindo, abarcando as formas de inserção no processo produtivo e no mercado de bens, serviços e mercadorias. Esta perspectiva contribui para o entendimento menos reificado das relações de produção e das articulações recíprocas entre unidades de produção e mercado.

A especificidade deste processo de construção deve ser valorizada porque, na constituição do assentado, a relação com o mercado torna-se mais dramática. A precariedade de recursos materiais e financeiros recorrentes em processos de assentamento aí produz efeitos mais agudos e riscos de inviabilidade. A subordinação aos intermediários da circulação de mercadorias se torna mais grave porque um mal necessário à reprodução. Contudo, embora criando novas dependências, ela também propicia a constituição de novas alianças e redes sociais. A inserção nas redes de comercialização permite certa autonomia relativa frente às instituições tutelares, possibilitando ao grupo algumas alternativas de escolha e de projeção do futuro, mas cria outras dependências.

Como os assentados se constituem diferenciadamente, eles passam a desenvolver concorrências internas e tentar colocar em prática mecanismos de exclusão de alguns deles. Esta concorrência pode ser cumulativa porque os que se encontram mais consolidados economicamente, por força da posição política alcançada, costumam obter condições mais vantajosas no acesso a recursos. De um modo geral, tem precedência na obtenção dos recursos os produtores que se organizam politicamente para demonstração de pleno apoio aos interesses vislumbrados pelos titulares das instituições que tutela o processo. É o caso dos assentados aglutinados politicamente pelo parentesco, condição que promove a potencialidade do exercício da reciprocidade no papel de cabo eleitoral ou de reciprocidade pelos votos a serem disputados. Os que se mantêm vinculados ao mercado de trabalho e aos recém-chegados, afastados dos centros de decisão política, podem ser atendidos ao final e, em conseqüência, por vezes condenados a administrarem a diminuição da produtividade agrícola.

Tais condições diferenciadas de produção, decorrentes dos modos diversos de participação dos assentados na luta política para assegurar o acesso aos recursos básicos ao assentamento, demonstram que, na prática, a política de reforma agrária só é objetivada precariamente por aqueles trabalhadores que acreditam na conquista desta posição. As apropriações resultam da concorrência dos interessados no acesso aos recursos raros e na imposição do reconhecimento oficial da conquista.

Formalmente, todos devem ter acesso legal à mesma área de terra. Na prática, tal não se dá. Alguns ultrapassam os limites, outros os respeitam. Alguns sub-utilizam a área de terra apropriada ou transferem sua utilização. Alguns reclamam da escassez da área de terra porque utilizam-na plenamente e estão impedidos de expansão, geralmente necessária para compensar a baixa produtividade e as restrições de recursos financeiros para melhorar a fertilidade.

As condições de produção também se diferenciam em face do momento do ciclo de vida biológico e social da família, da sua composição social e das virtualidades do uso da força de trabalho familiar segundo o sexo e a idade.

Quase sempre, o tamanho da área de terra definida como objeto de transferência a cada família não permite a incorporação de todos os filhos. Ele só assegura condições de reprodução física e social para uma unidade familiar. O encaminhamento dos filhos para a vinculação ao mercado de trabalho assalariado se expressa na menor presença deles na faixa etária mais produtiva. Por isso, o trabalho dos filhos tende a ser reduzido à incorporação de crianças e pré-adolescentes. A força de trabalho fundamental destas unidades de produção tende a ser constituída pelo chefe da família e sua esposa. Qualquer alteração nesta composição, por doença ou morte, pode ser fatal na inviabilidade das condições favoráveis de reprodução.

A escassez de força de trabalho pode ser mantida como recurso de adaptação às estratégias de avaliação; e como efeito da comparação das múltiplas possibilidades de inserção no trabalho ou de dimensionamento dos recursos materiais e culturais que as unidades familiares podem dispor. É também adotada em face das limitações institucionalmente impostas para expandir a produção, como a indecisão quanto à área de terra a ser futuramente apropriada, e por falta de recursos financeiros.

Portanto, as particularidades políticas e econômicas do comportamento dos assentados demonstram que as suas ações sociais correspondem a campos de posições objetivamente estruturadas, a partir dos quais eles entraram em interação com os titulares das instituições encarregadas da objetivação do processo de assentamento. As respostas diferenciadas se fundamentam nas diversas trajetórias de constituição dos agrupamentos e modos de organização social dos assentados, condições e predisposição a partir das quais eles vão se relacionando com os mediadores e, comparativamente, vislumbrando projeções, reconstruindo projetos e referenciando as estratégias de reintegração social.

Esta diversidade de escolhas não é só resultado de estratégias amparadas em modos desiguais de distribuição e apropriação de bens materiais e simbólicos. Ela é também produto de interesses e identidades específicas das instituições que vem participando do processo. Revela, assim, o papel conformador ou paradigmático dos assentados que disputam recursos e melhor concebem com titulares das instituições.

Inúmeros podem ser os circuitos de troca por eles constituídos ou reconstituídos. Alguns destes circuitos podem ser pouco transparentes porque fortuitos e amparados em relações diádicas. Outros circuitos podem ser solenizados pela visibilidade assegurada pelo deslocamento espacial das atividades e pela sistemática temporalidade das feiras. Os diversos circuitos de troca nem sempre são postos em prática por todos os assentados. Cada um deles pode valorizar uma das modalidades de integração ao mercado.

Alguns assentados optam por sua constituição enquanto produtor agrícola, apresentando-se no mercado de venda de produtos agrícolas como negociantes individuais. Identificam-se muito mais como produtores do que comerciantes dos produtos que lançam no mercado. Tentam concorrer na seleção dos intermediários da comercialização através de relações diádicas, de modo a estabelecerem regras de reciprocidade par a reprodução da parceria e obterem certo controle na minimização dos preços. Outros preferem investir na construção da identidade de feirante em mercados regionais ou negociantes em mercados à distância, cuja visibilidade econômica e política aí encontra modos especiais de expressão. Sob quaisquer dos casos, o pesquisador deve demonstrar as condições de possibilidade de cada opção.

Levando em conta os valores culturais e as representações que orientam as escolhas, os cálculos, as alianças e as posições sociais construídas diante do gerenciamento das alternativas possíveis e disputadas, a análise pode revelar modos de inserção que ultrapassam o sentido puramente econômico. Outros –sim, também pode dar atenção à diversidade das situações pela importância da organização social e política dos produtores. Para isso, torna-se fundamental a compreensão da especificidade dos modos de organização da produção e da comercialização a partir das condições de filiação, da estruturação dos grupos de residência e de re-inserção no mundo social reconstituído. O mercado, por conseguinte,não pode ser entendido como espaço de circulação de mercadorias, mas lócus de construção de novos mediadores e alianças, de produção e de incorporação de novos saberes. Espaço referenciador da construção do produtor, ele orienta a gestão e adequação dos recursos disponíveis ou conquistados por cada unidade familiar em sua rede de vizinhança e/ou de parentesco.

A despeito de a relação com o mercado os colocar diante de trocas econômicas desequilibradas, também os transforma em atores políticos reconhecidos e os referencia a outros valores e concepções de mundo. A relação com o mercado, longe de poder ser apenas vista pelo aspecto da subordinação e da estratégia de minimização dos efeitos perversos, deve ser lida como fator importante na constituição econômica e política dos assentados. Outrossim, a importância do deslocamento da análise para as ações dos agentes diante da cadeia de relações sociais – nem sempre facilmente apreensíveis – decorre da opção (metodológica) de considerar a unidade de produção para além da objetivação dos recursos materiais. Se a importância das relações familiares e de parentesco, pela especificidade do caso, deve ser enfatizada, estas relações não podem ser compreendidas como domínios autônomos, mas como recursos que abrem alternativas para modos diversos se inserção em novas redes sociais.

 

O poder local e a emergência de mediadores entre os assentados.

Como os assentados e seus representantes articulam sua integração ao padrão de sistema de representação local e suas alternativas, quase sempre partidárias e faccionistas?

Como conseguem influenciar as políticas publicas e o governo local, de modo a incluir suas reivindicações nas ações publicas organizadas?

Como são reconhecidos pelo poder publico local, dadas às dissonâncias ou ressonâncias das formas de reconhecimento pelo poder publico nacional?

Conforme as definições estabelecidas pela política de assentamento, cabe ao poder local, em especial à prefeitura municipal, uma participação decisiva na implementação das condições de constituição do assentado em cada área. Todavia, essa atribuição de responsabilidade pode operar na inviabilidade do programa de assentamento, conforme os interesses econômicos e os compromissos políticos assumidos pelos participantes do jogo de forças que preside à eleição de cada prefeito.

As conseqüências da dependência dos programas de assentamento em relação às prefeituras locais são imprevisíveis, porque variam conforme contextos. Os efeitos podem ser desastrosos, se a relação de reconhecimento não se torna politicamente possível. Podem ser paulatinos mas autônomos, se os assentados obtiverem apoio de instituições externas ao município, caso das ONGs, em especial; ou se receberem com sistematicidade os recursos financeiros que devem ser transferidos pelo Incra. Contudo, uma aplicação plausível da política de reforma agrária se descortina se a aliança estabelecida com o poder local-municipal propiciar a incorporação dos resultados desta forma alcançáveis, enquanto modos de comprovação dos interesses políticos. Por fim, se o apoio da administração municipal for expressão da ruptura com as formas tradicionais de exercício da redistribuição de bens públicos.

As alternativas de qualificação do assentado como ator político com papel importante no mercado de disputa do voto lhe asseguram o exercício da palavra publica; a obtenção de respostas às reivindicações autorizadas por este próprio reconhecimento; e o apoio publico que consegue auferir do seu grupo, representado para o alcance destes mesmos efeitos. As reivindicações encaminhadas no contato face a face produzem respostas ou promessas imediatas. E promessas que, se não cumpridas, atuam contra a autoridade que estimula o jogo.

Esta modalidade de apoio institucional também tem importância fundamental nos desdobramentos da organização política dos assentados. A agregação associativista adquire significados novos, na medida em que os porta-vozes institucionais dos assentados possam estabelecer contatos diretos com os titulares da administração municipal. Quanto mais os porta-vozes podem controlar o comportamento político dos representados e quanto mais eles compõem a extensa rede aglutinadora de cabos eleitorais, mais eficácia emprestam ao sistema de trocas clientelístas. Por conseguinte, as configurações das redes de sociabilidade tradicionalmente constituídas –e das formas privilegiadas de territorialidade que lhes correspondem- podem ser reincorporadas para definir o acesso e a redistribuição dos recursos.

Além disso, ampliando a rede de relações e de conhecimento interpessoal e assim integrando os assentados, os novos mediadores, assim reconhecidos por que presidentes das associações, também facilitam, de outro modo, a tomada de consciência do pertencimento ao jogo do poder local. Como participantes de um sistema de troca, podem relativizar o sentimento de subalternidade ou de auto-exclusão de direitos a ser autorizados, pelos demais assentados, a pensar e a falar em defesa dos interesses de parentes ou de vizinhos, a propor soluções e a aceitar respostas diretas e indiretas para todos.

Esta forma de emergência dos próprios mediadores entre os assentados é expressiva da concepção de autoridade de que eles são portadores. Negando uma concepção abstrata e formal, uma intenção política, é comum que os assentados concebam-na como conduta e atitude, isto é, maneira de o portador de tais atributos sociais se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades. Este comportamento, para ser assim reconhecido, deve incorporar a generosidade e o talento da argumentação como qualidades valorizadas e aceitas para o exercício da política. A defesa de interesses se ancora basicamente na coragem de romper o medo e no exercício diferencial do verbo ou da fala. O porta-voz, portador de tais qualidades, cria então os mecanismos de controle da legitimidade dele próprio (como doador ou benfeitor) e do acatamento por parte dos receptores dos bens e dos recursos plausíveis.

Contudo, essas similitudes não podem esconder as diferenças, se algumas formas expressam projetos de clientelismo político pessoal, outras, o de clientelismo político público. Se todas pressupõem uma desigualdade estruturada a ser administrada, algumas se consubstanciam no exercício do poder pela imobilização social dos clientes; outras pela articulação de redes de relações dispersas e aglutinadas a partir de princípios de filiação estranhos às razões que associam os clientes; e outras, pela mobilização dos adeptos, tendo em vista a constituição do grupo como ator político.

 

Os assentados como sujeitos/beneficiários de políticas publicas.

Que reivindicações explicitam o modelo de integração desejado: escolas, postos médicos, energia elétrica, vias de transporte?

Como operam as formas de negociação com as autoridades locais?

Quais os efeitos sobre a influencia nas políticas publicas municipais ou na redistribuição de recursos por esta unidade política concentrados [11] ?

A análise dos desdobramentos das intenções de políticas públicas deve considerar os espaços sociais em que as regras, os valores, os recursos e os objetivos por elas definidos são disputados, apropriados ou rejeitados; as tensões a construção de novas relações que tais definições propiciam; os constrangimentos, as alternativas e as expectativas por elas geradas diante de segmentos sociais específicos.

As políticas públicas são um dos instrumentos de ação do Estado e de expressão de disputas em torno de recursos e de regras definidoras e consolidadoras de interesses específicos. As disputas, portanto, são compreendidas como constitutivas das ações sociais, políticas em especial, em que grupos de interesses se constituem no confronto travado em campos sociais determinados, mas também em instancias do aparato estatal, onde conquistas podem ser legitimadas, institucionalizadas e legalizadas.

O entendimento da dinâmica do processo de objetivação de políticas públicas pressupõe o estudo das relações sociais de múltiplas instancias, de diferenciadas formas e estratégias de ação do Estado. Através desse instrumento de ação, o Estado pode ser mais bem compreendido como uma instituição que se desdobra em outras tantas para realizar várias funções. Cada uma de suas sub-intenções ou uma mesma sub-instituição pode atender a objetivos e interesses diversos e até contraditórios.

Situando a análise nas redes de interação, nos padrões de articulação e nos modelos de atuação elaborados pelos titulares das instituições aglutinadas no Estado, inclusive para responder a pressões, como é o caso dos projetos de assentamento, os dispositivos políticos e os espaços onde as formas de gestão e as praticas de administração são mais opacas porque mais condensadas podem ser melhor entendidos.

As definições conceituais sobre Estado muitas vezes dificultam o alcance da inelegibilidade das relações sociais que pretendem dar conta. Valorizando a instituição enquanto personalidade jurídica ou sua natureza, sua consistência, seus aparatos e funções, muitas das definições menosprezam as atividades constitutivas e contingentes, os espaços onde de fato a relação de poder se exerce. O deslocamento da análise para os processos, para os dispositivos de poder e para as representações – que designam as formas e os modos de orientação das ações políticas – permite desreificar as concepções que se deixam levar pela valorização dos atributos acima identificados. Permite também ultrapassar a tentação de dicotomizar o poder estatal e a sociedade civil. Pretende compreender as condições objetivas de constituição dos espaços desta intercessão e das modalidades de objetivação das ações políticas, incluindo a participação construtiva dos indivíduos por elas atingidos ou delas demandantes (cf. Abélès, 1990; Foucault, 1975; 1976).

Para atingir tais objetivos, além do aspecto articulador e integrador de praticas de múltiplas instituições que o Estado exerce, deve-se considerar o dialogo assumido entre seus titulares e os segmentos sociais cuja existência se expressa por mecanismos formais de representação de interesses, diante de conjunturas especificas. Interesses que ora se apresentam como convergentes, ora distintos daqueles dos técnicos e burocratas dos órgãos que estruturam as instituições do aparato estatal.

A análise dos processos de assentamento rural pela perspectiva da ação de grupos de interesse traz à tona o contexto político constituído pelo próprio movimento no sentido de questionar a centralização e o monopólio de Estado, abrindo espaços para expressão pluralista de vontades políticas neste jogo constituídas. A emergência de grupos de interesse é expressiva da constituição do debate, dos investimentos diversificados em busca da definição de estruturas de poder e da prepositiva que faz aflorar estilos de vida.

Como componente singular e importante da participação política que pressupõe o reconhecimento do direito ao acesso a terra, os participantes do processo de assentamento fazem apelo a uma autoridade, para assegurar conquistas, para responder ou legitimar, por uma intervenção pública, as reivindicações, cujas soluções a ela (autoridade) imputam uma resolução, razão mesma da mobilização [12] .

Esta referência à autoridade é elemento constitutivo do processo, em face das condições de viabilidade dos investimentos: assegurar, mediante legislação, os direitos e proteções que os contratos oficiais permitem definir e legitimar.

O modelo atual de Estado capitalista preconiza o investimento sobre a organização formal da sociedade, através de ações pontuais (nem sempre muito visíveis). Como a reforma agrária é definida enquanto política pública, a tendência é que os participantes dos movimentos sociais de reivindicação do acesso a terra privilegiem os representantes das instituições do Estado como foco de protesto. [13] Por isso, muitas das mobilizações são orientadas no sentido da intervenção estatal, sob forma de definição e regulamentação em leis, decisões que estabeleçam regras de apropriação.

Esta reivindicação da presença do Estado  responde, por fim, a efeitos indesejados das políticas públicas, formas especiais de ação do Estado que tendem a segmentar ainda mais a sociedade e selecionar os privilegiados ou alcançáveis por medidas preconizadas (ver Neves, 1993b). Em conseqüência, também mobilizadora de novas demandas e novos desejosos beneficiários.

Concluindo, a análise da mudança social exige a consideração dos valores culturais ou de pré-compreensão simbólica do real para que sejam compreendidas as regras constitutivas do sentido da ação. Se a construção de normas, de regras e de instituições permite a emergência de uma nova ordem social, também revela a tomada de consciência e os desdobramentos sociais daí decorrentes, referenciadores dos modos de percepção e de atribuição de sentido às ações.

 

Referências bibliográficas

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Notas

* A versão original deste texto foi apresentada na mesa redonda Assentamentos rurais - metodologia de pesquisa e sistemas de avaliação, do IX Congresso Brasileiro de Sociologia: A sociologia para o século XXI, Porto Alegre, 30 de agosto e 3 de setembro de 1999.

[1] Inúmeras pesquisas já consagraram a compreensão sobre os fatores que atuam negativamente no processo de assentamento rural: baixa qualidade do solo e inviabilidade econômica; falta de estradas e dificuldade de acesso ao mercado; protelação de decisões e consagração da ambigüidade como regra; eternização da dependência dos tutelados e prorrogação ad infinitum da emancipação; recusa na transferência, pelo menos sistemática, dos bens e recursos assegurados pelas normas oficiais do programa de assentamento; irreconhecimento e contraposição a regras locais que contradigam ou se desviem das normas oficiais; falta de capacitação e da dotação de recursos para a equipe técnica voltada para a orientação produtiva; ausência de sentido para a vida associativa, em face do desrespeito dos titulares dos órgãos  do Estado por esta instância de decisão e do reforço de uma cultura política consolidada na valorização da concorrência e do prestígio individuais; indefinição de metas e de viabilidades; contexto desfavorável à atividade de agropecuária, em face da concorrência extremada em torno da produtividade, do alto custo de insumos e de gastos ampliados pela ausência de infra-estrutura viária de mercado. Em suma, fatores vinculados ao caráter pontual, descontínuo e precário do programa de reforma agrária, condição constritiva a uma ação massiva, como desejam os trabalhadores aglutinados pelos movimentos sociais (cf. Medeiros, 1994; Medeiros e Leite (orgs.), 1999, Romeiro et alii, 1994).

[2] Ver especialmente Romeiro et alii, 1994.

[3] A relatividade do peso econômico dos fatores geradores de mudança tem sido destacadas por inúmeros autores. Registro aqui o investimento na compreensão das ações políticas motivadoras das ações econômicas, conforme perspectiva elaborada por Velho (1972). Enfatiza este autor que as medidas governamentais só podem ser objetivadas se houver precondições lentamente amadurecíveis, propiciadoras da criação de determinados movimentos sociais. Ressalta, então, que não há um espontaneísmo econômico, mas iniciativa política comandando processos econômicos.

[4] Agente social que se encontra em processo de reconhecimento oficial da condição de titular de um lote de terra, processo que associa os investimentos em capitalização através de crédito especial e, por vezes, assistência técnica e estímulos à organização política formal.

[5] Agentes intermediários da objetivação do processo de assentamento. Abarcam os dirigentes de movimentos sociais de luta pela reforma agrária vinculados ao Movimento dos Sem-Terra, à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura, militantes de partidos políticos, técnicos em agronomia, veterinária, animadores sociais vinculados a programas de ação filiados a instituições estatais – nos seus diversos níveis – ou a organizações não-governamentais.

[6] Para melhor compreensão das idéias que aqui desenvolvo a respeito de processos de mudanças sociais, ver também Neves, 1995a e 1997a.

[7] Para compreensão dessas afirmações, que procedem de análise de situações objetivas, ver Neves 1987, 1991, 1993a, 1993b, 1997a, 1997b.

[8] Para uma aplicação destas noções em situações de movimentos sociais, ver Ferreira dos Santos (1981).

[9] Esta conquista geralmente pressupõe a desqualificação do sistema de poder e de autoridade anterior e o irreconhecimento da imposição da vontade de outrem sobre eles.

[10] A diferenciação social está sendo entendida como constitutiva das novas posições e das variações que lhe são subjacentes. Ela expressa os deslocamentos provocados pela forma como se dá o processo de mudanças e modos variados de participação destes atores no jogo de forças sociais, também provocadores de desdobramentos diferenciadores (cf. Neves, 1985; 1988, 1995a, 1997a, 1997b)

[11] Sobre estes desdobramentos, consultar Medeiros e Leite, 1999

[12] estou aqui adotando os significados atribuídos por Weber (1997) à noção de autoridade: probabilidade da posição de poder que viabiliza a adesão e a vontade de obediência dos que se colocam como subordinados.

[13] Os movimentos sociais quase sempre são menos coerentes com as formas de dominação personalizadas ou de patronagem. Nos casos de ruptura com a ordem consentida, os grupos mobilizados tendem a procurar a intermediação de outro intercessor ou protetor. As rupturas subjacentes a tais processos de mobilização se desdobram em construção de autonomia, preconizam a emancipação da patronagem, facilitando a formação de instituições como sindicatos e associações ou a inserção em formas de dominação de caráter formal-legal.