Estudos Sociedade e Agricultura

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Maria José Cardoso Lemos

Raduan Nassar: apresentação de um escritor entre tradição e (pós) modernidade


Estudos Sociedade e Agricultura, 20, abril 2003: 81-112.

Resumo: (Raduan Nassar: apresentação de um escritor entre tradição e (pós) modernidade). O artigo busca descrever a trajetória do escritor Raduan Nassar, filho de imigrantes libaneses radicados ao norte do Estado de São Paulo, com vistas a refletir sobre sua posição em relação à instituição literária, aos contextos sociais e históricos, e ainda, sobre os diálogos que o escritor mantém com a tradição literária brasileira. O artigo chama atenção para a preferência de Nassar pelo espaço rural, relacionada diretamente com seu projeto ético-estético. Nassar pretende complexificar uma certa visão da modernidade/ modernização existente nas correntes de vanguarda brasileira, tais como o “primeiro modernismo” e o Concretismo.

Na última parte, confrontam-se dois contos: Brás, Bexiga e Barra funda de António de Alcântara Machado, no qual é representado, de maneira cômica e otimista, os italianos em São Paulo, associados à modernidade e Menina a caminho, de Raduan Nassar. Neste conto, Nassar apresenta diversos imigrantes no espaço claustofóbico e opressor de uma pequena cidade do interior. Através da variação paródica da representação do imigrante, Nassar articula questões significantes do espaço rural, expressivas da conexão tradição e modernidade.

Palavras-chaves: modernismo, paródia, rural e imigração.

Abstract: (Raduan Nassar: Introducing a writer between tradition and (post-) modernism). This paper describes the trajectory of the writer Raduan Nassar, son of Lebanese immigrants settled in the northern region of the state of São Paulo, in order to consider his stance in relation to the literary institution, to the social and historical contexts and, finally, the dialogues between the author and the Brazilian literary tradition. The paper emphasizes Nassar’s preference for the rural setting, directly related to his ethical-aesthetical project. Nassar wishes to complexify a certain vision of the modernity/modernization in the Brazilian avant-garde movements, such as “Primeiro Modernismo” and  “Concretismo”.

The last part of the paper, places two texts side by side: Brás, Bexiga e Barra funda, by Antonio de Alcântara Machado; and Menina a caminho, by Nassar. Alcântara Machado’s text shows the Italians in the city of São Paulo in a comical and optimistic form, associated with the modernity. Nassar’s text describes several immigrants in the claustrophobic and oppressive space of a small town. Through the parodic variation of the representation of the immigrant, Nassar articulates significant issues related to the rural space, especially the confrontation of tradition and modernity.

Key words: modernism, parody, rural space and immigration.

Maria José Cardoso Lemos é doutoranda da Universidade Paris 3 e professora da Escola de Letras da Universidade Gama Filho.


On ne peut varier sans répéter, ni répéter sans varier. Gérard Genette, Figures IV.

O personagem Raduan

Descrever a trajetória de Raduan Nassar é uma tarefa perigosa, pois ele embaralha seus rastros, quer pelo silêncio, quer pela repetição constante de suas respostas, respostas sempre pouco esclarecedoras, como que a evitar uma auto-reflexão sobre sua obra. Alguns, irritados com sua postura, pensam até tratar-se de uma estratégia de marketing desse ator/autor que interage com sua pequena obra-prima na sua recepção atual, obra que, parcimoniosamente, vem retornando sempre ao cenário cultural por meio de novas publicações, traduções e adaptações cinematográficas.

Raduan Nassar é filho de imigrantes libaneses que chegaram ao Brasil em 1920, se instalando em Pindorama, no norte do Estado de São Paulo. Nascido em 1935, vinte anos depois mudou-se para São Paulo, onde se formou em Filosofia. [1] Em 1967, fundou com seus irmãos o Jornal de Bairro, um semanário que chegou a atingir a tiragem de 160 mil exemplares.

Nassar publicou, em 1975, Lavoura arcaica – um romance que, no ano seguinte, receberia o prêmio Coelho Neto da Academia Brasileira de Letras e inúmeros elogios da crítica – e, em 1978, a novela Um copo de cólera. Ambos são livros que, mesmo escritos durante a ditadura militar no Brasil e tematizarem a violência e a constituição de valores, evitam, entretanto, a literatura engajada bastante comum naquele período. Desde então, Nassar pára de escrever e passa a se dedicar a outras criações: hoje é fazendeiro.

Em setembro de 1996, quando consagrou o seu segundo número a Nassar, a revista paulista Cadernos de Literatura Brasileira justifica da seguinte maneira a sua escolha, já sugerindo a vocação de Raduan para se tornar um clássico:

[…] Lavoura arcaica e Um copo de cólera foram mais do que suficientes para situar Raduan entre os escritores de maior envergadura surgidos no país depois de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Pela extra­ordinária qualidade de sua linguagem, os dois livros representam, sem exagero, verdadeiros momentos de epifania da literatura bra­sileira. Apesar disso, porém, Raduan permaneceu conhecido e cul­tuado apenas por um restrito círculo de leitores (Cadernos, 1996: 5).

E Nassar, num desejo de escapar a uma institucionalização completa, participou da entrevista concedida aos Cadernos de maneira irre­verente, postura que pode ser sentida pelas declarações dês­com­certantes que então fez, como esta: “[…] a melhor literatura brasileira não tem sido produzida aqui neste Estado, por que São Paulo faz tanto barulho?”

Uma outra declaração bastante explosiva foi aquela em que afirma: “[…] não há criação artística ou literária que se compare a uma criação de galinhas.” E continua explicando sua relação com a escrita e a instituição literária:

Eu sou mais como galinha caipira. Não boto um ovo de dia e outro de noite, sob luz artificial. Não entro muito nessa história de que o escritor precisa se profissionalizar. Mesmo esse conceito de obra… Às vezes em 50 páginas você pode dizer muito mais que em dez livros. Depois, há tantos autores de um único livro que dizem tanta coisa! (Cf. Ciccacio, 1981).

O jornalista Augusto Nunes, colaborador, em 1973, do Jornal de Bairro, reforça esse lado do personagem que exprime um distanciamento e um grande ceticismo em relação à sua atividade de escritor, “aplicados somente após o fim do trabalho. A escritura se assemelha a uma lavoura, artesanal, perfeccionista, ainda que entremeada por jorros e desvios das linhas sulcadas:

Quem conviveu com Raduan Nassar não tem o direito de estranhar a opção por feijões e milharais. Antes e acima do autor de Lavoura arcaica e Um copo de cólera, sempre existiu uma figura da melhor ficção, e a grandes personagens se costuma conceder a graça da completa liberdade de movimentos. Com uma radical e abençoada agravante: trata-se de um caso singularíssimo de criatura que, em vez de ser por ele criada, cria o criador. Foi o personagem Raduan quem criou o escritor, como antes criara o acionista de uma empresa comercial e o diretor de jornal de bairro, como depois criaria o homem que semeia pipocas (cf. Nunes, Cadernos: 17).

Paulo Honório, personagem de São Bernardo de Graciliano Ramos, é fazendeiro quando resolve escrever um livro; Raduan, persongem de Nassar, decide se tornar fazendeiro após ter escrito sua obra literária – “livro e meio como ele diz.

Raduan, assim como Graciliano Ramos ou Osman Lins, recusa a erudição de salão, as boas maneiras e uma concepção da arte que se abstivesse de um projeto ético-estético: como Graciliano e Lins, ele é um sertanejo culto” (Ellison: 1954). Nassar reivindica o lugar de fazendeiro, rústico, “caboclo”, arcaico, mas que tem ao mesmo tempo acesso a São Paulo cosmopolita e freqüenta um círculo de intelectuais dos mais renomados.

A última escritade Nassar foi o artigo Rural x urbano que escreveu para a Folha de São Paulo e publicado em 22 agosto 1999. Podemos detectar o mesmo tom incisivo que encontramos em Um copo de cólera:

Parece que a mídia mais uma vez não sabe do que está falando. Devia era fazer um estágio numa lavoura antes de se pronunciar. […].

Não vou falar da comercialização, que sinto engulhos, sinto cólicas, nessa hora é que se tem uma radiografia clara, a da subordinação humilhante de quem produz alimentos aos interesses dos contro­ladores urbanos do mercado.

Aproveitando o mote de Rural x urbano – que não é casual, pois envolve um pensamento ético-político também presente nos textos nassarianos –, pensaremos como funciona e são tematizadas em sua obra questões como tradição e modernidade/modernização, [2] rural e urbano.

A questão da modernidade/modernização e sua relação com o espaço urbano adquire especial importância para articular o intenso diálogo travado por Nassar com nossas vanguardas, principalmente o chamado “modernismo heróico”, cujo marco histórico foi a chamada Semana de 22 e o Concretismo, que se iniciou nos anos 50.

Assim, procuraremos entender, no presente trabalho, a maneira como Nassar pretende dar maior visibilidade ao rural não simplesmente para reificá-lo, mas para complexificar uma certa visão dicotômica da sociedade sobre a longa “batalha travada entre o rural – considerado lugar de origem, tradição e pureza identitária – e o urbano – também alusivo ao litoral –, este visto como o lugar da modernização e, portanto, privilegiado pelos nossos modernismos.

 

A escrita nassariana

Durante o período em que trabalhou como jornalista, através de um amigo, o também jornalista e escritor, José Carlos Abatte, Nassar retomou o gosto pela poesia, sobretudo por Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, modernista da segunda geração, que irá marcar sua prosa profundamente.

Em entrevista concedida a Massi e Sabino Filho, Nassar revela essa ligação com a poesia de Jorge de Lima que irá levá-lo a um grande trabalho com a escrita, principalmente em Lavoura arcaica, flertando com o surrealismo e o neobarroco:

[…] mergulhei no “Invenção de Orfeu” […], que eu a princípio, e mesmo depois, lia sem entender, porque ninguém, penso, pode entender aquele poemão no nível lógico. Não entendia mas ao mesmo tempo entendia demais aquele texto, inclusive no nível lógico, entende? […] (Massi e Sabino Filho, 1984).

Esse influxo da poesia envolve Lavoura arcaica – romance lírico – que conta a estória de um adolescente, André, que foge de casa após ter uma relação incestuosa com sua irmã Ana. [3] A personagem, qual filho pródigo, qual Orfeu, retorna a casa desencadeando o final trágico, com a morte de Ana.

Logo depois do aparecimento do livro, Alceu Amoroso Lima, em sua coluna “Romances” do Jornal do Brasil, apresentou, de forma consa­gradora, Lavoura arcaica:

[…] Lavoura Trágica [sic] de Raduan Nassar é obra de um jovem estreante, que roça também o fenômeno da miscigenação, em São Paulo, pela imigração sírio-libanesa, embora não toque especialmente neste aspecto do problema. O que faz a força e a intensidade dramática da curta narrativa é o seu reflexo, ao mesmo tempo, bíblico e helênico. É uma versão inteiramente livre da parábola do Filho Pródigo, mas com um desdobramento contraditório ao da narrativa bíblica. Como se a tragédia clássica com a implacabilidade do Destino cego entrasse em conflito com a sublime Visão regeneradora do Amor. O autor não escolhe. O leitor que o faça. E nisso reside um dos elementos mais fortes do drama. […]. (Cf. Amoroso Lima, 1976).

Lavoura arcaica divide-se em duas partes, a primeira se intitula A partida e traz como epígrafe justamente versos de Jorge de Lima extraídos do Canto Primeiro, XXII de Invenção de Orfeu: “Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?” (Lima, 1952; 1997: 525), versos que mais adiante serão retomados e modificados por Nassar; a segunda parte do romance se intitula O retorno e tem como epígrafe uma passagem do Alcorão – Surata IV, 23 –, na qual se diz: “Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs […]”. Essas epígrafes articulam o desejo e a impossibilidade de retorno ao idêntico e à origem, pois, como nos lembra Otacvio Paz, as “vueltas al origen son casi siempre revueltas: renovaciones, renacimientos.” (Paz, 1990: 126).

Como se nota, a estrutura do romance é espiralada, entre a partida e a chegada, retomando o autor um tempo mítico e circular de um eterno retorno, mas na diferença. Aliás, os textos de Nassar se assemelham nesse tipo de estrutura espiralada, ao se encaminharem para situações-limite, com uma ruptura no final que conduz a narrativa de volta para uma situação semelhante à inicial, criando-se um outro elo ao movimento em espiral.

Também se vê esse movimento em Um copo de cólera. Copo, forma cilíndrica capaz de receber uma espiral. Há sempre um copo de mar / para um homem navegar são versos do poema Invenção de Orfeu que tanto inspiram Nassar. O homem navega num copo que possibilita dobras infinitas, copo que circunscreve o percurso possível entre diferença e repetição. Essa novela de Nassar se abre com o capítulo A chegada, cujo narrador é o homem, e termina com um capítulo intitulado A chegada, no qual o narrador é a mulher; repetição como dobra e olhares cruzados.

Essa novela – que podemos entender como um desdobramento não-linear de Lavoura arcaica, com o qual ela estabelece intratextualidade – trata da relação de um casal: Ele, solitário, morando em um sítio isolado; Ela, jornalista, vivendo na cidade. Os amantes, no segundo capítulo, “Na cama”, iniciam o ritual de acasalamento:

[…] fui tirando calmamente meus sapatos e minhas meias, tomando os pés descalços nas mãos e sentindo-os gostosamente úmidos como se tivessem sido arrancados à terra naquele instante (Nassar, 1978: 10).

Três curtos capítulos seguem-se num aumento crescente da tensão entre o casal, até chegar-se ao capítulo “O esporro”, no qual o clímax é atingido quando Ele se depara com o rombo na sua cerca viva, rombo perpetrado pelas formigas saúvas: [4]

[…] malditas saúvas filhas-da-puta”, […] só eu é que sei o que é porque só eu é que sei o que sinto, puto com estas formigas tão ordeiras, puto com sua exemplar eficiência, puto com essas organização de merda que deixava as pragas de lado e me consumia o ligustro da cerca-viva […]. (Idem: 29).

Outro texto de Raduan Nassar é o conto Menina a caminho escrito em 1961 e só publicado em 1994. Ele conta a história de uma menina seguida por um narrador-voyeur na sua travessia por uma pequena e opressiva cidade do interior na qual ela se depara com diferentes personagens-tipos. Cada um desses encontros constituirá uma expe­riência que lhe permitirá confrontar o seu universo infantil à realidade:

Vindo de casa, a menina caminha sem pressa, andando descalça no meio da rua, às vezes se desviando ágil pra espantar as galinhas que bicam a grama crescida entre as pedras da sarjeta (Nassar, 1994; 1998: 9).

O récit dessa busca hesitante da menina pretende ser uma resposta ao mundo fechado de uma pequena cidadezinha que, segundo Édouard Glissant, aparece em Faulkner como o mundo “de la certitude des identités figées et des vérités inéluctables” (Glissant, 1995: 311), e que não aceita o desafio do olhar do outro. A simples inconclusão da sua identidade – “a caminho – pode deixar aberta uma pequena chance para romper o cerco e quebrar as barreiras rígidas do dentro e do fora, ou seja, de uma dualidade radical. Uma alegoria, enfim, como a cerca viva invadida pelas saúvas que fazem explodir a ira da personagem de Um copo de cólera, também presente em Lavoura arcaica, no sermão do pai, no capítulo 9, sobre a necessidade da manutenção de “nossos limites tão bem vedados (Nassar, 1975; 1997: 61).

Assim, mesmo que as motivações estéticas desses três textos sejam diversas, encontramos a mesma construção circular que nos remete ao tema da repetição – lavoura, ciclo – visível também numa leitura conjunta, pois esses textos perpassam idades: infância, adolescência, maturidade – remetendo sem dúvida à experiência pessoal do autor. Entretanto, o trabalho da escrita de Raduan Nassar ultrapassa um simples movimento memorialista. A narrativa nassariana está, como vimos, sempre oscilando entre diferença e repetição, [5] no eterno retorno do mesmo ou da variação.

 

Mediterrâneo caboclo

Nassar, o personagem escritor, que aparece na citada entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira, só se revela afe­tivamente, retomando aqui o registro de Abatte, no momento em que ele começa a falar da sua infância e de sua cidadezinha natal. São de Nassar as legendas que acompanham as fotos de Pindorama que estão na revista Cadernos:

Pindorama era um imenso teatro na Sexta-Feira da Paixão. Apa­gavam-se as luzes da cidade e o cortejo silencioso seguia à luz de vela pelas ruas forradas de folhas secas marcando a pisada vagarosa dos que conduziam o Cristo morto. As congregações vestidas de preto engrolavam a ladainha. E em cada altar, por onde passava a pro­cissão, a Verônica desenrolava aos poucos o sudário, enquanto ecoava em latim seu canto lamentoso: a voz da carpideira estremecia a noite (cf. Nassar, Cadernos: 14).

Essa festa da tradição católica era bastante comum em quase todas as pequenas cidades do interior do Brasil. Nas cidadezinhas, onde não havia um padre local, era o lamento quebrado da matraca” (Nassar, 1975; 1997: 80) que anunciava também a passagem de um sacerdote designado para as festas da Paixão” (Xidieh, 1972: 19). A matraca” mais tarde vai ser utilizada pelos antigos mascates árabes para anunciarem sua chegada a pequenos vilarejos e fazendas.

Alfredo Bosi, numa entrevista, contou-nos sua última conversa com Raduan Nassar na casa do poeta José Paulo Paes:

[…] se falava justamente de como entender a cultura cabocla, a cultura caipira e como era raro as pessoas que podiam falar de dentro, porque os professores da USP, por exemplo, […] falam de fora (sem vivência) e não podem tê-la mesmo porque é um outro universo que está abaixo do limiar de linguagem […] estávamos a conversar de quem entenderia deste universo caipira e o nome que nos veio, que era do conhecimento dos dois é Oswaldo Elias Xidieh, […] que escreveu um livro que o Raduan preza muito: Narrativas pias populares onde ele faz uma fenomenologia da devoção através da análise dos evangelhos apócrifos. […] que não é sem relação com uma linha copta-egípcia-árabe. […] Xidieh foi uma espécie de protetor do Raduan. [6]

Os evangelhos apócrifos são exercícios populares de narrativa oral – aqui transformadas no que Xidieh chamou de Narrativas pias populares –, nas quais o sagrado aparece na forma de co-habitação com os deuses, numa cultura imersa no mito. Tais narrativas contam histórias dos tempos em que nosso Senhor Jesus Cristo andava pelo mundo numa versão cômica das imagens dos apóstolos como no exemplo de Pedro, que se transforma no Pedro Malasartes. No entanto, além de uma simples imitação ridicularizadora, essas narrativas mesclam os após­tolos e o mundo bíblico com a experiência do cotidiano popular e ajudam a entender situações novas ao articularem o passado e a tradição no presente.

Lavoura arcaica é construído num paralelismo, num jogo paródico à estrutura das narrativas apócrifas. André, nome de origem grega que significa o viril, o valente, é o irmão mais novo de Pedro, filho de Iohána (João). André é um dos doze apóstolos, aquele que é representado à esquerda do Pai na Santa Ceia. André é o primeiro que seguiu o Mestre a quem apresentou Pedro, mas foi Pedro o escolhido como o primeiro dos doze.

A paródia, na ótica pós-modernista, promove, como figura estética, uma mistura de visão interessada da tradição, uma visão amorosa, mas não nostálgica, pelo passado conjugada com um certo dis­tanciamento. Para Linda Hutcheon, “a paródia seria a repetição com distância crítica, o que permitiria a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança” (Hutcheon, 1991: 36). A paródia seria, então, a tradução do passado no presente. Assim, ela realiza para­doxalmente tanto a mudança como a continuidade da cultura; ela é uma noção social de continuidade e comunidade, na qual a memória torna-se essencial para se estabelecer o vínculo entre o passado e o vivido.

A experiência do mundo atual, pós-colonial e globalizado, sinaliza para o mundo de fronteiras culturais flutuantes, como aquele que surgiu com o cristianismo, como aquele do surgimento do Barroco, mundos híbridos, da diferença, da transformação mais visível e do entre-lugar no qual vivem indivíduos hifenizados, anfíbios. Nassar, libanês-brasileiro, fala assim da sua Lavoura:

O […] Alceu Amoroso Lima já tinha enfatizado em outro momento o recurso à tradição clássica mediterrânea como atmosfera e contexto da tragédia. Uma tradição que acabou abarcando todo aquele fundo de Mediterrâneo. O Maktub árabe teria a ver com a implacabilidade do Destino grego. […]. Era todo um Mediterrâneo, europeu ou não, em processo de integração cultural. Seja como for, até que eu pense melhor sobre o assunto, vou de anfíbio mesmo quanto ao Lavoura (cf. Nassar, Cadernos: 30).

Como vimos, o mundo biográfio ressona na obra nassariana e sua escrita trabalha sempre com a experiência pessoal; entretanto, sua escritura, pelo seu labor estético, ultrapassa o autobigráfico. Por outro lado, não podemos descartar essa ressonância, essa diferença, visto que ela participa na maneira como o escritor se posiciona no que Bourdieu chamou de “campo literário (Bourdieu, 1998) e ainda, como o escritor se insere na tradição literária, ou seja, seus diálogos. Enfim, seguindo a lição de Bourdieu (idem) e saindo da dicotomia texto e contexto, pretendemos, de maneira breve, detectar, no próprio texto, seu contexto – entrelaçamento disseminado e, portanto, impossível de ser retraçado com precisão e de maneira linear. Assim, estaríamos mais interessados em visualizar o contexto para discernir a maneira como são articulados, sutilmente, certas experiências do autor presentes em seus textos, experiências que se abrem ao coletivo, visto que a arte não se restringe a uma simples dimensão do mundo privado.

Os pais de Raduan Nassar, João Nassar [7] e Chafika Cassis, católicos ortodoxos, casaram-se em 1919 no vilarejo de Ibel-Saki (Ibl Es Saqi), ao sul do Líbano, e um ano depois chegaram ao Brasil. O censo realizado neste mesmo ano (Truzzi, 1992: 10) nos informa que quase vinte mil sírios e libaneses viviam no Estado de São Paulo, principalmente ao norte – muito próxima da região dita pioneira, desbravada a partir de 1870 – onde se localizam as cidades de Pindorama e de Catanduva. Essa região foi habitada originalmente pelos sertanejos e pelos índios Caingangue, contingentes que foram totalmente exterminados durante a chamada Marcha para o Oeste, movimento de conquista de terras do qual também participaram os imigrantes. A região viu nascer diversas cidadezinhas construídas por pioneiros ávidos de poder político e econômico (Monbeig, 1952). Em 1923, o casal Nassar se instala em Pindorama e a partir de 1949 irá morar em Catanduva.

O conto Menina a caminho serve de trilha para Nassar chegar a uma tradução desse Mediterrâneo interiorano, da problemática da transplantação, da tradição e da mistura de cultura, com suas dife­renças e também semelhanças. Esse conto funciona também como a cons­tatação da realidade de uma pequena cidade do Estado de São Paulo que, com a imigração, torna-se uma amostra do Mediterrâneo ainda arcaico, associado a uma cultura originária cabocla, ela também híbrida e primitiva, o que criou uma espécie de Mediterrâneo caboclo:

Pindorama tinha também um pedaço de Mediterrâneo: os imigrantes italianos, espanhóis, portugueses e árabes (cf. Nassar, Cadernos: 43).

Xidieh também pesquisou no Estado de São Paulo as diferentes transformações experimentadas pelas narrativas populares – trans­formações dos evangélios apócrifos – sob influência das modificações sociais, como, por exemplo, da urbanização ou da chegada dos nordestinos e dos imigrantes libaneses ou italianos. O autor dá como exemplo dessas mudanças a narrativa Cedros do Líbano”, história trazida pela imigração libanesa:

Foi no tempo do mau rei Herodes, que amaldiçoado seja, e a Santa Família precisou fugir para o Egito para salvar o Menino Jesus da matança das crianças. O caminho era comprido e eles tiveram que passar pelo Monte Líbano e fazia muito frio e eles não tinham onde pousar. As árvores eram altas demais e não serviam como abrigo. Nossa Senhora chorou de desespero e então os cedros se agacharam e formaram um rancho para a Santa Família (Xidieh, 1967: 35).

Podemos observar, em Lavoura arcaica, o uso da estrutura dessas histórias e de ditados e provérbios comuns à essa cultura – como também à cultura cabocla que preservou importante herança lusitana com suas tradições cristãs, mediterrâneas, costume que pode resvalar para a finalidade exclusiva de preservar as tradições e os ensi­namentos ou inserir-se na dinâmica do presente.

O uso dos provérbios é bastante comum na tradição mediterrânea de transmissão da tradição, pois o provérbio – do grego paroimia – é uma fórmula popular esteriotipada, exprimindo um fato da experiência concreta sob forma de uma imagem metafórica tendo um uso geral. A formulação arcaizante dos provérbios reenvia a um passado não-determinado e revela a sabedoria dos antigos, conferindo autoridade a quem dele se utiliza. O caráter arcaico dos provérbios constitui uma maneira de colocar fora do tempo as significações que eles contêm. O presente empregado é um tempo a-histórico que ajuda enunciar, sob forma de simples constatação, verdades “eternas”. O imperativo, instituindo uma regulamentação fora do tempo, assume a perma­nência de uma ordem moral sem variações e por isso, asfixiante. O provérbio tem, assim, um uso retórico. Em Lavoura arcaica ele é bastante empregado, sobretudo no sermão do pai sobre o tempo e a paciência:

[…] dar o passo mais largo que a perna é o mesmo que suprimir o tempo necessário à nossa iniciativa; e ninguém em nossa casa há de colocar nunca o carro à frente dos bois: colocar o carro à frente dos bois é o mesmo que retirar a quantidade de tempo que um em­preendimento exige; e ninguém ainda em nossa casa há de começar nunca as coisas pelo teto: começar as coisas pelo teto é o mesmo que eliminar o tempo que se levaria para erguer os alicerces e as paredes de uma casa […] (Nassar, 1975; 1997: 55).

O tema da imigração está presente nos textos nassarianos: em Lavoura arcaica, Menina a caminho e Um copo de cólera. Mencione-se desta última novela, a passagem na qual o personagem narrador declara: “e fui empurrando a minha história, equacionando uma álgebra tropical, ardente como nas origens [sangue e areia] (Nassar, 1978: 56), e também cite-se a epígrafe retirada do Alcorão que abre a novela: “Ninguém dirige aquele que Deus extravia. Entretanto, essa pro­blemática não é tratada de maneira etnográfica nem é um tema central. Raduan Nassar aparece, assim, como primeiro escritor libanês-brasileiro a tratar do problema da transplantação no Brasil, problematizando e esfacelando uma história da literatura apresentada como linear e forjada por uma identidade nacional unívoca. Para Walnice Nogueira Galvão, Nassar é o primeiro Árabe” a romper tal uniformidade:

Neste ínterim, os turcos, [8] colônia mais recente ainda, esperariam algum tempo para alcançar maioridade literária, o que viria a ocorrer com Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, e Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum (1989). Nesses autores, que a crítica se apressou em saudar, passa longe o empenho de etnografar o êxodo desde as origens árabes. Uma prosa densa e sofisticada, já informada pelos melhores recursos da modernidade, permite a conversão da experiência dos transplantados – sem abstraí-la todavia em resultado estético (Galvão, 1998: 21).

 

Terra e imigração

Sob dominação otomana durante quatro séculos e depois de 25 anos de colonialismo francês, o Líbano tem produzido uma emigração constante, sobretudo de cristãos, uma minoria perseguida pelos muçulmanos instigados pelos turcos no longo período de sua dominação. Utilizando-se da política do “dividir para reinar”, os turcos no Líbano, serviram-se politicamente da religião.

O pai de Nassar contava essas experiências aos seus filhos. Em entrevista a Edla van Steen, Nassar assim falou do seu pai:

Vem dele minha primeira formação política, através dos seus constantes relatos sobre o tempo em que ele, criança, tinha de servir no exército de ocupação otomano. Escutávamos esses relatos todos com extrema gravidade. […]. Lia muito jornal e nos fazia ler também em voz alta, criticando em seguida o noticiário (Steen, 1983: 265).

Os libaneses vieram para a América incitados pelo sonho de liberdade religiosa e principalmente pelo desejo do progresso econômico. Dife­rentemente dos italianos que aqui chegaram como mão-de-obra para as fazendas de café, substituindo os escravos, muitas vezes iludidos por agenciadores que lhes prometiam terras, os libaneses, assim como os sírios, migraram sem nenhum programa de ajuda e sem garantia de trabalho, fato que lhes dá um certo orgulho.

A atividade agrícola é ainda muito importante na cultura mediterrânea. No começo do século XIX, a necessidade de aumentar a extensão das terras familiares levou os jovens a imigrarem para a América, onde a escolha pela atividade comercial era uma estratégia de independência, visando sobretudo acumular capital para posterior compra de terras no Brasil e também para o retorno ao seu vilarejo natal.

A maioria dos libaneses provinha de vilarejos nos quais haviam sido agricultores, numa base arcaica ainda hoje existente em certas regiões do Mediterrâneo, cuja estrutura social e econômica é baseada na família estendida. Ramiz Gattás, libanês que chegou ao Brasil no mesmo ano que os pais de Nassar e também proveniente do mesmo vilarejo (Ibl Es Saqi), assim descreveu sua aldeia natal:

A nossa aldeia foi o centro de várias manifestações folclóricas, que nos ligavam à história antiga, porque vivíamos costumes muito primitivos. O sul do Líbano é o maior depositário da história do país, porque os costumes pouco mudaram. A origem de nossa aldeia remonta a três ou quatro mil anos, as coisas que nós conhecíamos eram exatamente aquelas que foram conhecidas na época. A maneira de plantar, a maneira de colher, a maneira de preparar as comidas, a maneira de viver a vida, tudo isso nós conservávamos como uma relíquia […] (Greiber e albii, 1998: 752-53).

A transplantação engendrou um sentimento de precariedade da herança comum que precisaria ser preservada como uma relíquia a ser resguardada e que por isso, segundo Walter Benjamin, acaba se transformando em fardo morto condenado à repetição mítica. O trabalho de Xidieh e a obra de Nassar mostram como a tradição varia e se adapta às necessidades cotidianas e às mudanças terminam sendo encaradas como positivas e possibilitadoras de uma visão da tradição compreendida como experiência comunicável e coletiva.

Se para Benjamin o homem moderno se torna, cada vez mais, incapaz de narrar a experiência coletiva ligada à memória individual e coletiva, ao inconsciente e à tradição, o narrador nassariano também se situa nesse limiar do declínio do narrativo, do camponês sedentário capaz de transmitir a sabedoria de outros tempos. (Benjamin, 1985: 198). Poderíamos sugerir a seguinte proposição de Kátia Muricy, feita a propósito de Benjamin, à escrita nassariana: “[…] a experiência se torna definitivamente problemática e sua possibilidade depende de uma construção vinculada à escrita (Muricy, 1999: 184).

É preciso salientar, ainda, que esses agricultores no Líbano exerciam também o comércio, uma vez que eles mesmos vendiam seus produtos agrícolas. De fato, como a família era uma espécie de reprodução da sociedade em pequena escala, havia, em seu seio, lugar para diferentes atividades profissionais, gerando um processo de circulação e articulação entre o espaço rural e o espaço urbano.

Agricultores no Líbano, a família Nassar se torna comerciante no Brasil, mantendo ainda algumas atividades agrícolas. A importância dada aos estudos dos filhos faz a família se mudar duas vezes: em 1949, de Pindorama para Catanduva e, em 1953, para São Paulo. Num total de dez filhos, sete escolheram cursos de filosofia ou letras. Como já se mencionou, Nassar, ele próprio estudou direito durante cinco anos, letras e se formou em filosofia; Raduan exerceu também atividades comerciais, criou coelhos, trabalhou em jornalismo e literatura, e finalmente se dedicou à atividade agrícola, conforme sua tradição familiar, perfazendo o movimento espiralado também presente em sua obra.

A relativa ascensão social do grupo de imigrantes libaneses liga-se diretamente ao desenvolvimento econômico do interior do Estado de São Paulo nos anos 30, enquanto na mesma época o sistema agrário de Minas e do Nordeste periclitava:

Foram esses imigrantes cada vez mais bem posicionados nas pro­fissões liberais tradicionais e na estrutura miúda do comércio (aliás, comércio especializado em muitos casos, segundo a etnia), que, no seu conjunto, e ao seu modo, verdadeiramente revolucionaram a sociedade paulista ao introduzirem nela, já no início do século e com mais vigor ainda no pós-30, uma gama extensa, complexa e di­ferenciada de posições intermediárias na estrutura social urbana, esmaiecendo as antigas oposições e clivagens características da so­ciedade agrária em declínio. Neste processo foram se constituindo novos padrões e modalidades de inserção social dificilmente apro­priáveis por esquemas polarizados de análise emergindo toda uma nova região da estrutura social que passou a abrigar os descendentes dessas etnias, dando feição própria e original ao atual tecido social paulista. (Truzzi, 1992: 111).

Raduan Nassar escreveu sobre a imigração e a hibridação no ensaio Nachahmung und Eigenwert (A corrente do esforço humano) publicado apenas na Alemanha (Nassar, 1987). Comentando esse ensaio, Nassar salientou o lado xenófobo do mundo rural e retomou, de certa forma, o sonho de tolerância ética proposto por Oswald de Andrade:

Com todo aquele cosmopolitismo, São Paulo diluía minha condição de filho de imigrantes, sem as pressões tão diretas exercidas numa cidade do interior. Nesse tempo, quando ocorria de sentar-me ao redor de uma mesa, mesmo se muito calado, eu me distraía em levantar origens étnicas e achava que a melhor contribuição que o Brasil poderia dar seria um novo ciclo de mestiçagem. Mesmo se levasse um milênio, mesmo se fosse um parto demorado e difícil, com muita dor, seria muito bonito o que se poderia vislumbrar (cf. Couri, 1998).

 

São Paulo - capital

Para continuar seus estudos, em 1953, Raduan transfere-se com sua numerosa família para a capital, São Paulo, centro modernista/modernizador e, nesses anos 50, palco da efervescência das últimas vanguardas.

Nassar depara-se, então, com o ambiente paulistano e sua “atmosfera cultural constrangedora”, na qual, como ele mesmo dizia, “os jovens escritores que não cediam às propostas da época eram inibidos pela falta de espaço”. Conhece também a ferrenha “briga de foice para arregimentar seguidores” entre aqueles que queriam “ser reconhecidos como a elite”, atitude que, segundo ele, termina, de modo obsceno, por “dar um tamanho às chamadas grandes individualidades que reduz o homem comum a um inseto”. (Cf. Nassar, Cadernos).

Efetivamente é nesse contexto cultural e político que emergia uma figura de intelectual com pretensões a guiar a sociedade. Em tanto domínio das elites, as artes aliavam o modernismo aos propósitos da modernização, numa vontade de transformação social possível pela crença em sua capacidade de encenar mudanças. Nassar questiona, então, as pressuposições que ligavam o modernismo e a vanguarda aos propósitos da modernização social, tomavam como inquestionável a crença na perpétua modernização das artes transformadas num quase academicismo pelas suas imposições formais.

Na entrevista concedida aos Cadernos, Nassar não cessa de denunciar o ambiente cultural da capital paulista na década de 50, “prepotente” e “autoritário”, segundo ele, “compatível em parte com o que ocorreria logo depois no plano político”. Esse mesmo questionamento também será feito por Alfredo Bosi, denunciando sua característica dicotômica:

[…] onde estamos em 1956? No mito, na linguagem arcaica e popular, na evocação do contexto jagunço, na volta apaixonada à natureza mais agreste? Ou na arrancada para a modernização definitiva? (Bosi, 1992: 12).

Modernismo de 1922 seguido pelo populismo nacionalista da ditadura de Vargas, Concretismo de 1956 conectado com um projeto nacional-desenvolvimentista de Juscelino, [9] seguido por sua vez pela ditadura militar de 1964.

Podemos perceber em Nassar uma recusa ao Modernismo atrelado a Oswald de Andrade, cuja temática primeira é a presença simultânea de traços arcaicos e do mundo burguês e moderno que existia e continuaria a existir no Brasil. Percebida de maneira complexa por outros intelectuais, como Machado de Assis e Sérgio Buarque de Hollanda, Oswald trata aquela realidade de maneira muito otimista, preocupado mais com o aspecto formal de uma estética de vanguarda que fosse capaz por si só de dar um verniz de modernidade ao nosso mundo ainda pré-moderno, como salientou Roberto Schwarz. (Schwarz, 1997: 13).

Em linhas gerais, em Oswald de Andrade funciona um “realismo alegórico no qual mistura-se uma estrutura arcaica a traços da incipiente modernização, mediante cenários urbanos, industrialização e imigração. Oswald fazia uma caricatura ácida, mas sentimental, do país, utilizando insights metafóricos que simplificavam a realidade social. Essa percepção otimista, cara aos primeiros modernistas, em Oswald e Alcântara Machado, estende-se à imigração, sobretudo a italiana, vista como marca modernizadora, visão complexificada por Nassar, como se vê já pelo próprio título do seu romance Lavoura arcaica.

Em Menina a caminho podemos encontrar uma “visão de dentro do autor em relação à “visão de fora de Alcantara Machado, quatro­centão paulista que em Brás, Bexiga e Barra Funda, documentou, de maneira cômica e alegre, os imigrantes italianos, o falar macarrônico que seria uma língua de transição e adaptação. Por outro lado, como Nassar declarou, o ambiente cosmopolita da capital era mais favorável às diferenças e ao imigrante, diversamente do que ocorria nas áreas rurais e nas pequenas cidades nas quais subsistia o peso da opressão e da xenofobia.

 

Entre o rural e o urbano: Menina a caminho e Brás, Bexiga e Barra Funda

Assim, para finalizar o presente trabalho, faremos uma leitura relacionando esses dois contos em suas implicações na maneira de conceber tradição e modernidade, e, ainda, mundo rural e mundo urbano, visões que não se excluem, mas se suplementam. [10]

Quando escreveu aquele conto, Nassar estava à procura de uma escrita. Na entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira, ele escla­receu que à época fazia experiências utilizando-se de técnicas ditas objetivas ligadas à influência do cinema e do “behaviourismo, técni­cas já utilizadas pelos escritores americanos como Dos Passos, Hemingway, Anderson e Faulkner. Segundo Claude-Edmonde Magny, tal visão behaviourista do homem conduziu esses escritores a mostrarem ao leitor “não os sentimentos ou pensamentos de seus personagens, mas a descrição objetiva de seus atos. (Magny, 1948: 50).

O uso da técnica dita “objetiva em Menina a caminho, como o jogo dos diálogos, permite uma “pintura do povo sem psicologismos, des­crevendo seres estranhamente incapazes de reagir ante a indiferença social. Podemos encontrar aqui ressonâncias com Neo-Realismo e encontrar alusões ao romance regionalista brasileiro.

O conto contém um duplo movimento: uma escrita interna e externa que oscila entre a objetividade narrativa e a apropriação pelo narrador da visão da menina, o que Jean Pouillon chama de “vision avec, “visão conjunta (Pouillon, 1946: 79); ou seja, “o persongem é visto não na sua interioridade [….], mas na imagem que ele se faz dos ou­tros, de alguma maneira em transparência com esta imagem. [11]

O emprego do presente dá a impressão estranha de distância, neutralidade ou de objetividade do narrador. O presente, segundo Dominique Maingueneau, “[…] instaura um fora do tempo, um mundo presente e perfeitamente estrangeiro” (Maingueneau, 1994: 51), no qual o tempo da história e o tempo do narrador estão ligados. O presente é também o tempo da leitura e o tempo da criança.

A narração oscila entre focalização interna e externa: podemos ver através dos olhos da menina, depois de mais perto, e ainda, abrindo a objetiva, a menina ela mesma e, mais raramente, uma cena na qual ela está ausente – sem romper a continuidade essencial do récit.

O narrador guarda uma neutralidade que algumas vezes desaparece, sobretudo no meio do conto, quando ele “chega à oficina do artesão “Tio-Nilo”, [12] personagem mítico, exemplar: o narrador toma, então, posição afetiva através do discurso indireto livre da menina:

Do interior da pequena oficina de duas portas, o seu Tio-Nilo, olhando por cima dos óculos, está medindo a menina, assim sur­preendida seguindo a velha. Ela se acanha, abaixa os olhos, mas se aproxima. Levanta os braços, agarra as malhas de arame acima da cabeça, e abandona o corpo franzino contra o alambrado que barra uma das portas: que cheiro de couro mais gostoso na selaria do seu Tio-Nilo! (Nassar, 1994; 1998: 36).

O recurso ao discurso narrativo metafórico, associado ao discurso indireto livre, permite construir uma visão poética da experiência, bastante próxima daquela, mágica, da criança. O narrador abandona sua objetividade inicial e se confunde com a menina por meio da sua visão, sua voz e sua imaginação:

A menina vislumbra um fundo escuro de quintal, um grande círculo fofo de palha de arroz, velas acesas na ponta de estacas, os casacas-de-ferro, os meninos-trapezistas, e seus olhos piscam de fantasias. (Nassar, idem: 18)

O narrador acompanha a menina e o seu olhar sobre o mundo estranho dos adultos e sobre os diversos tipos da pequena cidade, fronteiras perdidas [13] enclausuradas por trás das bordas do seu mundo fechado e tradicional. Em seu caminho ela encontra o árabe, o crioulo, o espanhol, o caipira, o mulatinho, o cigano e a figura emblemática: o italiano demente, esquecido pelos seus e fechado em um mundo à parte:

“Dov’è il bambino?”

O seu Giovanni arrasta as alpargatas na outra calçada, parece um papai-noel que perdeu a roupa vermelha, […]. Anda sem parar, […]. Nas suas andanças, passa o dia falando sozinho, como se procurasse um menino. “Quel malandrino…” (ib. Ibdem, 18).

O imigrante é representado como um ser insular habitando uma terra ilegítima, marcada pela violência sob a égide do patriarcalismo. A temporalidade se estende, perdendo um registro preciso pelo fato de não ser possível verificar se se trata do tempo do Gétulio ditador ou se o autor alude a uma época posterior, conferindo ao seu conto um aspecto de imutabilidade pesada, claustrofóbica.

O italiano que aparece em Nassar, fechado e perdido em seu mundo, não fala macarrônico – esta língua de transição entre duas culturas e signo de uma adaptação em processo –; aqui a personagem, o italiano, simplesmente se arrasta pela cidade procurando um “menino”, a origem de uma identidade perdida e impossível.

Numa entrevista Nassar explicou que fez uma homenagem, por meio da personagem Seu Giovanni, a João Baptista Tridda, um imigrante italiano habitante de Pindorama:

Esses imigrantes estão nos seus livros?

– De um modo ou de outro, estiveram sempre. Entre italianos, existe uma figura mítica na minha cabeça. Em “Menina a caminho fiz um registro curtíssimo da sua existência por meio do Giovanni, mesmo assim de modo muito transfigurado. Foi só uma ponta de home­nagem, que pretendia ampliar um dia.

– Quem era Giovanni ?

João Baptista Tridda. Mas nem um romance de 500 páginas daria conta do sentido dessa vida. E do drama que foi quando se obrigou, por excesso de escrúpulos, a abandonar a cidade a que ele tinha se dedicado tanto. Entre muitas coisas, fez da molecada uma afinada banda de música. Mas um parente seu por afinidade se envolveu num rombo financeiro, ele não suportou a dor e saiu de Pindorama. Não existem mais homens como Giovanni neste mundo. E era um homem de simples anonimato. (Cf. Couri, 1998).

Vejamos agora como em Brás, Bexiga e Barra Funda (1927; 1997), Alcântara Machado faz da paródia instrumento de reflexão e de crítica ao discurso literário vigente que ela pretende renovar. A paródia é aqui utilizada seguindo a esteira dos movimentos de vanguarda, como instrumento de ruptura com uma determinada tradição. A paródia [14] atua não em relação a um texto específico, mas ao conjunto da literatura que se quer renovar e em última instância uma sociedade que se pretende transformar.

Brás, Bexiga e Barra Funda, cujo subtítulo é “Notícias de São Paulo” começa por um “Artigo de fundo” no qual o autor explica suas intenções: “Brás, Bexiga e Barra Funda – lugar de memória – noção de patrimônio histórico – é o órgão dos ítalo-brasileiros de São Paulo” (Alcântara Machado, 1997: 27). Nela, o autor pretende representar uma raça aventureira e alegre capaz de regenerar a tristeza que seria característica das três raças até então presentes no Brasil.

Segundo Alcântara Machado, os italianos respondiam bem ao nosso triste problema e melhorava o brasileiro, uma vez que, além de alegres, eles também eram uma gente trabalhadeira, outra qualidade que nos faltava. A representação do imigrante italiano é nitidamente associada à modernidade, retratando seres como o operário, o artesão e o empresário na metrópole que surgia naquele tempo: São Paulo.

Esse desejo de alegria e otimismo salta para a escrita de Alcântara Machado revelado nos traços da crônica humorística – cômica, mas nunca satírica ou irônica. “Não é sátira,” como ele prório observa em seu “Artigo de fundo”, provocando o riso [15] e o “sorriso final” (Andrade, 1944) que os modernistas cultivavam. A comicidade como atitude otimista de enfrentamento da realidade social, realidade capaz de ser trans­formada, já que o Modernismo, mesmo sendo muito mais uma tendência estética que ideológica, não deixa de exprimir uma vontade profunda por um salto progressista, embora aliada a uma postura de “aceitação da pátria tal qual ela é, de ridicularização dos que pretendiam vê-la com olhos europeus.” (Moreira Leite: 1969, 234).

Dessa forma, Alcântara Machado privilegia o uso da paródia do real que resvala para o cômico, conquanto retrata o ajustamento, a adaptação e os desencontros daqueles imigrantes em terra brasilis. O imigrante é representado por meio de uma galeria de tipos italianos e ítalo-paulistas, mediante personagens-tipos, tais como “Gaetaninho”, “Car­mela” e “Lisetta”, que pretendem uma representação do mundo objetivo e de uma classe social, fixando o modo como se processava a aculturação, mostrando uma distância relativa entre as aspirações dos filhos de imigrantes e o seu destino concreto.

Raduan Nassar situa-se estrategicamente em posição bem diversa à de Alcântara Machado. Nassar procede transformando o cômico imigrante de Alcântara Machado numa transposição séria, uma vez que finalmente “o cômico não passa de um trágico visto de costas”. [16] Se a etimologia de “paródia” indica o fato de cantar em outra voz (paralelamente, cantar em outro tom, deformando), a paródia, dife­ren­temente de sua utilização pelas vanguardas que privilegiam a ruptura, aqui implica uma permanência no tempo – ao mesmo tempo de várias vozes e sugere ainda a reinterpretação de uma repre­sentação que passa a atuar conjuntamente como verso e reverso.

Ponto importante é a recontextualização [17] dos dois cenários históricos escolhidos: no primeiro, o de São Paulo, lugar do progresso, e, no segundo, a pequena cidade perdida e parada no tempo – o próprio deslocamento do contexto ensejando uma diferença. O tempo moderno se confrontando com o tempo arcaico numa vontade de instaurar uma multiplicidade temporal.

Em Menina a caminho, o narrador adquire pouco a pouco o sotaque e o humor locais, transformando-se, ao ritmo do bolero, em um “con­tador de causos quase engraçado:

O Zé-das-palhas gira pra trás o botão do rádio, apaga o bolero mexicano que tocava, arruma o brim do terno e a palheta na cabeça, e fica c’um jeito de quem faz pose enquanto se concentra. Atrás dele, de pé, separado só pelo balcão, o galinheiro amontoa. Não se ouve um pio, até que o seu Zé sapeca a voz rachada no rádio, como se falasse num microfone, martelando ao mesmo tempo o dedo no ar, como se passasse um pito. (Nassar, 1998: 29).

Assim, Nassar consegue se apropriar um pouco do falar caipira, aproximando o narrador dos personagens (visão conjunta), não havendo mais distância entre os dois discursos, o que suprime o exotismo e o simples mimetismo da maneira local de falar, es­tabelecendo uma aproximação entre eles. Zé das Palhas começa então seu discurso contra Getúlio: “Doutor Getúlio Vargas, o povo brasileiro tá cansado, cansado, cansado: não agüenta mais apertar o cinto, […], não agüenta mais o senhor mandar as pessoas pra cadeia […].

“Gétulio é nosso pai!. Esta é a passagem seguinte da narrativa e quem a grita é um homem robusto, talvez operário sindicalizado, passagem que irrita o proprietário do café com sua vontade de independência baseada ironicamente no patriarcalismo. O retrato de Vargas paira sobre a cidadezinha como o de um deus.

Toda a cidade é marcada pela intolerância, mesquinharia, machismo. Enquanto a menina caminha, um escândalo explode, numa narrativa permeada de elipses – o leitor, assim como a menina, não consegue saber o que se passa exatamente com o filho de Seu Américo:

“Uma tunda!”, diz ele. “É disso que o filho dele precisa”, diz a cada brecha que se abre na falação. (Nassar, 1998: 21).

“Aqui que a flor do filho dele se safa. Aqui!” (idem: 23).

Essa conversa se passa na barbearia, centro das fofocas e das piadas sarcásticas. Nassar assim descreveu a barbearia de Pindorama:

A barbearia era lugar de mulheres peladas nas folhinhas. Menino, eu fingia que dormia enquanto cortavam meu cabelo.” (Cadernos, 1996: 44).

Menina a caminho, assim como os outros textos nassarianos, entre escrita e escritura que envolvem o leitor no lavourar, é um récit iniciático. O paradigma da travessia está presente no desejo de evasão, na transgressão, na busca do maravilhoso, no encontro e na mudança constante de identidade da menina. Não podemos evitar a com­paração com Dubliness de Joyce, no qual a epifania é a revelação de uma paralisia, pois nada de novo irá acontecer. Em Nassar, porém, essa paralisia talvez possa se abrir para um movimento em espiral de um novo recomenço, de uma saída.

Já Alcântara Machado, que também foi historiador, pretende constituir documento para a história do país, registrando uma massa de imigrantes que se transforma, antropofagicamente vira o mesmo, esquecendo contradições e tensionamentos para possibilitar a Nação, num desejo de unidade. Mas Alcântara Machado é consciente de sua “visão exterior” e, portanto, restrita, como ele próprio assim se justificou em artigo que escreveu sobre o escritor norte-americano Sherwood Anderson:

Ainda não possuímos romancistas ou poetas operários […]. Gente portanto capaz, mais que qualquer outra, de revelar o lado oposto das coisas e dos homens, o invisível e mesmo inexprimível. Não pos­suímos esta gente. (Alcântara Machado, 1940: 34).

Em suma, nessa leitura conjunta das alusões à tradição e à modernidade, o verso e o reverso se suplementam, espiralizam-se, sem que possamos decidir por valorar uma à outra, sem que elas resolvam seus tensionamentos. Tensões que antes as complicam, para além do simples dualismo entre sociedade arcaica e sociedade progressista, uma vez que são elementos e temporalidades em inte­ração constante.

A literatura de Raduan Nassar está no entre-lugar do paradoxo. Ao invés do “isso ou aquilo”, ele trabalha sob o registro da dinâmica do “isso e aquilo.”Contrário à noção de um presente superior ao passado, ele retoma tradições sem descartar um diálogo vivo com os movimentos vanguardistas de então, entre eles o Concretismo e o Nouveau Roman. Perguntado na entrevista aos Cadernos de Literatura acerca de sua aproximação com as vanguardas, Nassar respondeu que estas não “conseguiram engolir um paralelepípedo lírico como eu.” É evidente o seu questionamento de certos pressupostos modernistas. O autor desconfia de uma arte elitista e relativiza o seu poder de transformação social:

E depois, todas essas disputas por valores estéticos são feitas em nome do quê? Que é que acrescentam na zorra que é esse mundo? É a espécie que tem melhorado com isso? Ou querem ser reconhecidos como a elite? É isso o que querem? Sentem-se mais seguros, mais felizes assim? Ótimo. No que me toca, como bom caipira, lhes concedo sem qualquer dificuldade o título de aristocratas. (Cadernos, 1996: 34).

Para terminar, podemos dizer que, assim, excluída a concepção de hierarquia temporal de etapas históricas, a obra de Raduan Nassar nos aponta uma articulação incessante entre tradições e moder­ni­zações/modernidades, uma vertigem interrogativa acerca de nos­sas contradições e im-possibilidades (Chiampi, 1998), num devir permanente.

 

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Notas

[1] Nassar cursou até o quinto ano da Faculdade de Direito e freqüentou o curso de Letras por um ano.

[2] Acerca da conceituação e a relação do par “modernidade/modernização” citamos Canclini: “Adotamos com certa flexibilidade a distinção feita por vários autores, desde Jürgen Habermas até Marshall Berman, entre modernidade como etapa histórica, a modernização como um processo socioeconômico que vai construindo a modernidade, e os modernismos, ou seja, os projetos culturais que renovam as práticas simbólicas com um sentido experimental ou crítico.” (Cf. Canclini, 1998: 23).

[3] O espaço e o tempo são imprecisos, abrindo a uma multitemporalidade, mas que podemos arriscar localizá-lo, por algumas vagas alusões do texto, nos anos 50, numa pequena fazenda familiar, entre São Paulo e Minas.

[4] Recorde-se que as saúvas estão presentes na literatura de Lima Barreto e de Mário de Andrade.

[5] Acerca do tema da diferença e da repetição, relacionada ao Eterno Retorno e à filosofia da diferença, vejamos Gilles Deleuze: “[…] a arte do romance contemporâneo, que gira em torno da diferença e da repetição não só em sua mais abstrata reflexão como também em sua técnicas efetivas […]. Todos estes sinais podem ser atribuídos a um anti-hegelianismo generalizado: a diferença e a repetição tomaram o lugar do idêntico e do negativo, da identidade e da contradição […].” (Cf. Deleuze: 1968; 1988: 15).

[6] Esta entrevista nos foi concedida em Paris, no dia 21 junho de 1999, na École des Hautes Études en Sciences Sociales [EHSS]. Nassar, em entrevista que nos concedeu, em fevereiro de 2003, dirá que não conheceu Xidieh.

[7] A primeira edição de Lavoura arcaica [1975] continha uma dedicatória a seu pai, João (do hebreu Ioanan), dedicatória que será suprimida nas edições posteriores talvez visando atenuar a dimensão autobiográfica do romance. É preciso lembrar que também nessa primeira edição existia as “Notas do autor” onde são elencadas diversas citações existentes no romance, essas Notas também serão suprimidas. Podemos dizer, brevemente, que a relevante dimensão intertextual presente nos textos nassarianos se abre para uma enunciação coletiva, em detrimento de uma dimensão meramente pessoal.

[8] A denominação turcos” é vista de maneira pejorativa por aludir ao fato de que os libaneses estavam sob dominação turca e usavam passaporte otomano quando chegaram ao Brasil.

[9] “Seria exagero afirmar que, nos anos 50, toda intelectualidade progressista embarcava nos projetos do reformismo nacionalista.” (Cf. Mota, 1990: 174).

[10] Como salienta Gumbrecht: “[…] uma mudança do hábito – moderno – de organizar as múltiplas representações de fenômenos idênticos como evoluções e histórias para o hábito – pós-moderno – de tratá-las como variações que estão simultaneamente disponíveis.” (Cf. Gumbrecht, 1998: 22).

[11] “Il faut aussi noter que ce que nous appelons focalisation interne est rarement appliquée de façon tout à fait rigoureuse”. (Cf. Genette, 1972: 209).

[12] O artesão como o depositário de um saber acumulado. Aqui uma alusão ao artesão Mestre Amaro, personagem do romance Fogo Morto de José Lins do Rego.

[13] A imagem “fronteiras perdidas” correspondia primeiro ao constante des­locamento em direção ao Oeste americano, aqui se configura como o fechamento [repli] sobre si mesmo presente nos indivíduos que mudaram de território. (Cf. Glissant, 1995: 308): “Dans les mondes-frontière se déploient emblématiquement les modes du rapport à l’autre: le repli exarcebé sur soi […]. ” E ainda: “Le Sud n’est pas seulement un lieu-frontière mais aussi ce lieu clos. […]. C’est une frontière totalement, qui ne se déplace que dans l’immobile, et qui porte en elle sa propre contradiction insoluble.” (idem: 313).

[14] Paródia entendida como técnica para a evolução literária, ligada, portanto, à ruptura com o sistema literário anterior. Ver Iouri Tynianov (1969).

[15] “Um dos maiores benefícios que o movimento moderno nos trouxe foi justamente esse: tornar alegre a literatura brasileira. Alegre quer dizer: saudável, viva, consciente de sua força, satisfeita, com seu destino.” (Cf. Alcântara Machado: 1940).

[16] “[…] le comique n’est qu’un tragique vu de dos”. (Cf. Genette: 1992, 23).

[17] Segundo Linda Hutcheon, na paródia – definida historicamente – duas operações seriam fundamentais: a inversão que possibilita um distanciamento irônico com seu modelo e a recontextualização, sem contudo deixar de valorizar, paradoxalmente, seu modelo. (Hutcheon, 1985).