Estudos Sociedade e Agricultura

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Maylta Brandão dos Anjos

A ideologia das cartilhas escolares


Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 141-148.

Maylta Brandão dos Anjos é mestre pela UFRRJ/CPDA.


Este texto pretende apenas chamar a atenção sobre a presença ativa dos valores e regras de conduta no material didático brasileiro do ensino elementar. A filiação a uma linha ideológica, aqui, parece inevitável. O que já tem sido apontado pelos mais diferentes autores que afirmam não existir neutralidade na educação e, conseqüentemente, no ensino, como também nos conteúdos por ele difundidos. Apesar do saber procurar se desprender da ideologia, ficará sempre o molde, o código de interpretação que não permitirá um ensino sem amarras e vinculações (Capalbo, 1978: 41). Uma perspectiva desse tipo pode se beneficiar do entendimento de como se processa a formação da cidadania no contexto educacional.

Como salienta Bendix, nas sociedades ocidentais os atributos da educação elementar têm se convertido em elemento decisivo da conformação da cidadania. Duas seriam as principais visões sobre a relação educação/cidadania. Num primeiro momento, predominou a dos conservadores que temiam a indocilidade do povo e pensavam que podiam domesticá-lo recorrendo aos princípios fundamentais da religião e da lealdade ao governo e à Pátria. Depois, começou a ter peso o argumento dos liberais, de acordo com o qual o Estado Nacional seria o responsável pela formação da cidadania nos órgãos educacionais (Bendix, 1964).

À medida que os grandes núcleos populacionais cada vez mais foram se privando da educação elementar, o acesso aos meios educativos também foi se convertendo em um pré-requisito sem o qual nenhum dos direitos restantes reconhecidos pela lei podia vigorar plenamente (Bendix, 1964). Paulo Freire, nesse mesmo sentido, afirma "que não é possível negar - a não ser por astúcia ou angelitude - o caráter político da educação. Daí que os problemas básicos da pedagogia não sejam estritamente pedagógicos, mas políticos e ideológicos" (Freire, 1978: 64). Segundo Gadotti, "é ilusão da pedagogia tradicional sustentar que a educação pode ser desvinculada do poder da ideologia, que é possível uma educação neutra, que só a educação neutra ou desinteressada é a ‘verdadeira educação’". Daí o consenso de que a educação tem por base uma concepção ampla sobre o homem e a sociedade, decorrendo da sua difusão obrigações de caráter social que lhe retiram a possibilidade da neutralidade (Gadotti, 1978: 11).

Tornam-se particularmente emblemáticos os textos das cartilhas brasileiras que, lidos por crianças e mesmo por adultos, transmitem mensagens carregadas de valores e sugerem comportamentos e, principalmente, atitudes, como nos mostra a psicologia social, predispondo os leitores a um modo de pensar e proceder conformativo de certo tipo de indivíduo. O exercício seguinte consiste na apresentação da discursividade desse material educativo, a partir de seis temas: família, meio ambiente, cidadania, religião, escola e trabalho.

Família

A família é apresentada nas cartilhas das décadas de 60-70 como um mundo à parte em si e para si, desvinculada da realidade social, econômica e política em que está inserida. Os seus autores tentam mostrar na família um lugar de paz, segurança e felicidade, onde não há conflitos individuais. Já os textos da década de 80 fazem indagações sobre a estrutura socioeconômico da família, inserem-na em sua comunidade e operam com uma linguagem próxima à realidade dos alfabetizandos.

Olhem a família de Davi / Papai e mamãe / Vovô e vovó / Edu e Amélia / Todos felizes / Todos alegres / Todos contentes. (A Cartilha de David, 1968).

Eu vi mamãe rezando / Aos pés da virgem Maria / Era uma Santa escutando / O que outra Santa dizia. (Surpresas e Mais Surpresas, 1969).

Não é por ser o quintal da casa de Virgininha muito grande, / ter muitas frutas, que as crianças brincam lá não./ É que gostam muito da menina e de toda a sua família. / Dona Morita, a mãe, e o senhor Armando, o pai, são muito amigos das crianças. / Eles tratam com muita bondade todos que vão lá brincar. Virgininha fez sete anos, é uma aluna comportada e já sabe ler. Vem depois Isabelina que já está na 5ª série. É tão comportada e quietinha que o professor esquece que ela está na aula. Maria Angélica é irmã adotiva, é muito estimada e cuida muito dos pequenos. (Estudante Alegre, 1961).

A família tem casa? / Toda família tem casa? / O menino ajuda na casa? / A Ana ajuda? / O Zé ajuda? / A família ajuda o avô e a avó? / O pai cuida dos filhos? / Os filhos cuidam do pai e da mãe? / Os netos cuidam dos avós? / A família cuida dos amigos? / Menino tem pai e mãe / Menina tem pai e mãe / Todos meninos e meninas têm pai e mãe? / Os meninos e meninas são filhos dos pais e das mães? / Todos meninos e meninas têm avô e avó? / A família é amor / Amigo tem amor / Amigo é família. (A cartilha da Ana e do Zé, 1989).

Meio ambiente

Em seus textos, as cartilhas das décadas de 60-70 espelham uma visão segundo a qual o homem se coloca separado do meio ambiente e só interage com ele quando necessita de alguns dos seus elementos. O que não lhe é útil, torna-se desnecessário ou mesmo perigoso, cabendo dar-lhe morte (como aos animais venenosos e ferozes), ou destruí-los (como as matas e florestas). Na década de 80, com o advento das preocupações pela proteção ambiental, observam-se nas cartilhas textos que integram o indivíduo ao seu contexto, tentando despertá-lo para a necessidade de preservar o meio ambiente.

A jararaca nada na água / A jararaca anda na grama / A jararaca faz mal / Para matar a jararaca / Lalá chama a ama / A ama mata a jararaca / A ama dá na jararaca / Dá laçada, arrasa a malvada / Lalá rapa para casa. (A Cartilha do Ratão, 1973).

A água da chuva enche o rio / No rio tem vida? / Água suja mata a vida do rio? / A água da chuva enche o poço? / A água do poço tem que ser limpa? / Como é que a chuva dá vida? / Como é que o açude ajuda a vida do povo? / Lavar cavalo no açude suja a água? / Lavar roupa no açude suja a água? (Cartilha Popular, 1988).

Se esta rua fosse minha, / Eu mandava ladrilhar / Não para automóvel passar / Mas para criança brincar / Se esta mata fosse minha / Eu não deixava derrubar / Se cortassem todas as árvores / Onde é que os pássaros vão morar? / Se este rio fosse meu / Eu não deixava poluir / Joguem / esgoto em outra parte / Porque os peixes moram aqui / Se este mundo fosse meu / Eu fazia / tantas mudanças / Que ele seria um paraíso / De plantas, bichos e crianças. (Poemas Para Brincar, 1989).

Cidadania

A ideologia que informa os aspectos ligados à cidadania nos textos das cartilhas geralmente se refere à família, à escola e à pátria. Enfatiza o heroísmo de alguns brasileiros, condicionando de maneira acrítica os alfabetizandos à obediência e respeito às instituições sociais. Os textos modelam uma personalidade de indivíduo subordinado às autoridades públicas e desprovido de visão de mundo de tipo participativa. Os textos produzidos nas cartilhas das décadas de 60-70 não estimulam a visão crítica, predispondo à contemplação e à aceitação como uma decorrência da inevitabilidade própria do mundo real.

As cartilhas procuram desenvolver no alfabetizando um sentimento patriótico arraigado nos símbolos nacionais e nas datas comemorativas. Mas é nítida a mudança do conteúdo dos textos a partir da década de 1980, quando se nota uma tentativa de entrosamento entre o indivíduo e a comunidade e se procura despertá-lo para a conquista de direitos. Estes textos estimulam o indivíduo à participação nos problemas comunitários.

Bandeira da minha terra / Do meu querido Brasil / Quero dar-te o que encerra / Meu coração infantil / Gosto de ver-te bandeira / No alto do mastro assim / Bandeira bem brasileira / Tu és tudo para mim. (Nova Cartilha Moderna, 1971).

Era na semana da Pátria / A parada da juventude estivera lindíssima / Os alunos de todos os grupos e escolas / desfilaram garbosos nos seus uniformes de dias festivos / Como estavam lindos / Os pequenos do jardim da infância / Marchavam à frente de todos / Uns com tambores / Outros com bandeirinhas brasileiras. (Cartilha das Crianças, 1970).

O Brasil precisa de você / Mantenha sua cidade limpa / Gente é diferente / Gente constrói / Gente não destrói / Uma linda cidade / Com povo respeitador / E criança educada / Ajudando com amor / Gente é diferente / Gente constrói. (Cartilha da Criança, 1980).

Nas associações de moradores / O povo discute o problema da condução / Percebe que além de péssima é cara / Os moradores sabem que cabe ao / Poder Municipal a decisão sobre o / serviço de transportes / Por isso os moradores / Falam, pensam e agem unidos / O povo quer boa condução / Boa condução é um direito do povo. (Vida e Saber Popular, 1990).

Religião

Os textos relevam idéias como obediência, pecado, castigo, assim como a de amor pelos símbolos nacionais. Igreja Católica e Estado se combinam. Conceitos religiosos são repassados, além de apoio e aceitação às condições vigentes como, por exemplo, a recompensa de um vida eterna para os que aqui sofrem na pobreza. A resignação frente às situações mais hostis sempre aparece nos textos das cartilhas quando tratam de assuntos relacionados à riqueza e às diferenças sociais. Essas diferenças são tidas como naturais e imutáveis. Estimula-se a conformação de cidadãos resignados com o destino, à espera de recompensa para os seus sofrimentos através da obediência.

Papai do céu é bondoso / Protege e ama todas as crianças / Criou seus filhos / Pobres e ricos / Os que sofrem serão compensados / Os que choram / Terão dias felizes / É só obedecer e confiar. (Cartilha do Tutu, 1970).

A comunidade se reúne para celebrar a vida / Na reza, o povo une a fé com os fatos da vida diária / O povo celebra a alegria, a dor e a esperança / É uma fé viva em Deus / Em Cristo e no povo oprimido / Rezando, a comunidade se sente fortalecida e abençoada / A igreja libertadora / anima o povo a lutar pelos seus direitos / Você participa da igreja de sua comunidade? Como? (Cartilha de Alfabetização, 1990).

Escola

A ideologia repassada através do tema escola geralmente se apresenta contraditória no que se refere à questão do acesso e da sua importância para a vida adulta. Na maioria das vezes se valoriza a entrada do indivíduo na escola como seu objetivo maior e considera-se que só assim ele terá futuro próspero e garantido. Verifica-se uma discriminação dos setores sociais que não podem freqüentar a escola, entre outras razões, por motivo econômico. As crianças que não participam da rede escolar são estigmatizadas como inferiores perante aquelas que a usufruem; e em decorrência dessa diferenciação tais grupos são classificados como não-sociais.

As relações entre professores e alunos são muito harmoniosas, lembrando os textos o relacionamento entre pais e filhos. Não há desilusão, desavenças, preferências e nem mesmo injustiças. A professora é a autoridade disciplinar e cultural, à qual os alunos sempre obedecem, não questionam e a idolatram como a uma santa, assim como fazem com a figura materna. Os textos buscam sempre mostrar uma identidade entre a instituição familiar e a escola. Enfim, esta torna-se um mundo fechado em si mesmo, imutável, no qual o valor maior passa a ser a obediência em detrimento de valores como a curiosidade, a criatividade e a busca do saber. Esses aspectos não interessam, nem são estimulados nas cartilhas pesquisadas das décadas de 60-70. Os problemas da desigualdade social são ignorados pelos textos, enquanto se descrevem situações gerais e abstratas, que pouco dizem de si mesmas.

Na década de 80 a escola procurou adquirir caráter mais democrático e mais aberto, discutir questões como a dos excluídos, a evasão e o analfabetismo. Destacando certas diferenças, falando a linguagem do grupo, tentando tornar-se mais integrada à sociedade.

Minha aula é tão linda, tão linda! - exclamou Armandinho / Nela há muitos quadrinhos / Prateleiras com brinquedos, jogos, livros de figuras / E nem sei mais o quê / Eu acho que a biblioteca é a sala mais bonita do grupo - disse Isabelita / Tem bons quadros e prateleiras tão arrumadinhas com livros tão lindos / - Pois eu gosto mais do salão de festas - exclamou Ritinha. / Gosto de entrar no palco e declamar assim: / Meu Brasil, terra formosa / Deu-te o céu a perfeição / Tens a forma grandiosa / De um imenso coração. (Nossa Cartilha, 1970).

Não é cego, mas não sabia ler / Não é mudo mas pouco sabia falar / Não é surdo mas pouco sabia ouvir / Tem cabeça, mas não sabia pensar / Quem é? / - É você, meu amiguinho / Era você antes de vir para a escola / Antes de aprender a ler e a escrever / Um dia apareceu ao seu lado / Boa e meiga fada / Com sua varinha de condão / Tocou seus olhos, seus ouvidos, sua boca / e nas suas mãozinha / Deu três pancadinhas: / Plim! Plim! Plim! / E você, aos poucos, começou a aprender / A ler, a escrever, a contar / E até fazer problemas. (Nova Cartilha Moderna, 1971).

Zé e Ana vão para a escola / O Zé é aluno, O Zé estuda / A Ana é / aluna e estuda / Os amigos estudam? / Os amigos amam a escola? / Você cuida da escola? / Os meninos cuidam da escola? / Como se cuida da escola? / O estudo é bom? / Como se faz o estudo ficar bom? (Cartilha da Ana e do Zé, 1989).

Trabalho

O trabalho, sempre mencionado como esforço recompensado monetariamente, é visto como atividade importante porque ajuda o desenvolvimento do país e, em função disso, aparece como uma manifestação patriótica. O mundo das relações do trabalho é apresentado como um mundo harmonioso, onde há amor, compreensão e amizade entre patrão e empregado.

Já os textos mais recentes tratam dessa temática de forma menos doce, procurando enfatizar a importância e a necessidade do trabalho. Tentam apresentá-lo como um processo cooperativo entre os homens e como fonte de sobrevivência, mostrando a diferença entre os seus diferentes tipos.

Trabalho é fonte de riqueza? / Doca é operário / Trabalha muito e vive na miséria / Seu salário é mínimo / Doca come mal, mora mal, vive mal / O dono da fábrica onde trabalha Doca é muito rico / Esta riqueza foi tomada da classe trabalhadora / A nossa sociedade é dividida em classes / A classe trabalhadora sabe que precisa lutar muito / Para mudar este quadro / Lutar para mudar a vida / Lutar para mudar a sociedade. (Cartilha de Alfabetização de adultos, 1960).

O Zé trabalha / A Ana trabalha / O estudo é trabalho / Com estudo se trabalha melhor / O estudo / ajuda o trabalho / A vida se vive sem trabalho? / O trabalho é vida / A comida vem do trabalho / O pai trabalha na terra / O tio Zé trabalha no mar / A mãe trabalha na casa / A mãe trabalha na terra? / O trabalho dela é bom?

O resultado do exame das cartilhas de alfabetização desses dois períodos não surpreende e mostra quão marcante é o esforço para se transmitir valores e para reproduzir comportamentos. No primeiro deles, predominam fortemente os valores, digamos, conservadores: pretende-se seguir uma linha sem sobressaltos, sem subverter a ordem social vigente. É verdade que na década de 80 encontramos exemplos isolados que modificam essa perspectiva, exemplos que reformulam aqueles mesmos conceitos de trabalho, religião, família, cidadania, preservação ambiental, introduzindo também outros, e já apresentam sugestões de novas regras de conduta - de conteúdo democrático e emancipatório.

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