Estudos Sociedade e Agricultura

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Maria José Carneiro & Vanessa Lopes Teixeira

Mulher rural nos discursos dos mediadores


Estudos Sociedade e Agricultura, 5, novembro 1995: 45-57.

Artigo apresentado na 47a. Reunião Anual da SBPC, São Luiz, MA, 1995.

Maria José Carneiro é professora da UFRRJ/CPDA; Vanessa Lopes Teixeira é mestre pela UFRRJ/CPDA.


Esclarecimentos preliminares

O objetivo do presente estudo consiste em revelar as imagens da mulher rural expressas nos discursos de dois conjuntos de agentes sociais: os da liderança feminina rural e os das ONGs, publicados em suas revistas, documentos e publicações diversas.[1] A pesquisa se ateve ao material disponível na cidade do Rio de Janeiro abarcando o período de 1984 a 1993.

Através da análise de suas reflexões e propostas de ação no que diz respeito à situação da mulher rural pretende-se identificar os elementos constitutivos da identidade feminina construída por esses agentes e, simultaneamente, por exigência do próprio objeto, distinguir a especificidade da questão feminina no campo: é possível falarmos da “mulher rural” como uma categoria universalizante que englobe indistintamente o conjunto da população feminina no campo? Há características comuns que convivem com especificidades regionais e até mesmo de subcategorias sociais? Como identificá-las? Qual a representação de mulher que informa a ação/reflexão desses agentes no meio rural?

No esforço de responder a essas questões várias dificuldades foram enfrentadas.

Inicialmente, deparou-se com a dificuldade em localizar o material específico sobre a mulher rural, o que levou os bolsistas a realizarem um verdadeiro trabalho de garimpagem para conseguirem encontrar algumas poucas publicações classificadas, juntamente com outras, como “diversos” ou “minorias”.

O segundo problema se colocou ao se tentar estabelecer uma distinção entre os agentes sociais que foram selecionados como objeto do estudo. Como a maioria das ONGs dá assessoria a sindicatos e associações de mulheres através de seus técnicos e, sobretudo, de intelectuais que também publicam textos em espaços acadêmicos, torna-se difícil identificar as possíveis diferenças de abordagens e de sistemas classificatórios entre os dois conjuntos de mediadores já que uma parte dos autores está presente tanto em publicações de ONGs como nas de sindicatos e em revistas acadêmicas. Constatou-se, então, a necessidade de se estabelecer fronteiras entre as fontes a serem pesquisadas para, num segundo momento, distinguir a forma de utilização dessas fontes - tarefa não muito fácil de se realizar quando o objeto de análise corre o risco de ser confundido com as análises sobre o próprio objeto. Nesse sentido, é importante enfatizar que o objeto da pesquisa é a imagem da mulher rural construída pelos autores enquanto agentes de mediação e não o conjunto da produção intelectual sobre o tema. Ainda que tal distinção contenha um grau de arbitrariedade, se quisermos considerar o papel político intrínseco à produção intelectual, ela se tornou necessária para fins metodológicos.

Estabeleceu-se, desta maneira, uma distinção entre as fontes, separando aquelas utilizadas como referência teórica do presente estudo, aqui designadas de “acadêmicas” - ou seja, publicadas em revistas e livros reconhecidos como “científicos” - das fontes[2] que classificamos como material de análise que consiste na produção dos mediadores selecionados, ou seja, aquelas que são publicadas em veículos que se caracterizam por um compromisso de intervenção social. Isso, a meu ver, leva o(s) autor(es) desse tipo de texto a relativizar a preocupação com a “neutralidade” ou o “distanciamento” normalmente presente quando se trata de uma produção conforme o ethos da “academia”. Nesse sentido, utilizou-se, diferentemente, artigos distintos de um mesmo autor.

Resolvida essa questão permaneceu a dificuldade em identificar as diferenças na construção da imagem da mulher rural segundo as orientações teórico-políticas desses agentes sociais, o que exigiria um estudo mais longo sobre a constituição desse campo, o que não é objeto da presente reflexão. Nesses termos, classificou-se o material em duas categorias de agentes: os que integram os chamados “movimentos sociais” (são os sindicatos, centrais sindicais e associações de mulheres rurais[3]) e as ONGs (principalmente a Fase, o Cedi, o Iser, o Ibase, e a Rede Mulher), sem buscar as implicações das diferenças internas em cada um desses blocos nem as relações de forças políticas entre e dentro deles. No entanto, a análise do material coletado, não nos possibilitou estabelecer um divisor de águas entre eles e distinguir as particularidades de cada um desses grupos no tocante ao tema da mulher rural, ainda que possam existir algumas pequenas diferenças entre eles não apenas no que tange à concepção de sociedade como também nos caminhos vislumbrados para a transformação da situação da mulher.

Ao contrário, a pesquisa revelou um dado instigante: uma unicidade dos discursos dos diversos autores, sejam eles técnicos ou assessores de Ongs, de sindicatos, da CUT ou mesmo sindicalistas. Cabe ressaltar que a análise do discurso das próprias mulheres rurais ficou restrita à fala das sindicalistas porque no material coletado são elas que aparecem (e raramente) como sujeito, o que de certa forma pode ser entendido como uma conseqüência da própria visão que essas entidades têm da mulher rural a qual só se torna visível quando transformada em sujeito coletivo, ou seja, através da sindicalização ou de outras formas de organização. Podemos adiantar, portanto, que o presente estudo demonstrou a necessidade de se realizarem pesquisas voltadas para as mulheres rurais de forma que ampliem o universo de análise para além das fronteiras dos grupos organizados.

Mulher e inserção social: a homogeneização política da diversidade

Apesar das pequenas diferenças de ênfase quanto aos aspectos mais relevantes na qualificação do estatuto social da mulher rural e nos caminhos apontados no sentido de melhorar suas condições de vida e sua inserção na sociedade, tanto as ONGs quanto os sindicatos, incluindo a CUT, sobretudo por intermédio da assessoria realizada por intelectuais feministas, apontam a organização como condição para a superação de atual situação. Tal consenso alertou-nos para uma primeira especificidade no tratamento da questão feminina no campo: a imagem da mulher rural construída por esses agentes é fortemente marcada por concepções de projeto político, que podem apresentar pequenas variações entre elas, mas mantêm uma grande margem de consensualidade.

A mulher no campo é pensada a partir de seu papel como ator político, ou seja, a partir de seu compromisso com uma determinada visão de participação no processo de transformação social que envolve lutas e reivindicações diversas. Nesse sentido pareceu-nos impossível desvincular o estudo da representação social da mulher como sujeito, das propostas de transformação social da qual é objeto.

Dentro do campo de atuação das ONGs percebeu-se uma pequena distinção de ênfase entre os artigos analíticos e os que fazem referência às práticas dos técnicos que trabalham diretamente com as associações e entidades que congregam mulheres rurais. Os primeiros concentram a sua reflexão na organização entendida como uma concepção genérica que inclui diversas entidades que congreguem mulheres, tais como associações de moradores, clube de mães, além dos sindicatos ou secções femininas dentro destes. Já os discursos sobre a prática das ONGs privilegiam a forma sindical de organização (ou seja, a concepção de organização política stricto senso). No entanto, afora essa distinção, é importante registrar que a organização em si é reconhecida, aqui, como uma ação “política” voltada para o despertar de uma consciência sobre as condições “opressão” e de “subordinação” da mulher na sociedade. Assim, a organização das mulheres aparece nos discursos tanto das técnicas das ONGs quanto nos das líderes sindicais como uma prática que se converte num objetivo altamente valorizado já que é entendida como a condição fundamental para a conquista da cidadania e, por conseguinte, um caminho para se alcançar a almejada igualdade entre os sexos.

A ênfase dada ao fortalecimento da organização das mulheres, como elemento chave para a superação das desigualdades baseadas no gênero, nos parece adequada por acentuar a interlocução com outros grupos organizados da sociedade e por valorizar a dimensão cidadã das mulheres (Mello e Sant'anna, 1993: 32).

Duas condições, acreditamos, permitirão a construção de um sólido movimento de mulheres. Em primeiro lugar, a vivência coletiva das mulheres organizadas em torno de aspirações que lhes são comuns. Viver, expressar, pensar e analisar nossa opressão comum significa poder superá-la enquanto uma problemática individual e assumi-la enquanto problemática política e social. (...) Defendemos, portanto, a dupla militância das mulheres, ou seja, uma atuação tanto no movimento de mulheres, como no seio de movimentos gerais (sejam partidos, sindicatos ou outros), tendo claro que nestes não se trata para nós, simplesmente de lutar ao lado dos homens pelas reivindicações gerais, mas também de introduzir e lutar pelas nossas aspirações específicas (Anônimo, 1975).

A cidadania é entendida, genericamente, como o conjunto de direitos que são normalmente concedidos ao homem mas não às mulheres. Neste sentido a organização é um caminho para colocar a mulher “lado a lado do homem”. No entanto, cabe ressaltar que essa “igualdade de direitos” não implica, necessariamente, em igualdade nas relações sociais de gênero. A formulação de reivindicações específicas passa pela construção de uma idéia de direitos coletivos e, sobretudo, pelo reconhecimento desses direitos pelo grupo, que orienta as mulheres para uma prática política voltada, primordialmente, contra o Estado.

A luta pela igualdade de direitos, presumivelmente advindos de uma legislação mais justa ou da aplicação de leis já existentes (como a da aposentadoria, a do salário-maternidade, entre outras) concentra os esforços na denúncia contra a inoperância do Estado[4]. Nesse sentido, a singularidade das relações entre os gêneros na sociedade em que a mulher se encontra é uma questão totalmente secundarizada. Apenas algumas intelectuais, através de publicações sindicais, fazem referência à ruptura com a hierarquização dos gêneros na sociedade como um objetivo a ser privilegiado (Lavinas e Cappellin, 1991).

A ênfase no aspecto organizacional se justifica, nessa lógica de construção da identidade da mulher rural, pela necessidade política de transformá-las em sujeitos coletivos identificados e unificados por interesses comuns que, por sua vez, se traduzem nos elementos da construção de uma nova identidade não mais centrada nos papéis socialmente atribuídos à mulher (mãe e esposa, fundamentalmente). Objetivando romper com o isolamento das mulheres decorrente das formas de produção (familiar) no campo, o consenso sobre a importância da mobilização política resulta na intensificação das práticas organizativas observadas a partir da década de 80 (Lobo, 1991).

No processo de construção de uma nova identidade de mulher rural, a organização (ou mobilização) também é vista como um meio de conferir visibilidade a sua participação na produção. Como uma forma de justificar e, ao mesmo tempo demonstrar, a legitimidade das reivindicações sobre os direitos das mulheres, enfatiza-se o papel econômico que elas desempenham no seio das unidades de produção familiares. Mobilizando-as para a luta por interesses comuns advindos, principalmente, da condição de produtora, a organização política torna-se uma das etapas, talvez a mais importante, do processo de elaboração da nova identidade feminina. No entanto, essa imagem de mulher reflete apenas uma única face de sua identidade - a de trabalhadora. A questão da “cidadania” e dos “direitos” fica, assim, atrelada à necessidade do reconhecimento da mulher como agricultora. Esta ênfase se justifica pelo fato de que grande parte da população rural feminina está inserida em formas de organização familiares que conjugam funções reprodutivas e produtivas onde a inserção na produção é entendida como um prolongamento das atividades domésticas.

(...) O tratamento desse tema (da mobilização das trabalhadoras rurais) além de contribuir para ampliar a caracterização das transformações na agricultura, permite corrigir a imagem tradicional que torna invisível a contribuição econômica da mulher do campo e que considera apática sua atuação política. Com efeito, ao reconhecer a participação política das trabalhadoras do campo, abre-se caminho para a revisão da perspectiva que tende a considerar o trabalho das mulheres rurais como um fato provisório e complementar, assim como permite corrigir a visão do caráter subalterno de sua atuação sindical (Cappellin, 1991:17).

A invisibilidade da participação feminina na produção fica evidenciada pela valorização social de sua atuação como “ajuda” ou “complemento”. Essa formulação é reveladora de duas características comuns e fortemente presentes nos discursos analisados:

A primeira diz respeito ao bias produtivista subjacente à representação da mulher rural que, na maioria dos textos, é designada simplesmente como “trabalhadora rural”. Se, de um lado, a ênfase no aspecto produtivo se justifica politicamente pela necessidade de garantir direitos sociais em relação ao Estado, sobretudo os previdenciários, de outro exclui a possibilidade de pensar e enxergar a mulher como sujeito de ações diversificadas com inserções sociais que não estão, necessariamente, vinculadas à sua condição de produtora. Nesse sentido, as propostas de ação da maioria das ONGs e dos sindicatos vão enfatizar a relevância de se “conscientizar”, primeiramente as mulheres, em seguida a sociedade e, finalmente o Estado, do papel produtivo desempenhado pela mulher. Somente a partir dessa forma específica e privilegiada de inserção social torna-se possível a atribuição de um estatuto social da mulher coerente com uma nova imagem construída em ruptura com as identidades “tradicionais” de mãe e esposa. Essa nova imagem implicaria, pelo menos nesse momento do debate, na relativização dos papéis que lhes são atribuídos socialmente.

É importante destacar que esse privilegiamento da condição econômica para pensar a mulher rural acaba por homogeneizar e unificar não somente as mulheres em condições sociais distintas como também as igualiza à situação do homem, cuja identidade social é fortemente delimitada pela condição de trabalhador. Assim, a aproximação da imagem da mulher à do homem vem, na lógica desses discursos justificar e dar suporte à participação política da mulher legitimando a luta pelo reconhecimento de seus “direitos” de cidadã”, ou seja, como trabalhadora.

No entanto, se a inserção na produção é vista como um instrumento de valorização da mulher, na medida em que a transforma num sujeito social e político (a identidade de trabalhadora sendo um meio de conquistar um lugar no espaço público), por outro lado, a forma de produção familiar é entendia como um obstáculo à socialização da mulher como sujeito coletivo. Entende-se que a luta contra a “dupla subordinação” a que elas estão sujeitas dentro da sociedade capitalista seria neutralizada pelas relações familiares de produção onde a posição subordinada da mulher não seria definida por uma relação de trabalho, mas por uma situação decorrente da relação conjugal.

Nesse sentido, destacam-se duas posições que não são necessariamente antagônicas. Uma aponta para um processo de mudança social mais amplo no qual a produção familiar deve se transformar em formas assalariadas de produção permitindo, então, à mulher reconhecer-se enquanto indivíduo e membro de uma categoria social que independe de sua posição na estrutura familiar. A outra posição, defendida principalmente pelas entidades localizadas na região Sul do país, sustenta-se no reconhecimento do estatuto profissional da mulher inserida no contexto da produção familiar negando a identidade de “esposa de agricultor” e reivindicando a de “agricultora”. Em ambos os casos, o trabalho é o componente privilegiado na identificação da mulher como sujeito social o que resulta na elaboração da identidade de “trabalhadora rural” que se coloca acima das especificidades decorrentes de situações sociais diversas. Essa categoria é utilizada indistintamente, entre outras tais como “mulher rural”, “mulher no campo”, “produtora rural”, para designar um ser social abstrato, universalizante, desvinculado dos contextos socioeconômicos do qual fazem parte. Mesmo quando se chama a atenção para a heterogeneidade das formas de inserção social e econômica, a identidade de “trabalhadora rural” se sobrepõe à diversidade, assumindo um conteúdo político.

Se é grande a diversidade das lutas sociais no campo, dada a heterogeneidade de situações engendradas pela penetração do capital na agricultura - luta pela terra e pela reforma agrária, luta por melhores salários, luta por melhores condições de produção e por melhores preços agrícolas, luta por direitos sociais - seu leque é ainda maior e seus matizes mais variados a partir da mobilização das mulheres no campo e da sua organização na busca pela cidadania. Sejam pequenas produtoras rurais, sem terra ou barrageiras, bóias-frias ou empregadas nas grandes fazendas, elas vêm transformando o cenário político e social da agricultura brasileira ao mostrar sua combatividade e determinação na luta pela conquista de uma nova combatividade social, a de mulheres trabalhadoras rurais. (Lavinas e Cappellin, 1991).

A segunda característica que unifica os discursos analisados é o forte conteúdo ideológico dos textos analisados o que impede uma relativização dos valores que orientam as práticas e reflexões desses agentes dificultando o reconhecimento dos diferentes sistemas de valores e, em conseqüência, impossibilitando a identificação de interesses e desejos distintos.

É revelador o fato de que poucas autoras estejam atentas para registrar falas femininas que não seguem a mesma lógica de seus esquemas de pensamento. Tais discursos raramente aparecem nesse tipo de material e, quando citados, são reconhecidos como “falsa consciência” ou como uma consciência incompleta. Conseqüentemente, inexiste qualquer preocupação em buscar o significado ou a lógica dessas falas remetendo-as ao sistema de valores no qual foram elaboradas:

A apreensão da identidade social dessas mulheres trabalhadoras rurais passa necessariamente pela incorporação de sua conseqüente inserção no setor produtivo. Elas se percebem enquanto trabalhadoras que desempenham duas atividades: uma dentro do espaço doméstico e outra fora. Apesar de rejeitarem o trabalho que realizam na roça e de afirmarem freqüentemente que o largariam quando fosse possível, já incorporaram a noção de categoria e sua importante participação na produção social  (Botelho, 1989).

Cabe-nos perguntar até que ponto estaríamos observando uma lógica de construção da imagem da mulher fortemente centrada na valorização dominante da sociedade, que poderíamos designar de masculina, que reconhece na produção (e por associação lógica, no homem) o motor da dinâmica social e elemento atribuidor de sentido às relações sociais. Prosseguindo nessa direção, é legítimo indagar, como sugere a análise de C. Sarti sobre a população pobre da periferia de São Paulo, se as mulheres rurais, assim como os “pobres”, não estariam sendo pensadas a partir de uma razão instrumental que não é a sua e de um sistema de valores que não corresponde ao seu universo simbólico? (Sarti, 1995).

A especificidade feminina: uma visão naturalizada

Alguns textos, sobretudo os que se referem às práticas dos movimentos sociais, revelam uma imagem da mulher rural pautada em qualidades naturalizadas. Entende-se assim, a resistência da sociedade à participação da mulher em sindicatos e associações políticas, e a atribuição de um espaço político próprio como sendo aquele que faz parte “naturalmente” do mundo feminino, de acordo com as qualidades intrínsecas a ele. Calderano (1989) revela o sistema classificatório que distingue as identidades de gênero atribuindo à prática reivindicatória uma qualidade tipicamente feminina já que para o homem reivindicar significaria humilhar-se frente às autoridades. Seguindo essa lógica, ela explica a participação das mulheres em associações de bairro, Igreja, associações de pais entre outras.

No entanto, num exercício contra a oposição construída nesses termos, é importante lembrar os princípios que orientam o sistema de valores da patronagem tão difundidos no meio rural brasileiro. Dentro dessa lógica de relações sociais entre desiguais, o trabalhador se coloca numa situação de dívida ao patrão-proprietário através de um sistema de trocas no qual ambas as partes estão comprometidas e, portanto, em dívida.

A imagem naturalizada, encontrada sobretudo nos discursos dos homens sindicalistas reproduzidos nos documentos analisados, é responsável pela resistência à sindicalização feminina e à participação em funções executivas. Vários textos se referem à situação em que a mulher é aceita com maior facilidade no sindicato quando sua atuação fica restrita às atividades socialmente reconhecidas como femininas: as de secretária, recepcionista, faxineira...

Por outro lado, cabe perguntar se, ao privilegiarem os aspectos econômico e político da inserção social das mulheres rurais, as autoras em questão não estariam incorrendo no erro de ignorarem as questões específicas do interior do espaço doméstico, ou seja, a hierarquia familiar, os domínios diferenciados de poder e de autoridade, a lógica da transmissão patrimonial e a divisão de trabalho que ocorrem dentro do espaço compreendido pelo conjunto casa-lavoura. Sendo assim, as autoras estariam também naturalizando a valorização social que atribui à produção, e logicamente ao homem, um valor central neste sistema social. Nesses termos, no que se refere ao debate sobre a identidade social e o papel político das mulheres rurais, nos parece que, o aspecto reprodutivo e o universo dos valores femininos continuam recebendo a mesma valorização atribuída pelo sistema dominante, ou seja, continuariam desvalorizados.

A invisibilidade das especificidades dos universos simbólicos que envolvem homens e mulheres como sujeitos sociais no campo e que seriam responsáveis por valores diferenciados na formulação de identidades de gêneros, não apenas no que se refere à distinção entre o masculino e o feminino mas também na própria construção das identidades femininas, impede também que se vislumbre projetos políticos diversificados. Da mesma forma, a homogeneização das identidades femininas e a persistência da imagem socialmente definida para o homem como paradigma para a construção da imagem idealizada da mulher como cidadã é, ao mesmo tempo, condição para um projeto político único e conseqüência desse projeto.

Considerações finais

1.  A semelhança entre os discursos diferenciados de agentes sociais nos leva a indagar acerca da origem dessa unicidade: quem influencia quem? Como tentamos demonstrar, o conteúdo do material coletado sugere que muitas das formulações são colocadas para as sindicalistas (tidas como representantes e porta-vozes das mulheres rurais) a partir de análises e interpretações feitas pelas assessoras do movimento social que são incumbidas de propagar a ideologia feminista nesse meio. É o que nos indica, particularmente, as observações de Cappellin:

Queremos dizer que estão sendo superados os limites do isolamento que colocam as mulheres em posição de submissão patriarcal frente aos homens. A novidade está em que estas dirigentes introduziam a palavras de ordem das reivindicações feministas no discurso, na linguagem sindical, contribuindo assim para que se fortaleça a confrontação feminismo-sindicalismo. (Cappellin, 1989).

e de uma sindicalista,

(...) para mim é motivo de alegria saber que as mulheres estão se organizando em toda parte do país (...) nós temos que nos organizar e lutar contra um bicho que vem na nossa frente que é o capitalismo, que anda explorando nós mulheres que somos exploradas muito mais. (Suplente da diretoria do Sindicado de Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande, PB, III Encontro de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Sertão Central, Fetape, Serra Talhada, PE, dez., 1986).

Essa afirmação merece alguns cuidados pois não nos foi possível ter acesso ao discurso de mulheres rurais além dos reproduzidos pelos documentos dos sindicatos e das ONGs. Trata-se no entanto, muito mais de uma hipótese que deverá ser submetida à confirmação em pesquisas futuras que não se limitem à mediação de organizações políticas.

2.  A imagem da mulher rural, como nos foi possível observar, se constrói a partir do privilegiamento de sua inserção econômica como condição de sua transformação em categoria política, construída a partir de uma mobilização coletiva. A categoria de “trabalhadora rural” se confunde, assim, com a de mulher rural. O caráter genérico e universalizante dessa categoria se explica justamente pelo seu conteúdo político, semelhante à categoria de camponês empregada pelo campo acadêmico e político nas décadas de 60 e 70. Sendo assim, podemos dizer que no estado atual da reflexão/ação desses mediadores sobre a mulher rural, a designação “trabalhadora rural” responde ao esforço de tornar visível participação na produção ao mesmo tempo em que reforça o conteúdo político atribuído a essa participação. A identidade social da mulher rural estaria, assim, fortemente delimitada pelo conteúdo econômico e político atribuído por esses agentes sociais.

3.  Como já foi observado anteriormente, o esforço em reconhecer a mulher como parte da população ativa não explica, e muito menos elimina, por si só, as discriminações a que estão submetidas em decorrência de uma ideologia que se sustenta na desigualdade e na hierarquia entre os gêneros. Antecedendo ao esforço de tornar visível a participação da mulher na produção devemos perguntar o que a torna invisível (Cf. Edholm, 1977). Que sistema de valores legitima a classificação do trabalho da mulher como “ajuda” e, portanto, “dispensável” ou “provisório”? Até que ponto a afirmação da identidade da mulher como trabalhadora modifica sua posição nas relações de força que se estabelecem entre ela e o marido no interior do espaço doméstico? Relações essas informadas por um sistema de valores que não lhes é exclusivo, mas é produzido pela sociedade e reproduzido nas relações familiares.

4.  O bias produtivista que predomina na construção da identidade da mulher rural tem como subseqüência a afirmação da situação de dupla exploração da força de trabalho feminina, na medida em que legitima e sustenta a inserção da mulher na produção sem que esse esforço seja acompanhado por um questionamento da divisão sexual do trabalho doméstico de maneira a liberar a mulher de parte de suas atribuições. Poderíamos sugerir (por que não?) uma ênfase maior na atribuição do valor “trabalho” às atividades domésticas femininas, o que poderia levar a uma outra valorização de sua imagem por parte da sociedade e do homem, e a uma possível mudança nas relações de força dentro do espaço doméstico. Estudo realizados em diferentes regiões apontam para a identificação da mulher com seus papéis reprodutivos e doméstico e a negação, por ela, de sua participação na produção que, na representação social que fazem de si mesmas, geralmente, é vista como exaustiva e estranha às suas qualificações socialmente definidas (Cf. Noronha, 1991; Stolcke, 1986).

Referências bibliográficas

Anônimo. “O movimento de mulheres no Brasil”. Cadernos das Associações das Mulheres, São Paulo, 3, agosto, 1979.

Botelho, M. I. V. “Nas terras do canavial”. Revista Proposta, 41, FASE, setembro, 1989.

Calderano, M.A. “Contra a humilhação, pela participação”. Revista Porposta, 41, FASE, setembro, 1989.

Cappellin, Paola G. “Silenciosas e combativas: a contribuição das mulheres na estrutura sindical do Nordeste, 1976-1986”. In: Rebeldia e Submissões. São Paulo, Vértice, 1989.

__________. “Trabalhadoras Rurais e aspirações feministas: um diálogo em curso”. In: Camuflagem e Transparência: as mulheres no sindicalismo. CUT, 1991.

Edholm, F. et al. “Conceptualizing Women”. In: Critique of Anthropology, 9-10, vol. 3, 1977: 101-130.

Lavinas, L. e Cappellin, P.G. “Gênero e Classe: Mulheres Trabalhadoras Rurais”. In: Mulheres Trabalhadoras Rurais participação e luta sindical. CUT, 1991.

Mello, F. e Santana, W. “Gênero nas alternativas democráticas de desenvolvimento”. Revista Proposta, 59, Fase, dezembro, 1993.

Noronha, O.M. “Trabalhadoras de cana-de-açúcar: a aprendizagem de classe nas relações de produção”. Reforma Agrária, Abra, São Paulo, vol. 21, 2, mai.-ago., 1991.

Sarti, C. “O valor da família para os pobres”. In: Ribeiro, I. e A. C. Ribeiro (orgs.), Família em processos contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira, São Paulo, Loyola, 1995.

Lobo, E. S. “O gênero da representação: movimento de mulheres e representação política no Brasil (1980-1990)”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 17, ano 6, out. 1991.

Stolcke V. Cafeicultura: homens, mulheres e capital (1850-1980). São Paulo, Brasiliense, 1986.

 

Notas

[1] A pesquisa contou com a participação de dois bolsistas de Iniciação Científica, Vanessa Lopes Teixeira e Danilo M. da Silva.

2 Por problemas de espaço, não incluimos as referências de tais fontes; elas estão disponíveis no CPDA aos interessados.

[3] Deixamos de lado neste estudo os “Clubes de mãe”, “Associações de bairro” e a Igreja (CPT) por falta de material suficiente para incluir na análise.

[4] Lobo (1991) aponta como característica dos movimentos sociais de mulheres na década de 80 a articulação entre as reivindicações reconhecidas como “específicas”e as questões emergentes na sociedade brasileira naquele momento, tais como a “cidadania” e a “igualdade”. A questão feminina fica, assim identificada com os problemas coletivos decorrentes das diferenças e desigualdades sociais.