Estudos Sociedade e Agricultura

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Maria José Carneiro

A pluriatividade na agricultura familiar


Estudos Sociedade e Agricultura, 19, outubro, 2002: 176-183.

Originário da tese de doutorado defendida na UFRGS em dezembro de 1999, o livro de Sergio Schneider foi publicado pela editora dessa universidade no começo de 2003.

Maria José Carneiro é professora do CPDA/UFRRJ.


Com o seu novo livro, Sergio Schneider oferece uma contribuição ao conhecimento sociológico referente ”à elucidação dos mecanismos e das estratégias que explicam como as unidades familiares de agricultores se relacionam com a sociedade e de que modo tais relações afetam e alteram sua própria existência” (p. 16). Em termos mais específicos, o livro é orientado para entender o fenômeno da pluriatividade como uma nova estratégia da reprodução social das unidades familiares agrícolas.

Percorrendo uma postura teórica heterodoxa, Sergio Schneider enfatiza a necessidade de uma fértil interlocução entre abordagens distintas como condição para se avançar a teoria social contemporânea. O autor segue a risca esse compromisso, realizando um diálogo criativo – e isento de preconceitos – com contribuições de matizes diferenciados. Sua concordância com as linhas gerais da análise da Sociologia da Agricultura, especialmente com a abordagem de Marsden, sobre o contexto social e econômico do capitalismo contemporâneo que emoldura o fenômeno da pluriatividade, não o impede de levantar críticas a essa vertente interpretativa quanto à participação da agricultura familiar nos processos agrários contemporâneos. Nesse sentido, o autor chama a atenção para o papel das unidades familiares como atores dos processos sociais e, assim, orienta o seu foco de interesse para as dinâmicas microssocio­lógicas, colocando ênfase nas estratégias familiares de reprodução social. A opção em selecionar a família rural como unidade de análise não desvia o olhar de Sergio Schneider para a complexidade das relações sociais que são aí engendradas, no esforço de pensar dialeticamente a articulação entre os universos macro e microssociais, entre o geral e o particular, entre a sociedade e o indivíduo. Embora seja um trabalho que pretende ser comprovado por dois estudos de caso, contribui para a reflexão acerca de uma preocupação que já se tornou clássica no pensamento sociológico e que é traduzida pelo autor como "o modo como os indivíduos se relacionam com estruturas e processos societários" (p. 16).

Para dar conta do desafio de entender, ao mesmo tempo, os processos sociais mais amplos e a dinâmica de unidades sociais particulares, Schneider recorre a duas ferramentas metodológicas: a utilização da dialética e a distinção entre unidade de produção e grupo doméstico no interior da família rural. Trilhando esse caminho, ele incorpora, criticamente, con­tri­buições metodológicas de Chayanov destinadas à compreensão da dinâmica intrafamiliar e à explicação do processo de tomada de decisão dos agricultores. No entanto, o ponto de crítica ao modelo chayanoviano, que consiste na cisão entre produção e trabalho no interior do núcleo doméstico, pode ser contestado se há distinção analítica, a qual o próprio Schneider persegue, entre unidade de produção e grupo doméstico. Ou seja, é possível contra-argumentar que, no âmbito da produção agrícola das famílias pluriativas, a unidade entre trabalho e produção se mantém na medida em que o trabalho aí desempenhado é considerado uma respon­sabilidade da família (como uma unidade). Isso ocorre mesmo que não seja o conjunto dos membros da família que dele se ocupa. Dependendo das disponibilidades individuais de tempo e do cálculo sobre o valor da mão-de-obra de integrantes da família em atividades concorrentes no mercado de trabalho externo, o trabalho familiar poderá ser exercido por apenas um ou por vários componentes do grupo doméstico. Aliás, é nessa direção que se orientam as evidências da pesquisa empírica que ilustra e sedimenta as hipóteses teóricas propostas pelo autor. Em seus estudos de caso, verificou-se que, em média, 78,4% ”dos membros das famílias pluriativas fornecem algum tipo de ajuda nos trabalhos da propriedade”, o que viria confirmar uma das hipóteses do autor segundo a qual "a busca de um trabalho não-agrícola não implica necessariamente um rompimento com as atividades propriamente agrícolas ou, pelo menos, com determinadas tarefas da propriedade" (p. 191). Nesse sentido, entende-se porque, normalmente, a renda resultante da produção agrícola familiar permanece indivisível e orientada para realizar demandas coletivas, mesmo em famílias pluriativas. Por outro lado, é na esfera do grupo doméstico (e não na da produção) que se fazem presentes as contradições decorrentes do movimento de indi­vi­dualização dos membros da família em virtude das ofertas do mercado de trabalho. Como o próprio autor chama a atenção, resta saber em que con­dições o grupo doméstico atua como uma unidade de reprodução social, socializando parte ou a totalidade dos rendimentos individuais; ou, ao contrário, quando essa unidade é quebrada e os rendimentos apropriados individualmente. Neste último caso, ficariam mais evidentes os aspectos contraditórios entre os projetos individuais e os interesses (ou estratégias) coletivos (familiares), reforçando a perspectiva do autor de que os indivíduos não são meros suportes das estruturas sociais, mas atuam também na dinâmica social, engendrando mudanças. Vemos, portanto, que a pers­pec­tiva analítica do autor não rompe, nesse aspecto, com a abordagem chayanoviana da unidade indivisível entre trabalho e produção. Mas, por outro lado, é válida a adaptação que ele faz do modelo de Chayanov ao inverter a relação positiva entre crescimento demográfico da família e crescimento da produtividade agrícola em situações de pluriatividade. Em outras palavras, ele chama a atenção para o fato de que, no contexto da pluriatividade, a tendência é a diminuição da produtividade agrícola quando os membros da família atingem a idade plena de trabalho, já que irão se dedicar a trabalhos fora da unidade produtiva familiar.

Esse aspecto é importante para o modelo analítico de Schneider na medida em que o seu propósito é estudar a pluriatividade como prática social alternativa e/ou complementar à agricultura para garantir a reprodução social das famílias de agricultores. Articulam-se aí algumas condições que dizem respeito tanto à forma de organização familiar da produção agrícola (na qual prevaleceria a utilização da força de trabalho da família), quanto à da integração de indivíduos ao mercado de trabalho não-agrícola. Nesse sentido, o autor alerta para a necessidade de se levar em conta que ”a pluriatividade é decorrente de fatores que lhe são exógenos, como o mercado de trabalho não-agrícola”, mas é também ”uma prática que depende das decisões dos indivíduos ou das famílias” (pp. 91-92). O fenômeno da pluriatividade exige, assim, que se oriente o olhar para a tensão resultante dessas duas forças: de um lado, a relação dos agricultores com o ambiente social e econômico no qual estão inseridos e, de outro, a dinâmica interna da organização social dessas unidades produtivas de caráter familiar. Este último aspecto aponta para a necessidade de se levar em conta valores e lógicas não diretamente associados aos objetivos da produção, mas que afetam as decisões e estratégias familiares. Trata-se de obrigações sociais impostas por compromissos ditados pela família como unidade social (e não apenas como unidade de produção), como, por exemplo, os relacionados à herança, ao casamento e à sucessão. Nesses termos, Schneider vai ao encontro de outros autores ao reafirmar a importância da compreensão desses fatores (digamos, de ordem interna, associados ao contexto histórico e social), para se entender a dinâmica de reprodução social, econômica, cultural e moral das unidades familiares agrícolas.  Nesse ponto, situa a sua principal contribuição teórica: propõe pensar a reprodução social como "resultado do processo de intermediação entre os indivíduos-membros com sua família e de ambos interagindo com o ambiente social em que estão imersos" (p. 95).  Desse modo, o autor reafirma a coerência com sua postura analítica centrada na relação entre indivíduo, estruturas e processos societários.

A partir desse ponto, Schneider pretende romper com o reducionismo classificatório inerente ao debate sobre a natureza capitalista ou não-capi­talista da agricultura familiar. No entanto, sem optar claramente por uma classificação alternativa, o autor não chega a propor um novo parâ­metro classificatório e acaba caindo na armadilha do debate, ao se deter nos mesmos termos por ele colocados. Reafirmando antiga hipótese inter­pretativa segundo a qual ”determinadas formas sociais relacionam-se com o modo de produção dominante sem que as relações que se estabelecem entre ambos seja, a priori, de caráter capitalista”, (p. 96), Schneider, a meu ver, não supera os problemas da classificação dualista por ele criticada. Será que, ao apontar para os limites da associação entre mão-de-obra assalariada ou venda de produtos agrícolas e caráter capitalista, o autor não estaria apenas discordando dos critérios utilizados para tal classificação sem, contudo, romper com a forma dualista de ordenar a realidade? Ou seja, se, de um lado, ele avança, ao indicar que determinados critérios já consolidados no debate sociológico e técnico-político não são suficientes para identificar formas capitalistas de produção, por outro, mantém-se no mesmo modo de pensar as formas sociais da agricultura segundo o paradigma capitalista. Permanece, portanto, a mesma indagação já expressa por Neves (1995): qual a abordagem metodológica que devemos perseguir para dar conta da diversidade das relações sociais no campo, sem risco de cairmos nas grandes reduções da racionalidade dualista? É suficiente alertar para a complexidade dos processos a que estão submetidas as variadas formas de agricultura familiar, nos quais situam-se a natureza familiar dessas unidades e o con­texto socioeconômico? Onde encontraríamos os pontos de ruptura entre formas qualitativamente distintas? Quais os critérios ou procedimentos que nos levariam a reconhecer diferentes lógicas de reprodução social? Até que ponto, sob a denominação da pluriatividade, escondem-se diferentes lógicas de reprodução social? Essas indagações nos levariam a entendê-la não como um fenômeno único, mas como uma prática social que oculta uma diversidade de significados para as unidades sociais que a ela recorrem. Seria, então, o caso de falarmos de pluriatividade apenas como um dos mecanismos postos à disposição dos atores sociais para fazer face aos limites impostos pelo cenário socioeconômico abrangente à sua reprodução social? Se assim for, o recorte analítico centrado na pluriatividade não nos daria elementos suficientes para reconhecer estratégias comuns a todas as uni­dades familiares que a ela recorrem. Teríamos, pois, de aceitar que a plu­riatividade, assim como o recurso à mão-de-obra contratada pelas unidades familiares, não são recortes eficazes para se reconhecer a distinção entre as lógicas de reprodução social de unidades familiares agrícolas de naturezas distintas.

Mas não estamos aqui pretendendo praticar nenhuma injustiça com Sergio Schnei­der. Sua análise, longe de cair em generalizações tipológicas, apro­fun­da a discussão teórica de maneira a contemplar, no seu modelo, a complexidade das relações sociais que são engendradas pela pluriatividade. Aí se encontra a riqueza de seu trabalho: para ir além dos aspectos macrossociológicos considerados pela Sociologia da Agricultura, Schneider não mede esforço de pesquisa bibliográfica e empírica. Ele busca os signi­ficados da pluriatividade também no modo como é praticada pelos próprios agricultores. É nessa direção que o autor vai trilhar o seu caminho in­ves­tigativo propondo "descer ao ambiente intrafamiliar para conhecer melhor os mecanismos pelos quais uma família se torna pluriativa e de que modo ela exerce sua pluriatividade". A partir daí ele procura responder à questão central do seu trabalho: até que ponto a pluriatividade se constitui numa nova estratégia de reprodução social das unidades familiares. Mas será essa uma boa questão? Ou será que, levando em conta as diversidades dos processos sociais e das formas sociais assumidas pela chamada agricultura familiar, não seria mais adequado indagarmos acerca dos diversos significados que a pluriatividade pode assumir de acordo com as diferentes lógicas de re­produção social das unidades familiares? Assim, um mesmo mecanismo, por exemplo, o recurso a atividades não-agrícolas, poderá assumir cono­tações distintas quando acionado num contexto de reforço à produção agrícola familiar ou, caso contrário, seja resultado de uma opção pelo abandono da atividade agrícola. Aliás, como a própria pesquisa empírica desenvolvida por Schneider aponta, foi possível reconhecer ao menos três significados para a pluriatividade: estratégia pura e simples de reprodução da família e da unidade doméstica; mecanismo destinado à modernização e ao reforço à unidade de produção; ou, também, a conjugação dos dois significados anteriores.

Se a contribuição teórica de Schneider é de grande importância para o debate, sua pesquisa empírica, ainda que centrada em duas localidades rurais situadas nos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, traz algumas evidências interessantes para se pensar o papel da pluriatividade na dinâmica das famílias rurais brasileiras. Destacaria, dentre elas, a variação demográfica na composição das famílias. A pesquisa revela que as famílias pluriativas são formadas por uma parcela maior de jovens e integram um número maior de pessoas. Com base neste lado, o autor extrai a informação de que o número de jovens é um elemento decisivo favorável à opção pela pluriatividade (p. 181). Mas, poderíamos também sugerir, alternativamente, que a pluriatividade é um recurso fundamental que, ao aumentar a capacidade de consumo das unidades familiares (outra evidência), mantém os jovens por mais tempo vinculados às suas famílias. Dito em outros termos: a pluriatividade seria um mecanismo que atuaria no sentido de favorecer a manutenção dos jovens e das famílias rurais em suas localidades de origem, ao passo que a centralidade na atividade exclusivamente agrí­cola exerceria uma pressão contrária, expulsando os jovens para outras atividades em localidades mais distantes, desvinculando seus projetos individuais da estratégia de reprodução social da unidade familiar ori­ginária.

Para análises futuras, caberia aprofundar o estudo qualitativo das estratégias familiares e investigar os fatores (con­dicionantes) que levam famílias, inseridas nos mesmos contextos socio­econômicos, a tomarem um ou outro caminho. Ou, ainda, como também sugerem os dados da pesquisa: investigar até que ponto a pluriatividade é uma prática mais recorrente, entre as famílias na fase do ciclo demográfico, aquelas com grande número de membros jovens. No final desse ciclo, a aposentadoria tenderia a substituir o emprego da mão-de-obra familiar em atividades não-agrícolas como fonte de renda monetária. Como indicam os dados da pesquisa, "o recurso às atividades não-agrícolas e a pluriatividade (o autor não deixa clara a distinção entre ambas) não são imutáveis ou permanentes, pois, nos casos pesquisados, foram encontradas unidades familiares que passaram da condição de famílias pluriativas para famílias de agricultores" (p. 193). No mínimo, a metade das famílias dos agricultores entrevistados declarou que algum dos membros da sua família já havia trabalhado em atividades não-agrícolas. Evidências como essas nos levam de volta à indagação a respeito da natureza da pluriatividade como uma prática transitória que é acionada pelas famílias dependendo das variações do seu ciclo demográfico e das condições subjetivas (individuais e familiares) e objetivas do mercado de trabalho local. No entanto, não é essa a conclusão que encerra o livro A pluriatividade na agricultura familiar. Ao contrário, o autor enfatiza a natureza estrutural e permanente da pluriatividade em "determinadas regiões agrárias, afetando os mais diversos tipos de unidades produtivas, sejam elas modernizadas ou não, grandes ou pequenas" (p. 234). Para captar, então, os múltiplos sentidos dessa prática, Sergio Schneider propõe que o foco de análise se oriente “não mais na pluriatividade per se ou na emergência das ocupações e rendas não-agrícolas de modo genérico, mas para as relações da pluriatividade com  a agricultura familiar” (p. 234). Am­pliando, com essa crítica, a metodologia de análise do Projeto Rurbano [1] , do qual ele faz parte, o autor sugere deslocar o objeto de estudo da dinâmica das atividades agrícolas e não-agrícolas do mercado de trabalho rural para o modo como as famílias combinam “múltiplas ocupações produtivas” (somente produtivas?) e como tais famílias se relacionam com os seus ambientes rurais inclusivos.

Mas, apesar dessa proposta metodológica percorrer o argumento do livro, do início ao fim, a análise dos dados empíricos não chega a oferecer ao leitor uma compreensão nítida das diferentes possibilidades de interação entre essas dimensões. Afinal, os diversos significados da pluriatividade para a reprodução social das famílias não são claramente enunciados ou de­mons­trados pelo autor. Talvez a ênfase no seu percurso teórico tenha reduzido o espaço para uma análise mais densa do material empírico que sustentou a tese de doutorado de Sergio Schneider, de maneira a possibilitar um diálogo mais íntimo entre a teoria e os fatos. Em suma, o modo como os dados foram apresentados não permite visualizar as várias estratégias familiares e as relações (ou tensões) entre elas e os interesses individuais, deixando o leitor na expectativa de que outras análises empíricas sedi­mentarão, em futuro breve, hipóteses tão bem fundamentadas teoricamente.

Finalmente, como esperamos ter transmitido nesta breve resenha, a leitura do livro de Sergio Schneider é muito estimulante e indicada a todos que transitam pelo tema da agricultura familiar. Trata-se de uma grande con­tribuição ao debate sobre a pluriatividade, tanto no que se refere à aplicação da noção a estudos de casos particulares, como à reflexão teórico-meto­dológica em que situa a problemática. Sustentado em uma vasta revisão bibliográfica, na qual o autor não se limita a expor as diferenças de abor­dagens, mas se expõe, ele próprio, a todo o momento mantendo um diálogo fértil e instigante com os interlocutores. Sem dúvida, A pluriatividade na agricultura familiar representa um novo patamar na compreensão do fenômeno da pluriatividade e na trajetória dessa noção no campo das ciências sociais. Para os que seguirão com esse mesmo tipo de interesse resta um esforço de criatividade a ser feito ainda maior.

Sergio Schneider. A pluriatividade na agricultura familiar. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2003, 254p.

 

[1] O Projeto Rurbano, coordenado por José Graziano da Silva, reúne pesquisadores de diversos estados e instituições acadêmicas do Brasil que, a partir da reelaboração e análise dos dados da PNAD sobre a dinâmica das atividades não-agrícolas no meio rural, estudam, sob diversos aspectos, as transformações recentes no meio rural denominadas genericamente de “o novo rural brasileiro”.