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Adalmir Leonídio

Uma biografia de um autor esquecido


Estudos Sociedade e Agricultura, 16, abril 2001: 194-197.

Adalmir Leonídio é doutorando do CPDA/UFRRJ.


Duas posturas já um tanto antigas confrontam-se com freqüência nos estudos sobre a obra de Manoel Bomfim (1868-1931). De um lado, a dos defensores da tese do ostracismo do escritor sergipano e, de outro, a daqueles que qualificam Bomfim como um intelectual de segunda monta ou mesmo um “subintelectual”. Tais apreciações reaparecem de forma extremamente interessante no livro de Ronaldo Conde Aguiar, O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim.

O trabalho de Conde Aguiar traz a pergunta oportuna: quais as razões e os motivos que fizeram de Manoel Bomfim um autor esquecido? A partir desta questão, o autor incursiona em duas outras questões. Primeiro, a da construção e do funcionamento do nosso “campo intelectual”. Em segundo lugar, propriamente a da lógica que preside a “hierarquia de relevância” no pensamento social brasileiro, procurando o autor situar o lugar que Bomfim, como autor e protagonista, veio a ocupar nesses níveis da inteligência brasileira.

Segundo Conde Aguiar, o ato de escrever sobre os chamados “ícones” do pensamento social brasileiro – aqueles que formam a “elite” da “hierarquia de relevância” – transformou-se numa demonstração de competência de quem soube escolher o que estudar e sobre quem escrever. Tal ato reafirma o prestígio dos “ícones” na medida em que ratifica a sua importância como tema, criando assim um ciclo vicioso: por serem os mais estudados, os autores consagrados seriam reconhecidos como os notáveis representantes do pensamento social brasileiro. Ao contrário, os autores pouco citados são tidos como de pouca relevância. Pela posição que ocupam na “hierarquia”, tais autores não chegam a transmitir renome acadêmico àqueles que os elegem como tema de seus estudos.

A tarefa de Conde Aguiar é, assim, no mínimo, ousada: reposicionar Bomfim na “hierarquia de relevância”, propondo-se ver suas obras entre aquelas que formam “a base, o corpo e a alma do pensamento social brasileiro”. O recurso biográfico escolhido pelo autor parece ser o melhor caminho a seguir para penetrar na trajetória individual e intelectual de Manoel Bomfim.

Pierre Bourdieu, no texto “A ilusão biográfica”, já acentuou que a razão da biografia é investigar momentos e reavaliar experiências individuais em busca de explicação para o acontecido e do lugar que o biografado – como autor e protagonista – ocupa na história. A compreensão da obra singular se daria em meio à pluralidade de livros que lhe são contemporâneos. A obra de um autor não se explicaria ou se definiria por si mesma. Ela só se torna compreensível no contexto intelectual (daí a idéia de “campo intelectual”) de que faz parte, diferenciando ou identificando-se com os pressupostos e valores da época. A dinâmica desse processo seria de concorrência – um confronto de idéias e prestígio – entre autores.

Neste sentido, Conde Aguiar lança mão de um recurso extremamente fecundo que lhe permite aproximar Manoel Bomfim a “ícones” importantes. O pensamento e a obra de Bomfim se caracterizariam, no interior do “campo intelectual” de seu tempo, como um “contradiscurso”. Igual a tantos outros “ícones”, ele teria trabalhado a realidade que conhecia, pensando-a de maneira crítica, em oposição aos códigos conceituais então prevalecentes e aceitos.

Um exemplo interessante é a tentativa do autor em estabelecer um paralelo entre Manoel Bomfim e Caio Prado Jr.. Segundo Conde Aguiar, num aspecto, ao menos, ambos se aproximam: os dois romperam com os interesses das classes a que pertenciam, embora, no caso do historiador, a ruptura seja muito mais profunda. Mas as aproximações e diferenças entre os dois clássicos não se restringem a suas posturas políticas. Ambos elaboraram textos cujas semelhanças são reveladoras, porque inclusive eles partiram de uma referência comum – Leroy-Beaulieu –, mas chegaram a pontos relativamente díspares. Há, sobretudo, distinção de estatura entre os dois. Um – Caio Prado Jr. – era marxista, militante fiel do PCB dos anos 40 aos 70, sempre com certa liberdade teórica e política em relação a seu partido. O outro – Manoel Bomfim –também simpatizava com a causa do socialismo durante os anos em que o PCB havia sido recém-fundado, mas não teve a inserção partidária intensa de Prado Jr..

E é aqui que emergem alguns pontos questionáveis na biografia de Conde Aguiar. Por exemplo, o esforço do autor para inserir Bomfim no “campo intelectual” como um contradiscurso radical levou-o a forçar o suposto marxismo do pensador sergipano. Bomfim, diferentemente de Prado Jr. teria buscado no marxismo não um “guia de ação revolucionária” mas um “método de interpretação da realidade social”. Esta assertiva é duplamente enganosa. Prado Jr. foi um dos poucos pensadores brasileiros que interpretou a colônia de produção brasileira, valendo-se do conceito de totalidade, como lhe propunha a dialética do seu marxismo.

Bomfim inegavelmente leu Marx, mas não o aplicou como parâmetro da práxis transformadora da realidade brasileira. Conforme o próprio Conde Aguiar mostra em seu livro, Bomfim propunha, em A América Latina: males de origem, a superação do atraso e, por conseguinte, a redenção do povo brasileiro por meio da educação, chegando com isso a um “impasse teórico”: como fazer a difusão da instrução popular, conscientizadora, numa sociedade excludente, dominada por uma classe dirigente tacanha e refratária? Reflexo de sua proposta ilustrada e utópica, o dilema resultava justamente do fato de Bomfim separar o tema da consciência do tema da classe revolucionária que lhe corresponde no socialismo marxista.

Sabemos que no livro O Brasil nação: realidade da soberania brasileira, Bomfim passaria a defender a idéia de revolução. Mas qual é precisamente o sentido de revolução que ele ali defende? Antes de mais nada, o pensador sergipano fala em nome do “povo” e da “massa de explorados” em abstrato, mas não de uma classe concreta. A massa lhe aparece como um elemento bem passivo posto diante do intelectual, este sendo o verdadeiro elemento ativo. Embora suas leituras socialistas sejam numerosas, o autor mais emblemático para ele, neste caso, é Louis-Auguste Blanqui (1805-1881). Como Bomfim, o revolucionário francês tampouco acreditava na ação autônoma popular, pois defendia que somente um longo processo educativo seria capaz de inculcar nos operários a “verdadeira idéia de liberdade”.

Contudo, e este é um dos pontos altos da biografia de Conde Aguiar, nenhum outro autor brasileiro da sua época colocou, como Manoel Bomfim, no centro dos debates sobre o tema da formação e da identidade nacionais, a questão das relações entre nações hegemônicas e nações dependentes. Embora não tenha entendido com clareza o sentido marxista do papel da luta de classes na história, o seu conceito de parasitismo deu a Bomfim os meios necessários para então discutir uma cadeia de relações de dominação no interior das classes sociais e entre países periféricos e centrais.

Pode-se dizer, como quer Conde Aguiar, que Bomfim não era um “heterodoxo”, tanto em relação ao marxismo, porque não era propriamente marxista, quanto em relação ao pensamento predominante em sua época – em geral, positivista –, conquanto, de fato, sua obra tem o aspecto de um “contradiscurso”. Mas ele tampouco era um “revolucionário”, um “subversivo”. Embora a tese sobre o esquerdismo de Bomfim possa ser aceita, é preciso matizá-lo como um reformismo ilustrado, de forte influência do socialismo utópico-crítico, misturado com o seu bem reconhecido nacionalismo intransigente.

Um outro ponto discutível na biografia de Conde Aguiar é justamente a questão do por que Manoel Bomfim transformou-se num autor esquecido. De acordo com o biógrafo, Bomfim não aceitara determinadas regras e comportamentos do “campo intelectual” brasileiro do seu tempo. Isso explicaria o desinteresse do pensador sergipano em vincular-se a instituições legitimadoras (como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras), instituições que teriam o poder de distinguir os “ícones” dos demais, fertilizando uma “hierarquia de relevância” dentro do “campo intelectual”. O mesmo pode ser dito em relação à sua recusa em polemizar com autores bem situados na elite da “hierarquia de relevância”, como Silvio Romero. Ao furtar-se do debate, Bomfim teria enfraquecido substancialmente a sua posição – de contradiscurso – no “campo intelectual” brasileiro daquela época.

Há pelo menos duas razões que enfraquecem essa conjetura do autor de O rebelde esquecido. A primeira é que nem todos que pertenceram a instituições como aquelas são, hoje, figuras intelectuais lembradas por nossa historiografia, inclusive nem todos que são objeto de inúmeros estudos fizeram parte delas. Um exemplo: Sérgio Buarque de Holanda. A segunda razão é que, embora Bomfim estivesse longe de ser um “icone” ele transitava pela rua do Ouvidor, espaço restrito por onde as elites e seus intelectuais circulavam em meio a boêmios que, apesar de “não-ícones” naquele tempo, tornar-se-iam, depois, célebres, como, por exemplo, Olavo Bilac, Coelho Neto, Aluísio Azevedo, Graça Aranha e Raul Pompéia, enquanto Manoel Bomfim continuaria um “ïlustre desconhecido”.

Ronaldo Conde Aguiar, O rebelde esquecido: tempo, vida e obra de Manoel Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000, 565p.