Estudos Sociedade e Agricultura
Héctor Alimonda
A guerra das imagens
Estudos Sociedade e Agricultura, 16, abril 2001: 188-190.
Héctor Alimonda é professor do CPDA/UFRRJ.
Marcadas para sempre pelo trauma da conquista européia, as sociedades americanas (não apenas as que estão ao sul do Rio Bravo) vivem repondo com ansiedade as perguntas sobre suas origens. Isto é, recriam uma e outra vez seus mitos fundacionais, os que lhes permitiram se julgar verossímeis e portadoras de uma identidade possível. Para isso, procedem a operações que têm muito de ficcional (“o passado é uma ficção do presente”, dizia Michel de Certeau), inclusive na sua pretensão de “realidade fundante”, enquadradora da memória coletiva.
Instalados nesse território liminar prévio a qualquer reflexão sobre as identidades e os destinos coletivos, como as imagens implantadas na memória programada dos “replicantes” de Blade Runner (o filme de Ridley Scott), os mitos não deixam, por isso, de ser o espaço de uma luta mais ou menos aberta, estando em permanente corrosão e reconstrução. Para continuar com a metáfora cinematográfica (emprestada de Serge Gruzinski), no século XXI, em uma Los Angeles onde os prédios do poder se erigem como novas pirâmides de Teotihuacán, também os “replicantes” poderão se rebelar e desafiar os humanos. Eles são portadores de novas e desconhecidas imagens, como os eclipses dos satélites de Tannhäuser, um planeta exterior, que nenhum olho humano viu jamais.
Imagens contra imagens: os conquistadores europeus e suas estratégias de ocupação, os povos indígenas, os escravos africanos, suas alternativas de resistência e canibalismo. Mais do que uma estrutura narrativa fechada, o roteiro de Joaquim Pedro de Andrade para o projeto de filmagem de Casa Grande, Senzala & Cia. preferiu apresentar uma sorte de prólogo. As 98 seqüências cinematográficas se iniciam com o deslumbramento da carta de Pero Vaz de Caminha e se fecham com a invasão holandesa. No conjunto, formam um grande contraponto orquestral, como a abertura de uma peça sinfônica ou operística, de um grande poema histórico ou do nascimento de uma nacionalidade. Mais do que iluminar mitos ou lugares comuns consagrados, o roteiro preferiu recorrer a uma profusa documentação historiográfica e etnológica, na qual o livro de Gilberto Freyre é apenas uma das fontes fundamentais. Não existe um fio argumental definido cuja lógica se imponha, nem personagens relevantes que, com suas ações ou suas características, organizem os sentidos da história. Trata-se, mais propriamente, de um grande afresco de cenas superpostas (à Diego Rivera), com personagens apresentados na cotidianidade, formando a trama de todas as histórias possíveis.
O roteiro, que nem intenta uma banal neutralidade, parece convidar cada um dos espectadores (ou leitores, à falta de realização do filme) a selecionar entre essas imagens suas matérias-primas favoritas para (re)conhecer os mitos organizadores da brasilidade. O filme (o roteiro) se encerra com a chegada da esquadra holandesa. Todos os elementos estão reunidos, diz-nos Joaquim Pedro, eleja cada um de vocês, agora, um desenvolvimento possível da história para os próximos 500 anos.
Entre tantas referências possíveis, entre tantos recursos fáceis e já estabe-lecidos onde encostar a narrativa, Joaquim Pedro parece decidido a não ele-ger nenhum. Ou, em todo caso, deve-se fazer alguma opção entre os sentidos possíveis da brasilidade, acompanhar Oswald de Andrade e ficar com a antropofagia.
Sem pretender erudição, sem perder nunca sua referência visual, o roteiro denota, em cada detalhe, estar respaldado em um cuidadoso trabalho de pesquisa. Os especialistas na obra de Gilberto Freyre, nas suas fontes e no período poderão reconhecer e identificar sem esforço a presença de elementos de informação. O livro, agora publicado, inclui também uma pequena jóia, uma road movie escrita que acompanha com imagens contemporâneas as propostas pelo roteiro. Trata-se da narrativa da viagem de locação, entre Salvador e Recife, na qual Ana Maria Galano reconstrói com maestria e bom humor as aventuras da equipe de realização, orientada pelos historiadores Joel Rufino dos Santos e Dirceu Lindoso, por notáveis e por “mateiros” locais, e que vale como peça autônoma de literatura de viagem.
Uma entrevista com Joaquim Pedro traz importantes chaves da proposta do roteiro, assim como esclarecedoras referências à tradição do Cinema Novo como fundamento da estrutura narrativa elegida. Há também desenhos, fo-tografias, cartas e testemunhos de membros da equipe, em uma edição primorosa.
“Um mito é uma imagem que fala”, propõe Philippe Dubois. As imagens sonhadas por Joaquim Pedro de Andrade para Casa Grande, Senzala & Cia. preferem eludir os mitos já consagrados da nacionalidade brasileira e falar de um outro lugar preliminar: o mito do cinema como espaço de enunciação de todas as utopias possíveis.
Joaquim Pedro de Andrade, Casa Grande, Senzala & Cia. – Roteiro & Diário, organização de Ana Maria Galano, Aeroplano, Rio de Janeiro, 2001, 261p.