Estudos Sociedade e Agricultura

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Pedro Paulo B. de Castro Barbosa

 

Paisagem de Grande Lavoura

Terras da Fazenda Cerejeira, município de Quissamã (RJ), 2000. 
Fotografia de João Rua.

Nas memórias de um espaço, paisagens se sobrepõem, se justapõem, se completam e se negam, ao longo de sua transformação. A paisagem é uma convergência de momentos. Passa por nós, mesmo quando estamos parados, sob a forma de algo que se transforma no tempo. Guarda uma certa relação de exterioridade, é algo observável, algo além de nós, ainda que próximo ou envolvente.

Por ser documento importante de realidades com variáveis distâncias no tempo e no espaço, a fotografia cumpre um papel de distinguir ainda mais o observador do observado, trazer o passado para o presente, como registro não-textual de existências.

A foto demonstra vestígios da permanência de um trabalho secular, de um tempo passado, porém transformado, devido à incorporação de técnicas e atores sociais no processo produtivo, relativos a um tempo presente. Técnicas usadas no canavial que se queima, que se planta e colhe de forma organizada e paulatinamente mais racional; técnicas expressas pela simples presença do veículo, que serve para arregimentar a “turma” de cortadores de cana e conduzi-la a seu local de trabalho. Os atores sociais, por sua vez, incluem o “turmeiro”, ou empreiteiro, geralmente o dono do ônibus, além de trabalhadores que lhe servem de assistentes, medindo e anotando a quantidade de cana cortada por trabalhador.

Ao fundo e à esquerda, a compor uma moldura, a solitária árvore, poupada no processo devastador promovido em eitos de monocultura. Porém o canavial queimado, o ônibus e a “bóia” são os três elementos principais observados nesta foto, tirada por João Rua nas terras da Fazenda Cerejeira, município de Quissamã, localizado na região Norte Fluminense, ao norte de Macaé e ao sul da cidade de Campos dos Goytacazes. Registra a materialização das relações de produção na lavoura de cana-de-açúcar, tradicional atividade dessa porção do território fluminense.

A figura do turmeiro surgiu nessa região nas últimas duas décadas, já que antes os cortadores eram transportados na boléia de caminhões pertencentes a grandes fornecedores de cana ou às usinas. A incorporação desse ator social no processo produtivo causou impacto na oferta de trabalho, pois quanto mais racionalmente se organiza a operação de corte da cana, menos força de trabalho é requerida para a mesma.

O resultado de transformações nas relações de trabalho se faz sentir na paisagem: há algumas décadas havia, nos enormes canaviais das usinas, por entre as grandes “quadras” de cana-de-açúcar, famílias e grupos de cortadores vivendo em casas esporadicamente localizadas. Eram pessoas que trabalhavam no corte, não possuíam terras, mas não eram expulsas pelos proprietários, pois até mesmo ajudavam a “cuidar” da fazenda. Muitas casas continuam existindo, mas já não são habitadas, visto que o trabalho no corte exige muito menos mão-de-obra. Essa população se inclui no enorme contingente de pessoas que migra para a periferia de cidades ou para as vilas, na tentativa de arranjar outros tipos de serviço, mesmo em atividades tipicamente urbanas.

Na paisagem uniforme do canavial, diversos tipos de funções, relações de trabalho e hierarquias podem ser identificadas, a partir de um processo de modernização lento e descontínuo.

 

Pedro Paulo de Castro Barbosa é Mestrando em Desenvolvimento, Sociedade e Agricultura no CPDA / UFRRJ. João Rua é Professor adjunto do Departamento de Geografia da UERJ.