Raimundo Santos
Revalorizações de Caio Prado Jr.
Estudos Sociedade e Agricultura, 19, outubro, 2002: 187-193.
Raimundo Santos é professor do CPDA/UFRRJ.
Desde 1988, quando a Unesp lhe dedicou um simpósio nacional, o reconhecimento a Caio Prado Jr. vem realçando o estilo formulador reformista que o publicista de São Paulo extraía da sua teorização sobre a formação social brasileira. Cada vez mais a interpretação de Brasil caiopradiana aparece como um constructo elaborado por um marxista profundamente ligado ao modo de pensar o país do nosso ensaísmo social, tal como apontou Antonio Candido ao colocá-lo entre os seus nomes mais clássicos, ao lado de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Hollanda.
Na passagem para o novo milênio, surgiram novos livros sobre Caio Prado Jr.. Alguns deles vieram estimular valorizações fundadas na presença do publicista em sua circunstância histórica. Essas leituras estão marcadas pela ênfase no chamado marxismo original de Caio Prado Jr., havendo autores que procuram mostrá-lo como teórico do comunismo brasileiro, lugar de onde emerge um ensaísta sugestivo, justamente por ser o principal nome do marxismo político brasileiro. Em 2000, começaram várias manifestações alusivas ao primeiro decênio sem Caio Prado Jr., falecido em novembro de 1990. A principal delas, a sessão do Senado Federal de junho de 2001 em homenagem ao historiador, pedida pelo comunista Roberto Freire, representou o gesto reparador do PCB em relação ao intelectual que permanecera outsider no seu próprio partido mesmo sendo dos mais disciplinados militantes.
É a esse tempo de recuperação do historiador que vem se juntar o livro de Marcia R. Victoriano A questão nacional em Caio Prado Jr. – uma interpretação original do Brasil. A autora organiza o seu texto em quatro seções, em cada uma das quais procura sublinhar categorias centrais na dissertação caiopradiana; uma, bem conhecida e própria do autor, e outras, de origem diversa (de Trotsky e de Gramsci), seriam sugestivas dos excursos mais característicos do historiador. Com esse exercício, Marcia R. Victoriano apresenta a visão de Caio Prado Jr. sobre a origem, o desenvolvimento e as contradições da formação social brasileira; dimensões, como lembra Otávio Ianni no prefácio ao livro, definidoras da obra caiopradiana como uma interpretação de Brasil propriamente dita.
Assim, no primeiro capítulo chamado “O sentido da história”, a autora sublinha a categoria do sentido da colonização e leva até o leitor a originalidade da teoria do Brasil-colônia de Caio Prado Jr.. Embora esse seja reconhecimento recorrente, duas referências, no entanto, chamam nossa atenção. Por um lado, Marcia R. Victoriano alude à questão da centralidade que o período colonial ocupa na historiografia caiopradiana, referindo-se especialmente ao aprisionamento do historiador à ênfase que ele concedia ao mercantilismo mundial, em função do qual se organizou o país. A autora nos traz de volta esse tema da desmedida importância do capital mercantil, já considerado como o calcanhar de Aquiles do marxismo usado na dissertação caiopradiana.
Ela deixa sugerido que esse viés é que teria levado à “investigação aprimorada” que Caio Prado Jr. exibe em Evolução política do Brasil (1933) sobre o processo de emancipação política, até os primeiros tempos da “aurora da Revolução Burguesa” (1888-89). Por outro lado, propõe a autora, a análise caiopradiana dos períodos posteriores (até a primeira metade do século XX) torna-se uma historiografia menos acurada, notavelmente empobrecida se comparada àquela do primeiro texto. A originalidade da obra jovem só é retomada – acrescenta a autora – em A revolução brasileira (1966), o opúsculo com o qual o historiador fecha sua publicística.
Mesmo sem reconhecer naquela debilidade marxista fonte para Caio Prado Jr. estender sua criatividade à dissertação dedicada ao período mais contemporâneo, a autora não deixa de anotar que o circulacionismo dos primeiros tempos tem “sobrevida e desdobramento”. Aliás, em alusão a ele, Marcia R. Victoriano situa o historiador no debate sobre o desenvolvimento e a dependência, como se sabe, discussão muito significativa durante o largo pré-64, até bem entrada a década de 1970. A autora relembra a interpelação a Keynes com a qual Caio Prado Jr. valorizava, na Economia Política brasileira, a dimensão do consumo, diferenciando-a da Economia Política clássica. Segundo o historiador, esta última estava referida à centralidade que a produção tinha na vida econômico-social do primeiro industrialismo, diversamente do caso brasileiro, em função da nossa origem e configuração como país.
Esse ponto de vista circulacionista, em que se põe Caio Prado Jr., provém do nosso subdesenvolvimento dependente, tal como ele o vê se conformar a partir da colônia de produção. O historiador fixava aí um parâmetro antiapriorístico a partir do qual caberia aproveitar as teorias clássicas. Entre tais teorias, incluía-se o marxismo do capitalismo conhecido por Marx e Engels, cujo paradigma da produção precisaria ser alargado com o tema do consumo, mediante uma operação que desse conta da circunstância histórica de sermos um “país sem povo” – lembrando aqui a expressão criada por Louis Couty a propósito da colônia brasileira montada como empreendimento produtivo voltado para fora.
No segundo capítulo, “Desenvolvimento desigual e combinado”, Marcia R. Victoriano hierarquiza na dissertação caiopradiana uma outra categoria analítica, “subjacente ao sentido da colonização: a do desenvolvimento desigual e combinado” (p. 39). A autora busca a conexão de totalidade em Caio Prado Jr., debruçando-se sobre a narrativa da modernização burguesa brasileira que o historiador apresenta sempre como um processo desarticulado e inconcluso. Embora ele não tenha recorrido explicitamente àquela categoria de Trotsky, a autora persegue essa filiação conceitual complementar como eixo principal da sua leitura da obra caiopradiana. Nesse capítulo, Marcia R. Victoriano também propõe que as descrições feitas por Caio Prado Jr. sobre o nosso curso burguês não-sustentável levam a supor o uso do conceito de desenvolvimento desigual e combinado num registro muito próximo do constructo que Gramsci constrói para dar conta da relação entre o Norte (industrial) e o Sul (agrário) como momentos constitutivos do capitalismo na Itália (“modernidade e debilidade entrelaçam-se mutuamente”, p. 42). Já aí a autora revela essa aproximação do historiador com Gramsci como uma segunda linha de argumento a percorrer as outras seções do seu livro.
No terceiro capítulo, “A formação do povo brasileiro”, Marcia R. Victoriano volta ao tema, já tratado pelo pensamento social, da transição da colônia para a nação, ainda inconclusa no decorrer do século XX. É sugestivo o ponto no qual a autora apresenta a dissertação específica que Caio Prado Jr. desenvolve sobre o processo de constituição do povo brasileiro: o “movimento contraditório do que é orgânico (a escravidão, o clã-patriarcal) e do que é inorgânico (a condição social das populações livres e também dos escravos) na sociedade brasileira colonial e imperial” (p. 73).
Vendo na abordagem caiopradiana semelhança com a noção gramsciana de revolução passiva, Marcia R. Victoriano observa que, em Evolução política do Brasil e em Formação do Brasil contemporâneo (1942), Caio Prado Jr. exercita sua narrativa sobre as classes subalternas num enfoque, como ele próprio dizia, não-antropológico da cultura, mas próximo do conceito, depois corrente entre nós, de sociedade civil. Pela leitura dessa seção do livro de Marcia R. Victoriano, vê-se que, na sua dissertação sobre a formação da nossa “sociedade civil” a partir da escravidão e do seu esgotamento, Caio Prado Jr. não minimiza a passividade dos setores populares brasileiros (recorde-se que ele escreve textos ideológicos sobre a sociedade do trabalho do socialismo real e sobre as virtudes de classe universal da classe operária). Ao contrário, apresenta sua subalternidade histórico-determinada como um constrangimento inibidor da constituição daqueles grupos sociais em sujeitos políticos. Esse é um tema que continua nas análises políticas caiopradianas do pré e do imediato pós-64, particularmente visível na reserva do publicista ante o protagonismo do sindicalismo urbano realmente existente no país e em relação ao potencial revolucionário que então se atribuía às ações camponesas pela terra.
A autora dedica grande parte do quarto capítulo do seu texto, “As formas da nação”, ao livro Evolução política do Brasil e dá o merecido valor a esta “súmula geral” da publicística caiopradiana, como certa vez o chamou Caio Prado Jr.. Seguindo proposição de Carlos Nelson Coutinho, a autora pretende que, na descrição do historiador sobre a revolução da independência, também há uma idéia de revolução passiva. De acordo com aquela obra de 1933, o Estado nacional aqui se concluíra sob forma monárquica, diversamente de outros países latino-americanos com suas guerras e repúblicas (recorde-se a expressão “forma bastarda” com a qual Gramsci qualificava o balanço da ausência de incorporação popular no quadro estatal que emerge do Risorgimento italiano). Além dessa reserva em relação ao papel da Monarquia (diverso o aproach caiopradiano da valorização positiva que dela faz Gilberto Freyre), é interessante a referência de Marcia R. Victoriano à passagem na qual Caio Prado Jr. avalia a afirmação do processo de formação do Estado Nacional com a hegemonia da “grande burguesia nacional”. Aí estaria mais um equívoco do historiador, ao divisar essa última classe na classe dos proprietários rurais, conforme o comentário de Coutinho feito no simpósio da UNESP, também relembrado pela autora.
De acordo com Marcia R. Victoriano, na descrição de Caio Prado Jr., ao processo independentista à maneira de uma revolução passiva se sobrepôs uma fase prussiana de modernização burguesa que consolidara o trânsito para o tempo do Brasil republicano-oligárquico. A dissertação caiopradiana sobre esse período, repetindo a autora, não seria muito subsistente devido à dominância da história econômica na obra posterior ao livro de 1933. Mesmo assim, ela não deixa de mostrar insights com os quais Caio Prado Jr. põe-nos diante de um outro processo revolucionário: o espírito burguês que viera acelerar a nossa modernização após 1888. Vale dizer, um impulso não-revolucionário, diferente da via clássica de revolução e seus traços de ruptura da ordem, movimentos populares e efeitos democráticos. Desse tema, aliás, ocupou-se Gilberto Freyre em Sobrados e Mucambos, muito antes dos escritos caiopradianos de “história econômica”, e ainda em Ordem e progresso, de 1959.
Uma característica do livro de Marcia R. Victoriano é que ele lembra muitas das controvérsias já acumuladas na bibliografia. Chamam nossa particular atenção as referências da autora a uma outra dificuldade que o historiador teria para compreender o nosso mundo mais moderno. Segundo a autora, Caio Prado Jr. conciliara com o paradigma do pré-64, ao permanecer em certos momentos ambíguo em relação à chave nacional-desenvolvimentista de interpretação da nossa modernidade, posta na contradição nação/antinação, em detrimento do recorte classe/nação, próprio do marxismo. Marcia R. Victoriano alude a algumas repercussões que essa ambigüidade conceitual teria trazido à visão caiopradiana dos tempos mais contemporâneos. Uma delas seria a de que o historiador não chega a dar tratamento específico ao tema do bloco no poder do “Brasil Populista”, mantém uma percepção ainda referida ao tema da emergência de uma burguesia industrial e não defende uma transição socialista no país. A desconstrução que Caio Prado Jr. empreende no imaginário da esquerda daqueles anos, a polêmica antifeudalista e seu constructo sobre a burguesia burocrática – com o qual ele nega a presença revolucionária de uma classe produtiva na modernização – todavia encerrariam aquele tipo de aporia. Aí também se incluiria o desinteresse do historiador pelo crescimento das modernas forças produtivas e sua conseqüente desatenção em relação à importância da democracia política, como indicara Carlos Nelson Coutinho em 1988, neste ponto também citado pela autora.
Marcia R. Victoriano apresenta a modernização descrita por Caio Prado Jr. como uma modernização que avança incompleta e lenta, projetando a sombra da colônia de produção. Citando textos caiopradianos, a autora mostra como os seus traços de “sedimentações passivas” se acumulam ao longo de um processo inorgânico que não resolve o descompasso entre Estado e sociedade. No entanto, essa descrição pode ser posta em registro diferenciado. Mesmo sem o historiador tematizar propriamente a relação entre economia e política, como fazem os “eurocomunistas” pecebistas da segunda metade da década de 1970, estaria ali, naquela descrição da nossa modernização não-clássica, o ponto de partida de uma “ciência política” caiopradiana. Uma “ciência política” composta pelos temas dos movimentos sociais e da opinião pública, enlaçados por debates dos “grandes problemas nacionais”, como dizia Caio Prado Jr., vividos pelos partidos políticos no regime democrático. Diferente do registro daqueles comunistas eurocomunistas, que trabalhavam a hipótese prussiana de interpretação da modernização brasileira e valorizavam o tema da democratização política do país, no seu excurso de “ciência política”, o historiador tinha em mente o modelo do primeiro industrialismo europeu e suas conseqüências sociopolíticas sustentáveis e pensava também no exemplo dos EUA.
Os dois realces de que se serve Marcia R. Victoriano em sua leitura de Caio Prado Jr. estimulam o interesse por outros traços da publicística do intelectual paulista. O tema do circulacionismo viria sugerir que o que é apontado como déficit no marxismo caiopradiano – por este seu marxismo “não se centrar” na produção – estaria revelando o modo como o historiador procurara superar a ortodoxia da própria raiz de militante comunista. Ao fazer sua construção (marxista), sem deixar o estilo do nosso pensamento social, Caio Prado Jr. realizara exercício singular, como fizera Guerreiro Ramos em sua “redução sociológica”. Essa trilha valoriza a marca circulacionista na visão que o historiador tinha da “revolução burguesa” do pós-30. Não por acaso Caio Prado Jr. se distinguiu dos autores da época, marxistas incluídos, com a expressiva exceção de Hélio Jaguaribe. Em 1978, no adendo a A revolução brasileira, o historiador – Marcia R. Victoriano também faz o registro – revelou essa proximidade como emblema da obra dedicada ao tempo contemporâneo, cujo sentido ele próprio identificara com a hipótese contida no conceito de “Estado Cartorial” do isebiano.
Quanto à semelhança de excursos caiopradianos com categorias marxistas alheias – o eixo da interpretação de Márcia R. Victoriano –, no caso das noções gramscianas, é bom relembrar o já dito, inclusive pela autora: autores de marxismo político, Caio Prado Jr. e Gramsci são publicistas que dissertam sobre vias não-clássicas da modernização burguesa tardia. Eles recorrem, porém, a comparações diferentes. Enquanto o historiador comunista refere nossa experiência ao primeiro industrialismo, como já observado, o teórico da política faz esta e outras associações, privilegiando a comparação do Risorgimento italiano, o objeto da sua historiografia, com o 1789 jacobino. Ambos desenham modernizações em contexto de classe econômica débil e na ausência de ativismo revolucionário, traço por excelência tematizado por Gramsci para o caso da Itália. Como também se vê na leitura do livro de Marcia R. Victoriano, no registro caiopradiano a modernização brasileira aparece como um processo sem burguesia revolucionária. A fração que faz-lhe às vezes e alimenta o imaginário do pré-64 é um grupo carente de substância produtiva suficiente para desenvolver industrialismo auto-sustentável e – por sua imbricação com os interesses agrários e conseqüente impossibilidade de movimentar os camponeses – desprovido de condições para revolucionarizar o ancien régime. Ainda de acordo com o argumento de Caio Prado Jr., aqui, o Estado viria a assumir funções da classe econômica e atuar como ente de “generalidade”, chamado que será para cumprir duas grandes tarefas: reorganizar aquele mundo desarticulado da economia e “atender aos interesses da maioria da população”, como dizia o historiador.
A propósito da questão de fundo da reorientação do descompasso (de origem) entre economia e sociedade – seria essa reorientação o próprio sentido da “revolução brasileira” –, registre-se que o publicista de São Paulo exibe uma “ciência política” diferente da de Hélio Jaguaribe. Como se sabe, para viabilizar entre nós o desenvolvimento de um capitalismo que se afirmasse na esfera produtiva, trazendo pluralismo e democracia ocidental, o isebiano propunha um neobismarckismo ilustrado, nisso bem distante da valorização dos conflitos sociais para a democracia, que se observa no historiador.
Quanto ao papel das classes agrárias – a outra peça-chave prescrita pelo modelo marxista –, o historiador também tinha uma idéia singular de revolução: os assalariados e semi-assalariados, assentados nos grandes setores da agropecuária, serão os seres chamados a protagonizar uma revolução agrária não-camponesa, recorte este circunstanciado por Marcia R. Victoriano. No entanto, vale repetir essa formulação caiopradiana, hoje bem atual: a revolução agrária no Brasil não se centraria na questão da terra (que não teria potencial para generalizar a mobilização agrária no país) nem seria diruptiva da institucionalidade democrática, ainda em processo de afirmação no pré-64. Para Caio Prado Jr., ao institucionalizar vastos contingentes daquela força de trabalho, por meio de uma malha sindical estendida ao largo do território nacional, aquela revolução agrária teria as proporções da Abolição e adquiriria sustentabilidade no contexto de um industrialismo reorganizado e incorporador.
Marcia R. Victoriano. A questão nacional em Caio Prado Jr. – uma interpretação original do Brasil, São Paulo: Edições Pulsar, 2001, 144p.