Afrânio Garcia Jr.
A Sociologia Rural no Brasil: entre escravos do passado e parceiros do futuro
Estudos Sociedade e Agricultura, 19, outubro, 2002: 40-71.
Resumo: (A Sociologia Rural no Brasil: entre escravos do passado e parceiros do futuro). O artigo busca refletir sobre a herança histórica do campo brasileiro, sobretudo as transformações do século XX, tomando como referência no pensamento social brasileiro o mundo da plantation, mais precisamente, as grandes plantações de café, cana-de-açúcar, cacau, algodão, sisal ou variantes. O autor apresenta a sua exposição em quatro partes: na primeira, traz o tema da grande lavoura como matriz da sociabilidade hierárquica herdada da época colonial. Em seguida, reflete sobre os principais fatores responsáveis pela quebra das condições de existência da dominação tradicional. Em um terceiro momento, o autor examina as modalidades de desenraizamento do campesinato brasileiro, realçando a presença maciça, desde meados dos anos 60, de seres desprovidos das condições mínimas de existência e que perderam suas referências sociais e culturais. Na última seção, o autor se volta para as mobilizações promovidas pelo movimento dos sem-terra e para a relevância que a "reforma agrária" adquire na última década do século XX, tematizando a busca de formas de novo enraizamento social e cultural entre as camadas desfavorecidas do mundo rural.
Palavras-chave: agricultura, campesinato, reforma agrária, pensamento social.
Abstract: (Brazilian Rural sociology: half slave to the past, half partner of the future). This article develops a reflection on the historical legacy of Brazilian rural society, particularly on changes during the 20th century in the light of Brazilian social thought on the world of the plantation, especially the large coffee, sugar-cane, cocoa, cotton and hemp plantations together with their variants. The author presents his argument in four parts: in the first, he introduces the theme of large-scale agriculture as the prism for analyzing the hierarchical sociability inherited from the colonial era. The author then presents the main factors that have broken down this traditional domination. In the third section, he analyzes different patterns of uprooting of the peasantry, highlighting the massive presence, since the middle 1960’s, of rural social groups without even the minimum of living conditions and who have already had lost their social and cultural references. The author concludes by turning his attention to the mobilizations of the Landless Movement (MST) and to the importance that the agrarian reform has acquired since the last decade of the 20th century, focusing on the search for new forms of social and cultural roots by the marginalized groups of the rural world.
Key words: agriculture, peasantry, agrarian reform, social thought.
Texto apresentado como conferência ao Congresso da Associação Latino-americana de Sociologia Rural (Alasru), realizado em Porto Alegre nos dias 25 a 29 de novembro de 2002.
Afrânio Garcia Jr. é Maître de Conférences na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) de Paris, Co-diretor do Centro de Pesquisas sobre o Brasil Contemporâneo (CRBC/EHESS).
Preliminares
Cabe inicialmente agradecer a honra de ter sido convidado a proferir uma das conferências do Congresso da Associação Latino-americana de Sociologia Rural (Alasru), em particular à professora Anita Brumer, que demonstrou na prática que a capacidade de auto-exploração das próprias energias é uma das virtudes que os sociólogos latino-americanos compartilham com os camponeses da região. O prazer é tanto maior por ser a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que abriga o evento, local que implantou desde 1963 pós-graduação em Sociologia Rural, pioneira portanto das inovações institucionais no ensino e pesquisa pós-graduadas, que tanto contribuíram para a renovação das ciências sociais no Brasil desde os anos de 1960. Encontrar sempre, nos colegas do Rio Grande do Sul, o gosto por tratar das questões teóricas mais relevantes, através de pesquisas empíricas rigorosamente formuladas e a disposição para o diálogo e a crítica aguda e pertinente, tem sido para mim fonte inesgotável de alento.
Durante a conferência de abertura, pronunciada pelo Dr. José Bengoa, sobre os 25 anos de mudanças na temática dos estudos sobre o universo rural da América Latina, sobretudo em sua vertente hispânica, pudemos ter acesso ao panorama denso das transformações recentes no continente americano. Tendo tido oportunidade de realizar um exercício semelhante para congresso da Anpocs (Associação Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais) em outubro último (Garcia Jr. e Grynzpan, 2002), em retrospectiva do tratamento da questão agrária no Brasil nas três últimas décadas, gostaria de me ater, nessa oportunidade, ao peso da matriz social hierárquica legada pela plantation colonial.
O tema que proponho discutir aqui é o destino da célebre dualidade entre senhores e escravos, mais precisamente o itinerário diferencial de descendentes dos senhores e descendentes dos escravos, ou ainda, para retomar a formulação famosa de Gilberto Freyre, as transformações da oposição casa-grande e senzala, com vistas a melhor poder captar os desafios postos pelo momento presente.
Em sua conferência inaugural, o Dr. José Bengoa tomou como uma de suas referências centrais o famoso artigo dos antropólogos estadounidenses Eric Wolf e Sidney Mintz – Haciendas and plantations in Middle America and the Antilles (Wolf e Mintz, 1957) – para pensar o destino do poder social dos proprietários de haciendas. No momento dos debates, o sociólogo argentino Miguel Murmis o questionou se as reflexões anteriormente apresentadas tinham por único referente as haciendas ou também incluíam as grandes plantações mais integradas ao mercado internacional; em outros termos, o que se poderia pensar sobre o destino social dos proprietários de plantation, a fração mais integrada ao mercado internacional?
Refletir acerca do campo brasileiro, sobretudo a propósito das transformações do século XX, significa necessariamente tomar por objeto o mundo da plantation, mais precisamente, as grandes plantações de café, cana-de-açúcar, cacau, algodão, sisal ou variantes.
Nesta palestra, dialogarei também com a questão central analisada na brilhante conferência, proferida pela Professora Magdalena León, sobre a relação entre gênero e a transmissão da propriedade da terra na América Latina, particularmente acerca da falsa suposição da família camponesa como totalidade indivisa e homogênea, que impede de abordá-la como rede complexa, não-igualitária e que reserva um estatuto subordinado às mulheres nessas redes.
Suportes sociais do individualismo moderno
Desejo iniciar, contudo, com um problema de ordem mais geral, válido certamente para toda a América Latina, mas que apresenta contornos mais universais, que transcendem os limites de cada processo histórico de países ou grupos de países singulares: trata-se das condições sociais de possibilidade do individualismo moderno.
Em sua locução de abertura, o presidente da Alasru, Dr. Diego Piñero, aludiu às análises do sociólogo francês Robert Castel – Metamorfoses da questão social (Castel, 1995) – a respeito das transformações nos últimos 30 anos na Europa e do surgimento de uma nova categoria social, como efeito provocado pelo desemprego em massa causado pelos choques da alta de preços do petróleo em 1973: a categoria dos "novos inúteis". Nada melhor para sintetizar as preocupações centrais desse livro de Robert Castel, notadamente no que diz respeito à falência daquilo que ele denomina de "sociedade salarial", do que a epígrafe tomada de empréstimo a Hannah Arendt:
“O que temos diante de nós é a perspectiva de uma sociedade de trabalhadores sem trabalho, ou seja, privados da única atividade que lhes resta. Não se poderia imaginar nada de pior".
Robert Castel, em livro mais recente, reproduzindo diálogo com Claudine Haroche – Propriété privée, propriété sociale, propriété de soi (Fayard, 2001) – retorna a John Locke e a Louis Dumont a propósito do individualismo moderno para explicitar os suportes, o tecido social, necessários para se comportar como sujeito individualizado, dotado de vontade particular e capaz de levá-lo à prática. A reflexão aqui compreende a questão da cidadania política, mas a ultrapassa, pois visa pensar para além das tomadas de decisão políticas coletivas: trata-se de conceber o indivíduo portador de desejos e senhor de seus atos, permitindo sua concretização.
Retomando as palavras de Robert Castel:
"Tratando-se do indivíduo, o que se escuta constantemente no discurso liberal ou neo-liberal? Que há indivíduos que apenas pedem para se exprimir como tais, para desenvolverem suas capacidades inibidas por restrições de tipo estatal ou burocráticas. Bastaria liberar o indivíduo dessas amarras para que ele se realize integralmente, que se torne mais produtivo sobre o plano econômico, mas que também se realize no plano pessoal. É conceber o indivíduo como se ele estivesse dado uma vez por todas e não dependesse em nada das condições históricas e sociais de sua existência. Por relação – e contra – esta posição sobre a questão do indivíduo, deve-se fazer a hipótese de que o indivíduo não existe como uma substância e que para existir como indivíduo é imprescindível que tenha suportes, e assim se interrogar sobre o que há ‘por trás’ do indivíduo que lhe permita existir como tal".
Robert Castel adianta ainda, para especificar a ruptura da generalização da possibilidade de todos se transformarem em indivíduos dotados de livre expressão de suas vontades:
"De um ponto de vista histórico a propriedade de si se pensa primeiramente em Locke por oposição ao modelo da dependência e, mais geralmente, ao modelo que Dumont chamaria de sociedade ‘holista’. Ao modelo de sociedade holista, Locke opõe o modelo da independência, que poderíamos traduzir na linguagem filosófica de Kant como ‘autonomia da vontade’. É um indivíduo que pode se determinar ele próprio desde o momento que é capaz de se apropriar da natureza do seu trabalho. Assim ele é proprietário de si mesmo porque tem bens que o colocam fora dessas situações de dependência das pessoas que nada têm, que não podem ser indivíduos por si próprias" (Castel, 2002: 15).
Problemática
Do legado da escravidão em países como o Brasil (ou de formas de subordinação acarretada por instituições como a encomienda no mundo hispânico) faz parte a presença duradoura da dependência pessoal da maioria da população rural pela relação aos proprietários de grandes domínios de terra, traço que marca profundamente a história do século XX. É essa herança histórica do caso brasileiro que busco estudar a seguir. [1] Para tanto, a exposição apresentará quatro partes: na primeira, analiso a grande lavoura como matriz da sociabilidade hierárquica herdada da época colonial. Em seguida, passo em revista os principais fatores responsáveis pela quebra das condições de existência da dominação tradicional. Em terceiro lugar, examino as modalidades de desenraizamento do campesinato brasileiro e a presença maciça, desde meados dos anos 60, de indivíduos desprovidos das condições mínimas de existência e que perderam suas referências sociais e culturais. Submetidos à precaridade, à imprevisibilidade do cotidiano e a todas as urgências tais seres não têm como elaborar estratégias individuais de inserção no mundo social do mercado e das instituições impessoais, como o Estado, de regulação da vida em coletividade; tudo muito característico daquilo que Robert Castel denominou de "individualismo negativo" ou "individualismo por falta ou carência". Por último, cabe tratar das mobilizações promovidas pelo movimento dos sem-terra e da relevância conquistada pelo tema da "reforma agrária" na última década, em busca de formas de novo enraizamento social e cultural de camadas desfavorecidas.
A grande lavoura como matriz da nacionalidade e a posição subordinada do campesinato
No início do século XX, o espaço físico e o poder social estão concentrados pelos detentores de grandes plantações voltadas para cultivos destinados aos mercados internacionais, particularmente à Europa e aos Estados Unidos da América. Lavouras como café, cana-de-açúcar, algodão, borracha, cacau e fumo são responsáveis por mais de 85% das exportações brasileiras, posição que ocupam desde a primeira metade do século XIX (cf. Eisenberg, 1977; Quadro 1, p. 31). A execução das ordens emanadas das casas-grandes, emitidas por senhores de engenho, usineiros ou fazendeiros, supõe o recrutamento de mão-de-obra sob formas diversas de dominação pessoalizada (cf. Palmeira, 1971 e 1976), como nos casos dos moradores de engenho (Sigaud, 1980), dos colonos de café (Martins, 1979) ou dos agregados e vaqueiros do interior do país. Os movimentos da plantation controlam a apropriação do espaço físico: só há desenvolvimento de campesinato em áreas periféricas ou marginais à «grande lavoura» (cf. Heredia, 1979; Garcia Jr., 1983) ou expressamente destinadas a fluxos de imigrantes europeus, atraídos por políticas que tinham tanto finalidades econômicas quanto o objetivo de promover o “branqueamento” da população, como se observa no Vale do Itajaí em Santa Catarina (Seyferth, 1974) e na Serra gaúcha (Santos, 1978).
O mundo rural é o quadro da existência da maior parte da população – ainda em 1940, 70% da população aí residia. Contudo, as regiões de grande lavoura não são interligadas e articuladas de forma a constituírem circuitos econômicos interdependentes. Para se deslocar das regiões onde o café predominava, como em São Paulo e Rio de Janeiro, para as áreas cacaueiras da Bahia, ou para as áreas canavieiras de Pernambuco, o meio de transporte que se impunha era a navegação de cabotagem. Essa segmentação do território nacional em diferentes regiões, voltadas mais para um porto de exportação do que interligadas por uma malha de sistemas de transporte e de comunicações, fornece uma imagem adequada da diferença que há entre o território nacional (como um “arquipélago”, cujas ilhas são constituídas pelas diferentes áreas de grandes lavouras ou mineração) este mesmo espaço físico após a implantação do parque industrial entre os anos 1930-80, visto como um “continente”, lembrando a metáfora cara a Hervé Théry (2000).
Ao final do século XX é nas cidades que se concentra o grosso da população. A segunda metade do século vai conhecer um movimento contínuo de deslocamento das residências do campo para as cidades: já em 1980, 70% dos contingentes se situam no pólo urbano (em 2000, apenas 22% residem no espaço rural). O centro dinâmico da economia, com a industrialização acelerada entre 1930 e 1980, assim como os poderes social, cultural e político vão se localizar nas grandes metrópoles com a reestruturação do Estado nacional e a ampliação das suas áreas de intervenção, com a criação de universidades e a reorganização do sistema de ensino em bases nacionais e com o surgimento de partidos políticos e movimentos associativos em escala especificamente nacional. As formas de sociabilidade características do mundo rural se encontram crescentemente referidas a estilos de vida, concepções do mundo, processos decisórios e modalidades de trabalho que se elaboram e modificam além dos seus horizontes. Assim também não é de se estranhar que, ao final do século XX, haja disputas explícitas sobre os próprios significados a atribuir à expressão “futuro do mundo rural”, ou ainda sobre o significado da noção de “modernidade” para pensar as transformações do campo e sobretudo as relações entre a cidade e o espaço rural. As vias de transformação das relações sociais no campo não seguem itinerários inexoráveis; há caminhos alternativos, como demonstra o debate recente que salienta o desenvolvimento da “agricultura familiar” em paralelo à “agricultura empresarial” ou ao crescimento do “complexo agro-industrial” ou do “agronegócio”. De qualquer forma, é fundamental observar que o “mundo agrícola” hoje não é mais pensado como um bloco coeso, como uma única corporação implantada ao longo de um imenso território. A representação do mundo agrícola, a imagem de unicidade que se buscava no início do século, é hoje atravessada pela oposição dos agentes concebidos por categorias como “agricultura familiar”, “complexo agroindustrial”, “agricultura empresarial”, “agricultura tradicional”, demonstrando a intensidade da competição por terra, recursos financeiros, força de trabalho e, sobretudo, pela legitimidade de se designar o futuro das relações no mundo rural e das configurações cidade-campo.
A velha plantation, uma instituição total?
Se as grandes plantações de café, cana-de-açúcar, cacau, algodão ou fazendas de gado constituem unidades fundamentais dos processos econômicos, sociais, culturais e políticos no limiar do século XX, e deitam freqüentemente suas raízes no Brasil colonial, isto não significa de modo algum que possam ser concebidas como “comunidades rurais isoladas”. A relação com a rede de cidades que as interligavam aos portos exportadores é parte integrante das condições de existência de cada grande plantação tomada isoladamente. Considere-se que tais núcleos populacionais são criados para promover atividades destinadas a produzir mercadorias valorizadas no âmbito internacional; assim é que mudanças no sistema de transporte, como a implantação de rede ferroviária em finais do século XIX, tornaram possível a expansão da fronteira agrícola, permitindo que espaços ocupados por mata atlântica fossem apropriados por novas fazendas de café, o que transformou completamente as condições de concorrência entre as “áreas antigas”, como o Vale do Paraíba do Sul (cf. Stein, 1957), e as áreas novas do planalto de São Paulo (cf. Monbeig, 1952; Dean, 1977; Silva, 1976). Tais mudanças dos circuitos de comercialização alteram tanto a vida cotidiana das grandes plantações e da miríade de médias e pequenas explorações a elas subordinadas, quanto provocam a decadência da malha de cidades que constituíam os elos de ligação com os portos e centros administrativos. Certamente a alteração dos circuitos comerciais incidiram nas redes religiosas, culturais e políticas das áreas da antiga colonização, modificando a composição dos participantes dos jogos políticos e culturais, provocando o surgimento de novos templos, novos estabelecimentos de ensino e de cultura, novos centros administrativos e de decisão política nas regiões de ocupação recente. Talvez seja desnecessário enfatizar que não houve nenhum respeito ou busca de preservação em relação aos grupos ameríndios, que ocupavam de forma milenar as terras das frentes pioneiras. Freqüentemente aldeias inteiras foram abatidas, como as florestas das frentes pioneiras.
Até meados do século XX, as grandes plantações constituíram unidades econômicas, sociais, culturais e políticas bastante específicas. Do ponto de vista econômico, esse era o quadro da organização do trabalho agrícola, no qual se combinavam o cultivo de lavouras voltadas para o comércio exportador, como o café, a cana-de-açúcar, o algodão, o cacau etc., com lavouras destinadas sobretudo ao abastecimento alimentar da família do proprietário de terras e das diversas famílias de trabalhadores residentes (moradores, colonos, agregados) no domínio, como a mandioca, o milho, o feijão, além da criação de pequenos animais (aves, suínos, ovinos e caprinos). Voltada para produtos destinados a mercados de longa distância, a plantation sempre esteve associada a atividades de beneficiamento de produtos agrícolas que assegurassem a manutenção das qualidades essenciais dos bens vendidos: as instalações próprias à transformação da matéria-prima agrícola, como os engenhos de açúcar movidos à tração animal ou impulsionados por roda d’água, ou as usinas de açúcar que os substituíram como grandes fábricas em pleno campo (Lopes, 1976) representaram sempre investimentos materiais de tanta importância e aquisição de conhecimentos de tal envergadura que passaram a símbolo primordial das unidades agroindustriais e marcos do poder dos proprietários de terras, como se observa através da força de expressões como senhores de engenho (Antonil, 1711) e usineiros de açúcar (Correia de Andrade,1964). Instalações menos exigentes em capital e know-how como terreiros para secar café, descaroçadoras de algodão e desfibradores de sisal, também sempre foram partes constitutivas do universo da plantation. Desse modo, havia, desde os primórdios da colonização, um “complexo agro-industrial”, como nas regiões de cana e de algodão, bem diferente das agroindústrias que serão assim chamadas a partir dos anos 80, como a indústria dos derivados do leite, dos sucos de fruta ou de abates e transformação de aves e suínos. Até meados do século XX, predominou a associação entre capital fundiário, agrícola e industrial: quem comanda o processo de trabalho exerce o seu mando tanto na esfera agrícola como na industrial; é do conjunto de suas atividades que provém seu lucro.
Mas a grande plantação é bem mais do que apenas a unidade de base de um processo agroindustrial, ela é sobretudo a matriz da sociabilidade no mundo rural da primeira metade do século: o grande domínio é a sede das residências dos grandes proprietários – as "casas-grandes" (Freyre, 1933) – e também das casas de morada atribuídas às famílias de trabalhadores residentes (Palmeira, 1976). É no interior do grande domínio que se exerce a vida familiar, onde se nasce, se casa, se procria, por vezes onde se enterram os mortos. As capelas no interior das "casas-grandes" mais abastadas ou em suas vizinhanças quando mais imponentes, fazem lembrar que as práticas e cerimônias religiosas agrupam e reordenam os viventes dentro dos domínios, ou ainda que as práticas religiosas dos subalternos, como no caso do candomblé e do xangô dos descendentes de africanos (Bastide, 1958) ou do protestantismo dos colonos do café recrutados entre imigrantes europeus (Davatz, 1941), eram objeto de recriminação e censura, quando não eram mantidas sob estrita vigilância, da parte dos proprietários das casas-grandes.
É interessante notar que os modelos de percepção consagrados pela literatura sociológica e histórica dos anos 30 vão enfatizar justamente o caráter fundamental dos padrões sociais herdados do universo colonial e escravagista, que se impunham com o crescimento da urbanização e a aceleração do processo de industrialização do país. No próprio título de sua obra maior – Casa-grande e Senzala – Gilberto Freyre (1933) assinalava como a sede dos domínios rurais era uma instituição que continuava a operar mesmo após a abolição da escravatura em 1888 e que a reunião de poderes econômicos, religiosos, culturais e políticos em uma só mão funcionava como princípio ordenador do mundo social, recriando, por uma lógica que supõe complementaridade mas diferença irredutível, o mundo dos descendentes dos senhores das casas-grandes e dos escravos das senzalas.
De 1936, data também Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda, obra que, ao lado de Casa-grande e Senzala, irá influenciar toda uma geração de intelectuais, segundo o depoimento de Antônio Cândido (1967). Sérgio Buarque também persegue as marcas da hierarquia constitutiva do grande domínio rural construído a partir da escravidão de populações africanas negras sobre a psicologia íntima dos brasileiros; à diferença de Gilberto Freyre, porém, se interessa por sua projeção na vida pública, no comportamento político, e analisa como constitui um empecilho à construção de um Estado moderno e democrático. O “homem cordial”, escravo de suas paixões, não aceita normas que transcendam seus desejos; nenhum espaço público moderno pode se assentar sobre tais bases. Servo das leis livremente pactuadas contra servo dos desejos individuais de personagens habituados a serem servidos por escravos: tal dilema é o brasileiro na construção do Estado, em bases modernas e democráticas.
Também Caio Prado Jr. (1942), para examinarmos a trilogia clássica dos autores mencionados por Antônio Cândido (1967), focaliza o grande domínio rural como unidade de base constituidora da “economia colonial”, cuja dinâmica está totalmente presa aos impulsos vindos dos centros internacionais de destino de suas lavouras comerciais. Para esse autor, a construção de uma “economia nacional”, na qual as indústrias cumpram o papel de novo pólo articulador de todo o sistema produtivo da nacionalidade, implica superação das principais características impressas pelo grande domínio à economia do país. Como para os demais, o mundo urbano que se expandia e se industrializava era portador de novas potencialidades, mas seus dinamismos e seus rumos dependiam de uma reestruturação das formas de operar do universo agrícola. Vê-se, assim, que, na formulação de alguns dos principais autores dos anos 30, o legado das formas de organização social do mundo rural pesa sobre o presente de uma forma bem mais substancial do que uma simples tradição a ser superada. O próprio esforço que fizeram para estudá-la de forma detalhada, tanto em seus aspectos morfológicos, quanto em suas projeções na “psicologia íntima” (Freyre, 1933) de cada brasileiro, demonstra que estavam convencidos que o trabalho de conhecer as estruturas do mundo rural tradicional era parte integrante de esforço para pensar novos destinos para a coletividade nacional.
Movimentos das grandes plantações
O exame em profundidade das enormes flutuações de preços nos mercados internacionais dos principais produtos de exportação brasileira como o café (Bacha, 1992) e o açúcar (Eisenberg, 1977; Szmeracsányi, 1979) de finais do século XIX até os anos 70 do século passado mostra que os movimentos da plantation brasileira apresentaram uma grande flexibilidade frente a tais variações. Pois é justamente na especificidade dos mecanismos de operação de plantation tradicional (Palmeira, 1971; Wolf e Mintz, 1957) que encontramos os fundamentos para se compreender sua plasticidade, longevidade e resistência.
A primeira das características da "velha" plantation reside nas formas de recrutamento dos trabalhadores e na infinidade de arranjos práticos que permite para contrabalançar baixas de preços obtidos pela venda das lavouras comerciais. Na verdade, a maior parte da mão-de-obra utilizada pelas plantations era recrutada sob a forma de moradores (Palmeira, 1976) ou de colonos nas áreas de café (Martins, 1979; Stolcke, 1976). Essas formas de seleção e gestão da força de trabalho, implantadas ainda durante a vigência da escravidão como estatuto jurídico (cf. Correia de Andrade, 1964; Eisenberg, 1972; Davatz, 1941), asseguraram a recriação dos poderes dos senhores de engenho e dos fazendeiros de café após a abolição de 1888. Elas supõem efetivamente que haja contratos, ou melhor, acordos de vontades de personagens distintas, acordos entre indivíduos formalmente "livres e iguais" diante da lei. No entanto, ante a brutal assimetria entre os parceiros, esses contratos individuais instituíam de forma duradoura a submissão de famílias de trabalhadores às vontades dos proprietários. Ao "pedir morada" (Palmeira, 1976), um chefe de família exibia ao senhor de engenho que se encontrava destituído das formas elementares para assegurar a subsistência do seu grupo doméstico: nem dispunha de casa-de-morada para abrigar os seus, nem possuía terras para trabalhar e fazer trabalhar seus familiares para obter o sustento. Assim, muito além de um acordo de vontades entre "iguais diante do direito", o ritual de solicitar abrigo em grande domínio rural enfatizava a dissimetria entre o patrão que acolhe um novo cliente e o indivíduo que se desqualifica como homem [2] ao pedir apoio e proteção: ao entrar na propriedade, todo chefe de família contraía de imediato uma dívida moral com o proprietário, que ultrapassava de muito o valor material dos elementos de vida que era provido pelo novo patrão.
Os acordos interindividuais entre um grande proprietário e um chefe de família de moradores ou de colonos incidiam numa infinidade de domínios de relações pessoais, em que as prestações de parte a parte tomavam a forma de dons e contradons. Os parâmetros pelos quais são concebidas tais relações nunca são redutíveis apenas aos valores monetários atribuídos em comtrapartida ao trabalho fornecido. Diante de flutuações adversas dos mercados internacionais das lavouras comerciais sempre era possível buscar, nas contrapartidas das relações morador/senhor de engenho ou colono/fazendeiro, arranjos que reduzissem o custo monetário do trabalho a ser efetuado e, portanto, que contribuíssem para preservar a margem de lucro, notadamente a renda monetária permitindo adquirir bens não produzidos localmente (vestuário, calçado, chapéus, mobiliário, instrumentos musicais etc.). Igualmente, as reconversões dos plantios de lavouras comerciais, ao contrário da propalada inércia da "monocultura" de grande lavoura, como a substituição da cana-de-açúcar ou de café pelo algodão, da cana pelo sisal, pastagens para o gado ou pela cultura do tabaco, ou ainda pela exploração do bicho-da-seda, sempre podiam contar com rearranjos na relação morador/senhor que permitissem reduzir os investimentos monetários dos grandes proprietários de terras (cf. Garcia Jr., 1990). O estudo minucioso dos engenhos tradicionais e das fazendas de café e de algodão permitiu observar mecanismos econômicos homólogos aos descritos pelo historiador Witold Kula para as fazendas cerealíferas polonesas entre os séculos XVI e XVIII (cf. Kula, 1970; Kula, 1977: para o Brasil ver ainda Heredia, 1989; Garcia Jr., 1990): em épocas de queda nos preços internacionais das lavouras comerciais, a produção podia ser expandida para se obter a mesma renda monetária em divisas estrangeiras. Constatou-se ainda que a queda das rendas proporcionadas pela venda dos produtos comerciais da plantation certamente implicava declínio dos padrões de estilo de vida "cosmopolita" ou, calcado nos modelos europeus, dos detentores da plantation, mas de forma alguma acarretava necessariamente sua falência: o abastecimento alimentar dos donos da casa-grande e moradores, bem como a maior parte das construções e equipamentos produtivos, era assegurado pelo cultivo sistemático de lavouras alimentares e pelo uso dos recursos naturais disponíveis no domínio ou em suas cercanias (cf. Heredia, 1989; Garcia Jr., 1990).
Os donos do poder e as lavouras de exportação
A compreensão das formas específicas de gestão da grande plantação tradicional é, sem sombra de dúvidas, fundamental para que se entenda sua durabilidade ao longo do século XX; mas não menos importante é se atentar para o trabalho político das elites agrárias, desde o final do século XIX, que resultou na criação e no desenvolvimento de mecanismos institucionais de sustentação de preços das lavouras de exportação (para o café, ver Holloway, 1968 e Bacha, l992; para o açúcar, ver Szmricsányí, 1979). A percepção de que o Brasil era responsável por uma parcela apreciável da oferta mundial de café levou alguns dos maiores produtores, associados a comerciantes de exportação e elites políticas, a tentarem forçar uma evolução mais favorável dos preços internacionais desse produto, mediante práticas de controle da oferta. Foram as políticas assim concebidas e postas em prática por iniciativa de cafeicultores paulistas que introduziram o neologismo valorization no jargão das bolsas mundiais de mercadorias (cf. Holloway, 1968; Bacha, 1992).
É notável que as instituições públicas de regulação do comércio do café tenham tido, a partir de 1930, instituições equivalentes para as demais lavouras de exportação, particularmente no tocante à cana-de-açúcar e ao cacau. O Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA) também foi criado no início dos anos 30 para lidar com a forte crise dos mercados internacionais e durou até o início da década de 1990, quando foi extinto do mesmo modo que o IBC. No caso do IAA, o minucioso estudo apresentado por Szmricsányí (1979) demonstra como uma organização pública, implantada por pressão de senhores de engenho e de usineiros, instituiu controle preciso da produção de cana, da área plantada e da área cortada, das quantidades comercializadas em cada usina, através de sistemas de quotas, da quantidade de açúcar e álcool produzidos por cada usina, dos preços com que se deveria comercializar sua produção. Foi também esse organismo que esteve na origem de vários programas de modernização técnica da agroindústria do açúcar.
O caso do IAA revela bem como os detentores da plantations dispuseram de órgãos públicos que os protegiam da concorrência nacional e internacional: a diferença de produtividade dos rendimentos agrícolas entre o Centro-Sul e o Nordeste é uma constante de 1930 até 1990 (cf. Szmricsányí, 1979; Garcia Jr., 1990), mas tal diferença não acarretou a liquidação das unidades agro-industriais de menor produtividade, como teria ocorrido se prevalecessem condições de "concorrência pura e perfeita", como reza a teoria econômica neoclássica. O IAA instituiu uma segmentação entre os mercados do Centro-Sul e os do Nordeste, estabelecendo sistematicamente preços mais elevados para esta última região em proporção de seus custos mais elevados. Houve, assim, por mais de meio século, subsídios nos preços da cana e do açúcar; o IAA funcionou por conseguinte como um grande cartel, lastreado pelo Tesouro Nacional, que impediu que as empresas mais ineficientes arcassem com o ônus de sua ineficiência relativa (Garcia Jr., 1990). Tudo se passou, praticamente até a última década do século XX, como se as instituições públicas, criadas para impedir que a tendência à superprodução de lavouras comerciais acarretasse um aviltamento dos preços e também para favorecer o incremento da produtividade agroindustrial, contribuíssem para perpetuar os mecanismos tradicionais de funcionamento e de gestão das plantações agro-industriais. É importante sublinhar que formas institucionais de ação pública como o IBC e o IAA estiveram muito mais ligadas à eternização de um Estado patrimonial, para usar as noções propostas por Raymundo Faoro a partir dos conceitos criados por Max Weber (1971), do que à construção de um Estado moderno, promotor de padrões de eficiência empresarial do capitalismo contemporâneo. Os "donos do poder" (Faoro, 1958) tiveram, em órgãos como o IBC e o IAA, alavancas poderosas para direcionar o processo histórico no rumo da modernização conservadora, impedindo simultaneamente destinos mais favoráveis a reconversões que privilegiassem as camadas desfavorecidas que lhes eram subordinadas. Mesmo assim há uma multiplicidade das vias de transformação social no mundo rural brasileiro, [3] como veremos a seguir.
A multiplicidade das vias de transformação no campo brasileiro
As análises desenvolvidas até aqui permitem compreender que a abolição da escravatura significou para os detentores de plantation a perda do capital imobilizado em escravos, o que parece ter sido significativo em algumas regiões como o Vale do Paraíba do Sul (Stein, 1957), mas de forma alguma acarretou a ruína dos mecanismos para fazer prevalecer a autoridade de antigas famílias de senhores de engenho e fazendeiros sobre a mão-de-obra que se via forçada a continuar a viver nos grandes domínios ou em suas periferias. Relações de dependência pessoal e de subordinação, como vimos nos casos de moradores e de colonos, foram recriadas permitindo a perpetuação de práticas anteriores de exercício do poder no interior das grandes propriedades (inclusive do poder de infligir castigos corporais aos subordinados). Essas formas de dominação personalizada que se generalizaram, na virada do século XIX para o século XX, supunham uma distribuição extremamente desigual do patrimônio fundiário, mas era através de práticas precisas de concessão do uso desse patrimônio que os grandes proprietários constituíam uma clientela de famílias de trabalhadores submissa às suas ordens. Relembrando os termos de Robert Castel, a propriedade de si era, de fato, um privilégio das camadas superiores do espaço social.
Em meados do século XX, as práticas de recrutamento e administração da força de trabalho das plantations tradicionais tornaram-se ineficazes, ou mesmo contraproducentes, diante dos efeitos combinados de quatro conjuntos de fatores: a) da evolução dos mercados internacionais das lavouras comerciais; b) da possibilidade de se emigrar para as metrópoles que se industrializavam no sudeste do país - sobretudo São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte; c) do surgimento de movimentos sociais camponeses engendrando o reconhecimento do sindicalismo de trabalhadores rurais e a implantação de um novo quadro legal e institucional; d) da ampliação dos serviços educacionais e de saúde em meio urbano. Passemos em revista esses diversos fatores responsáveis pela maior alteração morfológica da configuração cidade-campo: ainda em 1950, 64% da população brasileira vivia no meio rural, ao passo que, em 1980, apenas 32% persistia habitando o campo. É notório que mudança de tal magnitude, nas formas de viver e de trabalhar, não pode ser explicada por uma pretensa "liberação da mão-de-obra" rural para setores industriais e de serviços mais produtivos localizados em meio urbano, pois uma constante desse processo foi a pauperização de largas parcelas dos contingentes submetidos à urbanização recente, assim como os altos níveis de subemprego verificados nas metrópoles (para uma discussão sistemática ver Palmeira et alii, 1977). Mais do que uma discussão simplista sobre a "modernidade" atingida pelo Brasil industrializado da segunda metade do século XX, essa verdadeira mutação social da sociedade brasileira exige que se examinem as modalidades das mudanças de horizontes sociais para milhões de indivíduos e suas relações com as transformações das formas de poder tanto no meio rural quanto no meio urbano.
O primeiro fator explicativo das mudanças sociais já foi estudado anteriormente: trata-se da evolução desfavorável dos preços obtidos pelas lavouras comerciais no mercado internacional e no mercado nacional, cujos choques foram grandemente amortecidos pela ação das instituições públicas como IBC, IAA e outras.
Um segundo fator decisivo para a alteração das formas tradicionais de dominação foi a possibilidade de emigrar em massa para as metrópoles que se industrializavam rapidamente desde os anos 30, como São Paulo e Rio de Janeiro. A migração não só forneceu aos novos capitalistas industriais mão-de-obra extremamente barata e disposta a aceitar condições de existência cotidianas penosas, como as que se verificam, por exemplo, nos canteiros de obras de construção civil (onde "dormem em rede pregada em qualquer canto", "comem nas latas", cobrem- se "com qualquer trapo de roupa"), que seriam inaceitáveis caso os chefes de famílias trabalhadores tivessem que submeter o conjunto dos seus grupos domésticos a tais "padrões urbanos" das metrópoles modernas (Oliveira, 1972). A migração também esteve na origem da acumulação de recursos materiais e culturais, à custa de muito sacrifício físico e psicológico, que permitiram a muitos descendentes de pequenos proprietários ou a ex-moradores escaparem das malhas da submissão tradicional através da morada – escaparem da sujeição – e se estabelecerem como pequenos proprietários, pequenos comerciantes ou profissionais por conta própria (pedreiros, bombeiros, eletricistas etc) em suas regiões de origem (Garcia Jr., 1989 e 1990).
O terceiro fator impulsionador das mudanças morfológicas nas configurações cidade-campo no Brasil foi a própria modalidade da implantação dos novos direitos trabalhistas herdados de dois séculos de lutas sociais na Europa (Castel, 1995). No caso brasileiro, como também de outros países sul-americanos como o Chile (Gomez, 1982), houve uma segmentação dos modos de instituir normas e arcabouço jurídico para regular o mercado de trabalho: nas cidades foram implantadas leis (vide a CLT de 1943) e criadas a Justiça e a Inspetoria do Trabalho nos momentos em que a industrialização por substituição de importações ganhava novo ritmo; o campo foi considerado como o universo dos "usos e costumes", ou seja, das práticas de dominação tradicionais dos senhores de terra. Na verdade, o projeto inicial de Vargas parece ter sido o de estender aos trabalhadores do campo as vantagens concedidas aos trabalhadores urbanos. Contudo, a oposição de representantes políticos ligados aos grandes plantadores foi tenaz e bloqueou qualquer tentativa de haver evolução simultânea das normas trabalhistas urbanas e rurais.
Foi a criação das "Ligas Camponesas", em meados dos anos 50, por Francisco Julião (1962 e 1968), em paralelo às organizações próximas ao Partido Comunista na Ultab (União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, cf. Grynszpan, 1987; Medeiros, 1989; Martins, 1981), que deu um impulso decisivo para que o Congresso Nacional votasse, finalmente, o Estatuto do Trabalhador Rural, em 1963 (Camargo, 1979). Contribuiu também o pânico que se alastrou na classe dos grandes proprietários com os rumos tomados pela Revolução cubana em 1960. Contudo é de se notar que a clientela das Ligas não era formada por assalariados rurais, mas por foreiros (Julião, 1968; Heredia, 1979; Garcia Jr., 1983), ou seja, por moradores de engenhos abandonados pelos descendentes de senhores de engenho. É quando tais descendentes decidem controlar novamente os domínios abandonados e retomar práticas tradicionais de serviços gratuitos na infra-estrutura da propriedade, como o cambão, sem terem preenchido, durante anos, os requisitos de proteção dos moradores para serem considerados como bons patrões, que os antigos foreiros vão recorrer a um jovem advogado e deputado do PSB (Partido Socialista Brasileiro) para traduzir o conflito na Justiça. Note-se que Julião usou inicialmente apenas os dispositivos legais do Código Civil aprovado em 1916, tanto para caracterizar o aspecto abusivo do trabalho gratuito (cambão) como para lidar com a elevação do foro. Assim, as práticas jurídicas antecederam às decisões parlamentares: a tradução na Justiça dos conflitos entre várias categorias subalternas e os grandes proprietários passou a atribuir um peso à palavra pública de camponeses equivalente a de seus senhores; na prática dos tribunais era teatralizada a igualdade de cidadãos diante da lei. Francisco Julião lembra que as violências contra aqueles que davam início a uma "questão" na Justiça, ou contra simples testemunhas, freqüentemente ocorriam depois que acontecia a primeira audiência e não antes da presença dos litigantes nos tribunais: é que os senhores de engenho, "homens cordiais" por excelência, sentiam-se humilhados ao verem que seus depoimentos tinham valor igual ao de seus adversários. Uma mesma lei para todos era inadmissível, para quem se julgava único senhor em seus domínios; a igualdade de todos perante da lei rompia o véu que assegurava a hierarquia existente entre os que "tinham nome na praça" e a multidão dos "João-ninguém". Foram as Ligas Camponesas que tornaram as populações rurais beneficiárias efetivas da ordem jurídica.
Se as Ligas dominaram o cenário político do surgimento do movimento camponês, em final dos anos 50, não foram elas que mais contribuíram para disseminar o uso das leis trabalhistas e criar os novos sindicatos de trabalhadores rurais (Camargo, 1973; Palmeira, 1977): os vetores da aplicação dos novos dispositivos legais foram os grupos de sindicalistas católicos ou então os comunistas (Bezerra, 1979; Silva, 1982); a concorrência pelo monopólio da representação profissional de um novo ator político – os "camponeses" ou os "trabalhadores rurais" – provocou a consolidação em larga escala do sindicalismo camponês, com a criação de Federações estaduais e da Contag, ainda em 1963, e contribuiu decisivamente para a inscrição nas práticas sociais dos novos dispositivos legais.
A instauração do direito do trabalho modificou radicalmente as formas de construção da dominação personalizada até então prevalescente, já que ele introduziu um sistema de equivalências monetárias para tudo que antes era objeto de trocas mediante dons e contradons. O novo direito tornava perigosas, e mesmo ameaçadoras, as estratégias tradicionais dos grandes plantadores que tinham por finalidade endividar material e moralmente seus moradores e colonos. Conforme o novo sistema de normas jurídicas, todo trabalho efetuado para o patrão deve ser retribuído segundo o valor do salário mínimo, e todas as vantagens anexas, férias, repouso remunerado, décimo-terceiro, são calculáveis pelos mesmos parâmetros. Há também limites para descontos pelo fornecimento de moradia, assim como a atribuição de lotes de subsistência e a concessão para criar animais não podem dar lugar a contraprestações monetárias. O conjunto de práticas tradicionais não instaura mais uma dívida do dependente com o detentor da plantation, mas torna o grande proprietário devedor de seus dependentes, ao menos potencialmente. Qualquer desavença de um ex-colono ou de ex-morador pode dar lugar a uma questão na Justiça através de mediações do sindicato de trabalhadores rurais. Além de perdas materiais, há também uma certa desqualificação dos proprietários tradicionais, que eram denominados de "maus patrões" em julgamento proferido pela Justiça do Trabalho.
Assim, as práticas e estratégias tradicionais de exibição da generosidade de "bons senhores" tenderam a se modificar radicalmente: se não expulsam as famílias residentes em seus domínios, não mais concedem morada a novos casais, nem aos que os procuram vindo de outros domínios, nem aos descendentes das famílias abrigadas na propriedade. Esse verdadeiro movimento de "desconstrução" de relações sociais teve efeitos sobre a totalidade do espaço social, pois, mesmo para pequenos proprietários ou pequenos comerciantes, alteram-se as condições de reprodução de suas posições sociais. Assim, o conjunto dos participantes das plantations tradicionais se viu obrigado a gerir, em condições desiguais segundo os recursos materiais e simbólicos de que dispunha cada indivíduo, a reconversão de suas posições, de suas práticas e de suas categorias de pensamento e percepção do mundo social.
Desenraizamento das antigas clientelas rurais
Cabe registrar que a maior parte dos antigos moradores e colonos foi submetida a um processo de pauperização, porque se viram expropriados de suas condições tradicionais de existência, sem que isso signifique que tenham se transformado em um novo proletariado rural, titular de direitos e obrigações.
Ao sair da propriedade, o trabalhador se via forçado a ter que assumir os custos materiais de uma nova morada, fosse ao pagar aluguel para prédios urbanos, fosse ao adquirir chão de casa para construir seu imóvel, fosse ao invadir terreno onde poderia se estabelecer mesmo a título precário. Não dispunha mais do acesso à água e lenha da antiga propriedade, nesta nova situação, tornavam-se novas mercadorias. Não dispunha ainda de sítios ou de terra para roçados onde pudesse cultivar na estação chuvosa as culturas alimentares: todo terreno de lavoura supunha agora contrapartida sob a forma de arrendamento ou meação; a terra impõe-se como mercadoria a todos. O terreiro em volta da moradia urbana não tem a amplitude nem o caráter aberto da situação de outrora: as mulheres não podem mais ter criação de cabras, porcos e aves como rezava a tradição. Assim, tudo o que antes era disponível como o ar que se respira, que só custava esforço e disposição para "o pesado", tornava-se mercadoria que exigia previamente alguns recursos monetários acumulados. Percebe-se assim que a reconversão objetivamente exigida dos trabalhadores e de suas famílias era de monta: o investimento material e psicológico requerido supunha uma história de acumulações de bens materiais e de experiências de gestão autônoma da economia familiar que só para parcelas restritas de trabalhadores foi possível observar (cf. Garcia Jr., 1990). O deslocamento forçado para as cidades, porquanto os "patrões haviam ficado ruins", e não se revelavam mais "generosos", como no passado, foi assim vivido, na grande maioria dos casos, como um processo de perda e decadência. Por isso mesmo esteve freqüentemente associado a representações idealizadas do passado, como um tempo de fartura e harmonia frente a um presente de privações e de incertezas (Sigaud, 1979).
Há no processo histórico brasileiro algo que nada tem de inexorável: a experiência da liberdade vem associada, para a maioria da população rural, à vivência de um empobrecimento material que limita, evidentemente, os investimentos culturais e de desenvolvimento da subjetividade. Como registram vários pesquisadores, é comum ouvir-se no mundo rural brasileiro: "sou liberto, mas pobre". A condição de pobre limita a amplitude da qualificação de liberto.
A passagem do antigo sistema de relações, no qual os patrões se colocavam como "protetores" que tinham de prover o necessário ao sustento de seus dependentes e impunham suas normas à vida cotidiana, a outro universo caracterizado pela interdependência entre os indivíduos sem ligação formal entre si exige de cada qual, para empregar um conceito de Norbert Elias (1973), que cada qual se imponha uma "autodisciplina". É difícil mesmo imaginar as tensões acarretadas pela necessidade imperiosa de passar a gerir a própria existência sem o auxílio de ninguém, submetido a todas as urgências impostas pelas necessidades humanas mais imediatas, como a fome. Não é de se espantar que tal situação desemboque freqüentemente em reativação de formas de dependência pessoal, nas quais a busca de nova proteção abrangente seja a contrapartida de uma fidelidade sem limites, o que pode ter lugar em organizações religiosas, redes de clientelismo político ou ainda em bandos armados ligados a tráficos de drogas.
É importante, contudo, ressaltar que o caráter maciço da transformação de antigos moradores, ou de colonos, em clandestinos de ponta-de-rua, ou em bóias-frias, não implica a inexistência de outros itinerários sociais quando se abandona a condição de dependente da grande lavoura. As migrações, tanto para as metrópoles industriais quanto para as regiões de fronteira do Centro-Oeste e da Amazônia nos anos 70, permitiam também uma mobilidade ascendente e estiveram na origem da formação de grupos de pequenos comerciantes e de profissionais por conta própria, além de um campesinato de fronteira (Velho, 1974). A análise das práticas e das representações sociais de famílias de migrantes revela que os deslocamentos para as metrópoles industriais (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte) possibilitaram que, numa mesma fratria, alguns irmãos obtivessem a condição de empregados com carteira assinada no Centro-Sul, e aí passam a morar em caráter definitivo, enquanto outros irmãos obtivessem, mediante um emprego temporário como operário industrial, ou no setor de comércio e de serviços, os recursos materiais e culturais para adquirir uma pequena propriedade rural ou se instalar como pequeno comerciante em sua região de origem (Garcia Jr., 1990). As reconversões efetuadas através de migrações dependem tanto das condições do ponto de partida, quanto das redes que são mobilizadas para que o deslocamento tenha sucesso (empreiteiros, redes familiares, grupos geracionais etc) e das condições de mercado de moradia e de mercado de trabalho do ponto de chegada (veja-se a excelente monografia de Marilda Menezes, 2002). Nada é tão variável quanto a situação de cada indivíduo concreto ao se deslocar, já que, dependendo do seu sexo, e da sua idade, da condição familiar e posição no grupo assim constituído, dos seus investimentos escolares e culturais passados, duas viagens entre os mesmos pólos podem ter significados totalmente diversos para existência de um mesmo indivíduo.
Compreender as transformações sociais em curso implica estudar tanto a distribuição das riquezas entre os grupos sociais, como os investimentos materiais e psicológicos que fazem os indivíduos, para se dotarem dos recursos necessários à gestão dos novos universos sociais a que se acham confrontados.
Origens sociais do movimento dos sem-terra e os futuros alternativos do mundo rural
Sem sombra de dúvidas, a mudança de atitude da Igreja Católica, na segunda metade do século XX, foi um dos fatores mais significativos do funcionamento do espaço político no Brasil. Como ressaltou Francisco Julião (1968), a Igreja Católica tinha virtualmente o monopólio da difusão de visões de mundo e de ritos religiosos no espaço rural brasileiro até os anos 50; não foi obra do acaso que socialistas e comunistas se uniram a pastores protestantes, como João Pedro Teixeira, fundador da Liga de Sapé na Paraíba, para dar origem ao sindicalismo camponês.
Mudanças na relação Igreja Católica – Estado no Brasil
É no final dos anos 60, particularmente após a decretação do ato institucional de nº 5, quando as liberdades mais fundamentais são atingidas e a corporação militar dá início a práticas de tortura sistemática de adversários, que a hierarquia eclesiástica começa a criticar a ditadura e a se preocupar com a situação das classes populares tanto rural quanto urbana. Essa mudança, que atingiu o clero do alto a baixo, foi também impulsionada pela crescente concorrência religiosa, particularmente com o crescimento das igrejas pentecostais tanto no campo como na cidade (Novaes, 1985 e 1987). A implantação das “comunidades eclesiais de base” (CEB) por todo o país permitiu que das discussões em grupos assim constituídos surgissem muitas das iniciativas de mobilização popular por condições de vida mais dignas. A criação da Comissão Pastoral da Terra, em 1975, tornou sistemático o trabalho de mobilização junto ao campesinato desenvolvido pelos padres, bispos, agentes religiosos e catequistas. Uma vez que a Igreja Católica era a única corporação implantada em todos os pontos do território nacional – tal como a militar – suas novas formas de proselitismo e recrutamento de fiéis abriram a possibilidade, durante a década de 1970, de feroz repressão do regime autoritário, de uma discussão continuada e sistemática sobre as dificuldades sociais impostas pelos rumos do processo de transformação social. Note-se que mesmos os não-católicos (estudantes, intelectuais, militantes políticos, além de adeptos das mais diversas religiões) viram na nova ação da Igreja Católica um espaço seguro para retomar as tentativas de mobilização popular; não foram poucos os antigos militantes que saíram das prisões para se integrarem em trabalhos junto a setores populares através das CPTs e das CEBs.
A CPT atuou tanto como fonte autônoma de mobilizações camponesas, como em inúmeras lutas contra os despejos de posseiros e pela desapropriação de fazendas, em Mato Grosso, Goiás, Maranhão e Amazônia, quanto como força auxiliar do sindicalismo contaguiano ali onde ele era mais combativo, particularmente no caso de ocupações de fazendas e de greves de assalariados rurais que ocorram posteriormente ao congresso da Contag de 1979. [4] Foi na CPT que se formaram oposições sindicais que renovaram as lideranças do sindicalismo oficial mesmo antes do fim do regime militar, e foi também aí que foram formadas as lideranças mais importantes do MST atual (Fernandes, 1996). Muitas ONGs, que atuam agora no mundo rural brasileiro, tiveram também sua origem na militância de estudantes e professores universitários, de advogados, padres, freiras e agentes pastorais, junto aos grupos constituídos pelas CPTs e pelas CEBs nos anos 70 e 80. A mudança de orientação da Igreja Católica ao final dos anos 60, para o que muito contribuiu a coordenação da hierarquia eclesiástica através da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), foi um fator essencial para a reestruturação do espaço político brasileiro e teve um peso decisivo no crescimento do movimento camponês e na legitimação do tema da reforma agrária durante as três últimas décadas (cf. Palmeira, 1985).
Além da Igreja Católica, muitos outros grupos religiosos se implantaram e se difundiram por todo o país, principalmente recrutando fiéis entre as camadas mais pobres da população. A diversificação do campo religioso contribuiu acentuadamente para forjar novas percepções do futuro, tanto no nível individual quanto coletivo. O crescimento de grupos pentecostais entre camponeses conhecendo trajetória ascendente (Novaes, 1985) demonstra como a competição religiosa pode engendrar novas modalidades de elaboração de ethos e permitir a sacralização de solidariedades em bases diferentes do clientelismo patriarcal.
A diversificação do Estado Nacional
Não foram só as igrejas que conheceram um crescimento de seus templos e uma diversificação de suas atuações institucionais; enorme foi o crescimento do Estado nacional e grandes suas implicações para gerenciar as transformações do mundo rural. Em particular, cabe mencionar a criação de universidades públicas em todo território brasileiro e de instituições especializadas na pesquisa de biotecnologias, como a Embrapa ou em sua difusão, como a Emater. Esses organismos contribuíram para a profissionalização de cientistas das mais variadas disciplinas, nas quais as ciências sociais foram tão beneficiadas como as "ciências da terra" e as biológicas, e se forjaram assim instrumentos para imprimir novos rumos às transformações do mundo rural. À diferença de órgãos como IBC, IAA e outros, a pesquisa científica que se desenvolveu nessas outras instituições públicas não estava tão subordinada a interesses de elites profissionais de grandes plantadores. Como no caso da diversificação do campo religioso, a autonomização e a diversificação do campo científico estão na origem de novos instrumentos para tentar imprimir outros rumos às transformações do mundo rural. O elenco das vias de mudanças possíveis parece estar se ampliando; o debate recente demonstra que os processos em curso não estão submetidos nem a determinismos econômicos, nem a determinismos de qualquer outra ordem.
A retomada das ocupações de terra, sobretudo pelo MST, desde o final dos anos 80, assim como a aceleração dessas ações durante os anos 90, vai demonstrar que os conflitos fundiários existem no país inteiro, que há milhões de demandantes de terra para nela fixarem residência e dela tirarem ao menos parte de seu sustento, mas essa demanda, que não se exprime no mercado fundiário, pode ser materializada no sacrifício dos acampamentos, das longas marchas e das romarias. Das formas mais variadas, os descendentes de senzalas, ou de seus sucedâneos, passaram a exibir sua pobreza e sua obstinação em não se deixar excluir da vida social: foram os antigos senhores que adquiriram a liberdade frente às suas antigas clientelas, a liberdade de lhes negarem abrigo e sustento material, de lhes negarem o reconhecimento social de que merecem ter existência digna como qualquer cidadão de Estado democrático. O fim do patrão tradicional não supõe o surgimento do "homem solidário"? Ou em vocabulário próximo ao de Robert Castel: o fim das "proteções de proximidade" não implica a "invenção do social" ou o Estado que instaura mecanismos de coesão social para atenuar os efeitos devastadores do desenraizamento de populações camponesas?
Caminhos da reforma agrária e o leque de futuros do mundo rural
Com a expansão do número de engenhos e fazendas transformados em assentamentos, ganhou força o debate sobre a relevância da "agricultura familiar" ou, mais precisamente, das estratégias de reconversão de populações desprovidas de recursos que supõem o uso intensivo da força de trabalho do grupo doméstico, ou ainda de desenvolvimento de pequenos e médios proprietários que utilizam sobretudo membros de seus grupos familiares. Cabe aqui dialogar com as preocupações externadas pela Professora Magdalena León, pois, ao falar de agricultura familiar, muitos autores pretendem se referir a novo ator do cenário político, econômico e cultural do país, como se toda a diversidade de categorias efetivamente já estudadas pela sociologia rural e antropologia do campesinato, como sitiantes, posseiros, pequenos proprietários, lavradores, parceiros, arrendatários etc., pudesse ser subsumida a essa única rubrica conceitual, como seria também redutor considerar a todos como “sem-terra” apenas. O adjetivo familiar justaposto à categoria agricultores aparece sobretudo como um meio de designar um agente social diferente de agricultores patronais, no qual a referência se esgota nas diferenças entre o chefe da exploração agrícola (patrão oposto a pai ou mãe de família) e seus subordinados (assalariados opostos a filhos/filhas). Tudo indica, ao contrário, que a rede familiar característica do universo rural brasileiro apresenta uma configuração própria de relações de aliança e de filiação específicas e diversificadas, a exigir um exame mais minucioso de antropólogos e sociólogos rurais. O reducionismo político ou jurídico da categoria agricultores familiares demonstra ainda uma vez como análises sociológicas têm sido tributárias de uma subordinação às demandas do campo político e ideológico. [5] A criação de uma política de crédito específica, como o Pronaf (Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar), contribuiu para legitimar novas modalidades de agricultores.
A diversidade de designações para as unidades agrícolas demonstra que vários atores disputam, dentro do mundo rural e dentro do campo político, o reconhecimento para os projetos de futuro que contemplem mais de perto seus próprios interesses. O projeto recente do governo FHC, que discorre sobre o "novo mundo rural", não escapa a essas formas de competição por designar o futuro da coletividade sob a aparência de designar um destino inexorável.
Não cabe aos sociólogos a postura de falsos "videntes do futuro", ou ainda de profetas de paraísos imaginários. Há 100 anos atrás, o escritor brasileiro Euclides da Cunha, através do relato da guerra de Canudos (1893-97), retraçava a tragédia causada pela arrogância dos que supunham deter a chave única do "jardim do éden" da modernidade. Em suas próprias palavras:
“E quando pela nossa imprevidência inegável deixamos que entre eles se formasse um núcleo de maníacos, não vimos o traço superior do acontecimento. Abreviamos o espírito ao conceito estreito de uma preocupação partidária. Tivemos um espanto comprometedor ante aquelas aberrações monstruosas e, com arrojo digno de melhores causas, batemo-nos a carga de baionetas, reeditando por nossa vez o passado, numa entrada inglória, reabrindo nas paragens infelizes as trilhas apagadas das bandeiras... Vimos no agitador sertanejo, do qual a revolta era um aspecto da própria rebeldia contra a ordem natural, adversário sério, estrênuo paladino do extinto regimen, capaz de derruir as instituições nascentes. E Canudos era a Vendéia...” (Cunha, 1966 [1902], parte II, capítulo V, p. 231).
Sob a forma de epopéia, a narrativa da guerra de Canudos é bem mais do que o relato de uma tragédia; é sobretudo um apelo à compreensão dos processos que desencadeavam tamanha violência e crueldade.
As lições da história secular revelam que futuros que não recriem as hierarquias e as distâncias sociais fundadas à época das casas-grandes e senzalas, que não recriem os poderes dos homens cordiais, supõem que nos debrucemos atentamente sobre as experiências dos que tentaram (ainda tentam) buscar praticamente e imaginar formas de convivência social nas quais a igualdade dos indivíduos seja regra cotidiana. Se contribuírem os sociólogos dessa maneira, como parceiros da consolidação de tais rumos, permitirão talvez que se esmaeça a trágica imagem cunhada por Eduardo Galeano das "veias abertas da América Latina", a fim de que se possa trilhar de maneira confiante, em época de tão avassaladora ofensiva de uma "restauração conservadora" (cf. Bourdieu, 1998), as "vias abertas pela América Latina".
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Notas
[1] O caráter incompleto da passagem de uma sociedade holista a uma sociedade individualista, para dialogarmos com o vocabulário do antropólogo francês Louis Dumont, é o tema central da problemática introduzida pelo antropólogo Roberto da Matta (1978), particularmente o que denominou de "dilema brasileiro", pensado empiricamente a partir do estudo do carnaval, do futebol, do jogo do bicho, eventos concebidos como rituais da nacionalidade. Tento aqui dar um tratamento de sociologia histórica a questões que Roberto da Matta vem examinando de forma fecunda e inovadora com os instrumentos da análise estrutural de cosmologias (vide também Da Matta, 1987 e 1999).
[2] Ao estudar as representações dos moradores de engenho da Zona da Mata de Pernambuco, Lygia Sigaud (1980) ressaltou como a categoria de homens se referia unicamente aos senhores de engenho e usineiros. Sua dissertação de mestrado teve por título significativo Nação dos homens.
[3] O debate sobre as relações de produção no campo latino-americano, se capitalistas ou feudais, tão característico do período 1940-1970, aponta para unicidade do destino dos antigos camponeses dependentes: tornar-se-ão novos camponeses "autônomos" ou proletários rurais? Prevalecerá a " alma camponesa" ou a "alma proletária" de personagens do universo da antiga plantation como moradores, colonos ou agregados? O exame simultâneo da argumentação do conjunto dos autores brasileiros, participantes deste debate, permitiu a Moacir Palmeira (1971) demonstrar que poderia haver uma multiplicidade de vias de transformação. As pesquisas da equipe de antropólogos que deu origem, junto ao Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (cf. Palmeira et alii, 1977), viriam a confirmar a diversidade dos itinerários de reconversão dos trabalhadores submetidos à dominação personalizada da plantation tradicional e a especificar as condições sociais e históricas de ocorrência de cada itinerário singular (como, por exemplo, o de morador a pequeno negociante em feiras).
[4] Para uma análise das greves de canavieiros do Nordeste, ver Sigaud (1980).
[5] Para que tal afirmação não pareça vaga e abstrata, basta observar o documento instituidor de um programa de crédito inovador como o Pronaf (Programa Nacional de Apoio à Agricultura Familiar), já que o universo rural está habituado a constatar, desde a segunda metade dos anos 60, como o crédito rural subsidiado foi privilégio dos grandes proprietários, além da alavanca poderosa da modernização conservadora (Delgado, 1985). Difere-se, no documento, três categorias de agricultores familiares, quantificando-se a cada uma delas: a mais numerosa é sumariamente estigmatizada como inviável. Resta saber, de ângulo menos economicista, se os autores de tal proposta julgam verdadeiramente que tal parte da população brasileira é composta por famílias inviáveis.