Estudos Sociedade e Agricultura
Raimundo Santos
Rurbanização e revolução agrária em dois registros clássicos
Estudos Sociedade e Agricultura, 16, abril 2001: 74-93.
Resumo: (Rurbanização e revolução agrária em dois registros clássicos). O texto incursiona nas teorizações de Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., procurando associar suas imagens de Brasil com os conceitos gilbertiano e caiopradiano de “rurbanização” e “revolução agrária”, respectivamente. O autor sugere que tais estilos de pensar são instigantes para a leitura de algumas ensaísticas contemporâneas que reproblematizam o estudo do mundo rural brasileiro.
Palavras-chave: desenvolvimento rural, agricultura, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., rurbanização, reforma agrária, ruralidade.
Abstract: (Rurbanization and agrarian revolution in two classic registers). This article introduces us to some theses of Gilberto Freyre and Caio Prado Jr. and suggests an especific association between the theories of Brazil these authors have and their concepts of “rurbanization” and “agrarian revolution”. The author argues that these styles of thinking are very stimulating for a reading of some contemporary essays which debate in a new way the theme of Bralizian rurality.
Key words: rural development, agriculture, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., rurbanization, agrarian reform, rurality.
Raimundo Santos é professor da UFRRJ/CPDA.
“Mais do que equilíbrio: interpretação. Compenetração.” Gilberto Freyre.
“Esse é um ponto de extrema importância a ser considerado, a saber, a organização sindical nos centros urbanos menores.” Caio Prado Jr.
Estas páginas visam relembrar duas referências clássicas que estariam de volta também por suas sugestivas alusões ao tema do desenvolvimento rural. A primeira provém de textos de Gilberto Freyre, esse “teórico da sociedade civil” de economia patriarcal (Moreira, 1988) que exercitava, nos anos 30, “no brasileiro de sua língua: esse à vontade” que é Casa Grande & Senzala, como o chamou João Cabral de Melo Neto (Melo Neto, 1966-74; 1997), um modo “picassiano” de Materialismo Histórico.1 Pretende-se lembrar que a imagem de Brasil ali desenhada serve de pano de fundo do ideal de rurbanização proposto pelo sociólogo – “em seu alcance político” (Freyre, 1982a in 1982: 125) – como estilo de desenvolvimento. E recordar que o seu ponto de partida é uma paisagem de equilíbrio, modelada por entre os extremos do atraso e do moderno, enquanto que as condições de realização da sua tese urbanizante como política social dependeriam de uma “vontade” bem descondicionada, que o intelectual de Apipucos procurava nos poderes governamentais e nas convicções dos homens públicos em geral.
A outra referência igualmente procede de uma teoria de sociedade civil, da teorização da “colônia de produção” brasileira no enfoque da “economia política” de Caio Prado Jr.. Este é um autor que labora o tema do mundo brasileiro como uma população cuja marca principal já não lhe parecia ser o caldeamento racial, mas sua escassa estruturação econômica, social e política. Caio Prado Jr. aferia as possibilidades da elevação dessa nacionalidade inconclusa à “vida do mundo moderno” [1] através de um marxismo marcado pelos traços da história nacional. [2] Ele chegara a redefini-lo – abrindo largamente sua Economia Política ao tema do consumo – para ver melhor as dinâmicas que explicavam uma formação social como a brasileira, ao mesmo tempo dependente (a colônia de produção) e contemporânea (o industrialismo inconcluso). Com esse interesse e compromisso, o autor militante também movimentava a “vontade” transformadora, mas a via referida a atores históricos cuja margem de autonomia estaria dada, na sua ativa interação na vida econômico-social, sobretudo pela política, no contexto dos partidos ideológicos e dos governos administrativos políticos.
Com o risco do anacronismo, a presente recensão procura sugerir que alguns textos desses dois autores também fazem o caminho de outros clássicos que, nos últimos tempos, retornam, com os seus estilos de pensar, inspirando pesquisas e políticas públicas, e ainda estariam oferecendo pontos de agenda para atores de esquerda mais responsáveis na mobilização social rural. Um exemplo é a retomada de Ignácio Rangel (Graziano da Silva, 1996; 1998), que reapareceu com a sua idéia do pré-64 de reforma agrária de curso consensualizado em torno dos aspectos “não propriamente agrários”, aqueles que, em seu tempo, ele achava de solução mais viável por não envolverem transformações de classe ou mudanças revolucionárias. Hoje, melhores as condições – a reforma agrária do governo, o novo ímpeto da ação agrarista (MST) e a consolidação de uma esfera pública rural (Contag) protegidos por alguns partidos políticos –, esse “reformismo viável” vem dando passos cada vez maiores que já começam a ser valorizados. Em áreas oficiais, vêem-se certas mobilizações (marchas, ocupações de terra, acampamentos, ações urbanas), outrora tidas, no mínimo, como temerárias, agora como atos particularmente inovativos para um ambiente de desesperança como é o mundo rural. No campo militante-intelectual dos movimentos sociais, valorizam-se certos resultados, importantíssimos, de movimentações muito mais largas e às vezes pouco espetaculares (ver o grande número de assentamentos, a montagem da área reformada da agricultura; os ganhos do associativismo sindical em termos de políticas públicas, como, por exemplo, o Pronaf).
Por seu turno, aqueles dois autores viriam relembrar-nos de algo parecido com o tema hoje chamado “novo mundo rural”. Nesse sentido, Gilberto Freyre retorna falando de rurbanização e de outras iniciativas em campos além da economia. Caio Prado Jr. também volta com a idéia de reforma agrária “não camponesa”, sugerida em seu tempo para reviver e devassar, ao modo americano e do Welfare State, um capitalismo débil e seletivo (Santos, 2001). Sua fórmula agora desperta interesse justamente por este “sentido abolicionista” que a faz um mecanismo de incorporação social de alcance universalizante no conjunto do território. Esses constructos da rurbanização e do que se poderia chamar de “reforma agrária ampliada” são aqui relembrados a propósito de algumas das recentes reproblematizações do tema do desenvolvimento rural e suas repercussões. De fato, tanto em áreas da militância socio-agrarista e sua bibliografia, quanto nas esferas do governo abertas ao “social” vem ganhando força o enfoque mais atento às novas tendências de complementaridade entre cidade/campo, vistas agora já não apenas ao velho estilo dos estudos prospectivos feitos para atenuar uma relação irremediavelmente desigual. Cada vez mais se trabalha, nesse tipo de meta utópica, almejando-se resultados efetivos na constituição de seres destinados a viver no curto e médio prazos um cotidiano melhor e de relações sociais mais complexas, como queria Gilberto Freyre, ao reclamar da marca mutiladora deixada pela escravidão.
Não se pretende aqui mover uma máquina de tempo para se debruçar sobre argumento atual. Tão-somente se quer sugerir que, apesar do caráter desordenado e dos impasses dos textos aqui resumidos, [3] algo do que neles dizem aqueles autores pode ser tomado como certas antecipações de um tempo agora bom para se colher melhores frutos, especialmente da incorporação – às políticas públicas e à ação social – desse tema que as ciências sociais vêm considerando sumamente estratégico: a questão do território. A esperança é a de que um novo enfoque de tipo integrado da dimensão espacial venha a tonificar as macro e microeconomias dos programas setoriais e a reproblematizar o próprio debate sobre o espaço local, contribuindo para a valorização do outro lado da vida não coberto pelo coronelismo e a clientela, não oligarquizado, mas de grande valor para desenvolver as populações que vivem nesse largo mundo rural.
Se doravante se ampliar o caminho da colaboração entre os protagonistas maiores da reforma do mundo rural – os grupos sociopolíticos mobilizados e o governo –, outros passos certamente serão dados e virão políticas públicas cada vez mais abrangentes, como as que já se insinuam no projeto chamado de “Novo Mundo Rural”, se escoimado da débil preocupação com os conflitos dos desvalidos [4] e se esse programa terminar, pela pressão de fora do governo, alargado na operacionalização das suas metas sociais.
Rurbanização como estilo de desenvolvimento
Em suas reflexões “um tanto desordenadas” (sic) do começo dos anos 80, Gilberto Freyre revelava que a sua idéia de desenvolvimento integrado como rurbanização já tinha os seus “conceitos sociais” em Casa Grande & Senzala e em pequenos estudos que o precedem (Freyre, 1982b in 1982: 62), ali onde ele assentara sua teorização de um Brasil que vem sendo “um equilíbrio de vários antagonismos que, precisamente como antagonismos coexistentes, é que parece concorrerem para a criatividade brasileira numa cultura em que, à primitividade ainda viva, se juntam, em suas inspirações e espontaneidades, sofisticações racionalizantes. Do que permanece exemplo magnífico a música genial de Villa-Lobos” (idem: 65-66). Freyre assim continuava recuperando antigo argumento: “De vários desses equilíbrios de antagonismos – o conceito brasileiro de ‘equilíbrio de antagonismos’ é dos que mais esclarecem aparentes contradições na formação sociocultural, apresentadas em Casa-Grande & Senzala – talvez se possa sugerir que tendem a integrar-se numa abrangente condição de urbanidade – com ruralidade que venha a expressar-se em sistemática política social de alcance nacional: a de rurbanização. A de juntar-se a um constante respeito pela natureza – a parte basicamente ecológica dessa política – um arrojo de modernização a que falte esta outra intenção: o apreço pelos, por alguns sociólogos chamados, ‘passados úteis’, susceptíveis de se prolongarem em presentes valiosos e até de se projetarem em futuros adaptados a constantes nacionais. ‘Passados úteis’ que não vêm faltando ao Brasil, em momentos em que lhe tem sido preciso refrear ânimos exageradamente modernistas ou desvairadamente neófilos. Aquele furor neófilo denunciado em brasileiros dos seus próprios tempos de intelectual ainda jovem, por Joaquim Nabuco” (idem).
Nesse balanço recuperativo do conceito de rurbanização, Gilberto Freyre aludia a descrições que já fizera dos processos iniciais de constituição da formação social, realçando uma ocupação do espaço, feita por Bandeirantes ou Paulistas e por Pernambucanos ou Nordestinos, que, em sua ação “civilizadora – ou preurbanizante –, confraternizava com a natureza ou com o trópico que desvirginava”, abrindo “o espaço para o que viria a denominar-se ecologicamente Brasil” (idem). Processos esses e outros, correlatos ou posteriores mas similares, que ele relembrava como uma “antecipação rurbanizante dentro de tendências para separarem espaços urbanos dos rurais” (idem: 64). O sociólogo prosseguia esclarecendo esse cenário em que fincava o seu conceito, tornando a falar de “separações, dentro dos processos de ocupação luso-Católica de espaços, (que) não se apresentam como tendo sido sempre absolutas” (idem). Recordando outras descrições de Casa-Grande & Senzala, Sobrados e Mucambos e Nordeste, o autor tornava à formação e à modernização do país, remarcando-lhe o traço primordial: “É que a unidade de produção econômica – agroindustrial – representada pelo complexo encarnado pelo engenho de açúcar, envolveu, além de duas específicas populações – a das famílias senhoris das casas-grandes e a dos escravos das senzalas – numerosos lavradores ou moradores, residentes nos arredores das casas-grandes, vários deles compadres dos senhores de engenhos. Portanto, toda uma população de nível superior ao de puros ruralitas isolados, desde que desfrutava de vantagens civilizadoras irradiantes de casas-grandes. E essas vantagens civilizadoras tocadas de contatos de ruralitas de tipo superior – as famílias patriarcais das casas-grandes – com valores urbanos e, até certo ponto, urbanizantes de suas formas de vivência e de convivência. Mesmo porque era hábito dessas famílias passarem parte do ano em cidades” (idem).
Em um outro escrito de 1976, o próprio Freyre já relatara que sua insistência no rurbanismo como estilo de desenvolvimento procedia da década de 50, visto então nesses anos como uma solução que combinasse “o técnico ao telúrico. Ao social, além do psicológico, o cultural” (Freyre, 1976 in 1995: 163). Com efeito, no que seria o texto-chave “Palavras às Professoras Primárias de Pernambuco em 1956”, o sociólogo reafirmaria reflexões anteriores sobre o que então ele queria que fosse uma reorientação rurbana do desenvolvimento brasileiro que superasse, dialeticamente, o “imenso erro sociológico” das políticas megalopolistas que só alimentavam a cada vez maior inchação urbana acompanhada de “depauperação do interior rural” (Freyre, 1956, in 1982: 83). Ele anunciava sua fórmula de política social como uma busca “no equilíbrio, dentro dessa comunidade (chamada Brasil) complexa e já antiga e ecológica e sociologicamente diversa pelos seus vários espaços e naturezas culturais que devemos procurar transformar de elementos antagônicos em complementares – agrários, pastoris, industriais –, dos valores e estilos urbanos com os valores e estilos rurais. Mais que equilíbrio: interpretação. Compenetração” (idem: 82). Como lhe é próprio, o autor todavia está pensando em uma terceira via que iria além de uma simples procura de situações intermediárias “entre o puramente urbano e o puramente rural”. Ele queria uma “terceira situação desenvolvida pela conjugação de valores das duas situações originais e às vezes contrárias e desarmônicas, quando puras” (idem: 82).
Nesse discurso de 1956, laborando na mais completa ausência de constrangimentos e disputas políticas que envolvem os atores – seguindo o curso livre da sua ciência –, Gilberto Freyre não dá muitas indicações de como se concretizaria seu ideal rurbanizante distintas de fórmulas do tipo “Precisamos formar e desenvolver aqui uma mentalidade rurbana na acepção por assim dizer conjugal de rurbanidade” (idem); ou, no mais das vezes, faz sugestões de política social aleatórias ao argumento que extraía da obra interpretativa. Quando, naquele texto, busca direção para a sua tese culturalista de desenvolvimento rural, o autor se detém numa solução de larga maturação, a terapêutica da ação educadora. Uma práxis como a das professoras rurais de Pernambuco, a quem ele dirigia suas reflexões, seria capaz de formar, no meio rural, o “espírito conjugal rurbano”, trabalhando os seus valores “escondidos no fundo dos sítios ou no fundo dos baús, valores que os requintadamente urbanos não substituem nunca. Valores insubstituíveis como motivo de vida e fundamentos de existência e essenciais ao todo nacional” (idem: 83). O uso da “técnica ou arte missionária” na ação educativa era crucial para que “a esses valores essenciais ou, antes, existenciais – os agrários, os rurais, os telúricos – se juntem os urbanos, capazes de dar sentido mais amplo à vida, à atividade e à cultura das populações do interior” (idem). Freyre não duvidava da plasticidade dos valores urbanos e da sua capacidade de se moverem das grandes às pequenas cidades, urbanizando largos espaços rurais, “a ponto de parte deles tornar-se saudavelmente rurbana ou mista nos seus modos de ser” (idem).
Por outro lado, em sua descrição desse tipo de relação cultural campo/cidade, Gilberto Freyre também realçava, naquele texto de 1956, o movimento negativo – oposto, grave se não interditado e revertido – de esvaziamento dos melhores valores humanos de que padeciam os meios rurais, perdendo cada vez mais líderes, sugados por um “rapto social”, por uma espécie de panurbanismo, movimento que iria criar problema maior adiante, como ele dizia, referindo-se ao fenômeno do desenraizamento dos jovens recém-citadinos, para onde os levava o êxodo rural.
Há inclusive um registro posterior acerca dos atrativos “psicoculturais e não apenas econômicos” da rurbanização, feito em um daqueles textos “desordenados” do livro de 1982, em passagem na qual o sociólogo comentava a modernização da agroindústria canavieira e a crescente agropecuarização da economia agrária, deslocando o homem rural “polarizado por duas forças poderosas”: a que o expulsava do mundo agrário e a outra “que o joga(va) dentro das nossas próprias fronteiras, numa transamazônica trágica...”, movendo-o para o campo desnaturado das cidades. Então, Gilberto Freyre chamava a atenção para os “efeitos valiosamente sociais da rurbanização” na profilaxia da proletarização no meio rural, à medida que ela abria caminho para a valorização da figura tradicional do “morador”, perpassando-lhe “valores e incentivos transferivelmente urbanos ou urbanizantes que lhes reforçariam o status de gente potencialmente média” (Freyre, 1982a in 1982: 112).
Em suma, em 1956, a idéia de rurbanização era alçada do sentido hibridizante da obra gilbertiana para inserir-se no tema da civilização contemporânea de massa posta ante o “empenho de juntar ao número a qualidade”; desafio que, segundo dizia o sociólogo então, tivera resposta mais rica nos casos inglês e americano do que na experiência rival “russo-soviético”. Gilberto Freyre considerava que, em relação aos tempos do Tzar, o socialismo real havia feito enormes e rápidos progressos na condição operária urbana e na modernização agrícola e quase nada realizara para integrar o seu mundo rural ao sistema de vida “urbanita”, como haviam feito os EUA em todos os campos do cotidiano dos lavradores pequenos e médios (Freyre, 1956 in 1982: 85).
Na sua ciência normativa escassamente “materialista”– sem conectar o conhecimento a um ator sociopolítico e suas mediações leninistas ou mannheimianas, como fazia boa parte do pensamento social contemporâneo –, Freyre chegava a aludir, naquele seu discurso às professoras rurais, a um voluntarismo do tipo evangelização cultural do interior, falando da vinda, às pequenas ou a grupo de pequenas cidades, dos bens de alta cultura e eventos de grande porte (por exemplo, visitas, mesmo que esporádicas, de brasileiros ilustres, de um Villa-Lobos a um Niemeyer, de um Magalhães Júnior a um Érico Verissímo), difundindo e ajudando na formação de uma “civilização dinamicamente rurbana”. Mas essa era uma obra contínua, primariamente em mãos da professora rural, da qual Freyre, seguindo sua sociologia do traço corriqueiro, relembrava-lhe, no “tato de mulher” e na condição de “figura idealmente anfíbia” pela formação pedagógica urbana, traços essenciais para sua atividade no meio rural, atributos estratégicos para aquela tarefa de ultrapassar tanto o “sebastianismo dos velhos ainda nostálgicos do passado agrário brasileiro” quanto o “sectarismo urbanóide” dos adeptos do pan-industrialismo (idem: 89). É em tal estilo que, neste texto-chave de 1956, o sociólogo pernambucano anunciava a sua tese sobre a rurbanização, referindo-se à mudança das coisas do mundo social com o mesmo charme com que descrevia em Casa Grande & Senzala a civilização construída pelo português nas novas terras lusitanas.
Naquele seu texto de balanço do começo dos anos 80, convertendo a “tese” de 1956 em política geral, Gilberto Freyre definiria a rurbanização como “Um processo de desenvolvimento socioeconômico que combina, como formas e conteúdos de uma só vivência regional – a do Nordeste, por exemplo ou nacional – a do Brasil como um todo – valores e estilos de vida rurais e valores de vida urbanos. Daí o neologismo: rurbanos. Trata-se de uma rejeição à mística de urbanização, por um lado, e, por outro lado, ao sonho lírico de alguns de se conservarem populações inteiras dentro de formas arcaicamente rurais de vida. Numerosas populações poderiam viver com vida mista: juntando a urbanismos, ruralismos como que desidratados sem deixarem de corresponder ao apego que parece haver na maioria dos seres humanos a contatos com a natureza. Com a terra. Com águas de rios, com árvores, plantas e até matas” (Freyre, 1982b in 1982: 57). Ainda nessas suas reflexões tardias “um tanto desordenadas”, ele enumerava exemplos históricos de equilíbrio, entre um termo e outro, do que viria a ser “ecologicamente Brasil”. Dois deles: o de uma Independência monárquica e não-republicana; o de um ciclo de mineração de enclave com “um rumo peculiarmente mineiro de relações entre cidades e espaços agrestes” (idem: 66/67). E assim por diante.
Gilberto Freyre os contrastava com Brasília, que representaria o paradoxo de uma intenção, a princípio, boa: habitantes de diferentes partes do país viriam a se instalar em centro nobre e a se aliar com os candangos dos arredores da “cidade cidadíssima, como agentes de uma como sua ruralização de espaços tecnocraticamente de todo urbanizado” (idem: 65). [5] Brasília seria a síntese, lógica, do Brasil híbrido e rurbanizado. Ela, porém, se tornara no impasse de uma rurbanização desejada e construída por uma teoria de Modernismo importado dos seus planejadores. Dizendo isso, Gilberto Freyre referia-se ao projeto concebido e realizado “arbitrária e, num mau sentido, ditatorial ou faraonescamente”, feito de costas para a história da cultura brasileira, como “o maior arrojo sectariamente Modernista”. [6] Ele chegava a dizer que o maior êxito dos Modernistas da Semana de 1922 fora Brasília: “O triunfador, Juscelino Kubitschek, ao entregar surrealisticamente a construção de uma cidade a dois arquitetos esculturais: Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Essa obra-prima de escultura escultural Modernista, de todo urbano-industrial: alheia à sua ecologia, ao seu ambiente, ao seu espaço: telúricos, rurais, selvagens, agrestes, tropicais” (idem: 69).
Mas Gilberto Freyre também tinha um outro ideal de homem rurbano referido ao tempo mais contemporâneo e moderníssimo que ele via no “residente de subúrbio” da grande cidade dos EUA, país onde a suburbia se tornara “crescente mito” como uma espécie de emblema de The New American Plurality. Segundo ele registrava no citado texto de 1982, ali se modelava um tipo de homem “que não se limite (limitava) a ter casa em local suburbano, mas a possuir, junto a essa casa de residência, um mais que decorativo jardim, bastante agreste para dar um toque de ruralidade ao espaço residente, um jardim-horta, maior, onde cultive suas plantas de flores, legumes para sua alimentação, e com árvores capazes de atrair pássaros. Cresce a tendência para valorizar-se esse tipo de residente de subúrbio que, mais que um simples suburbano, seja um pequeno mas efetivo e criativo rurbano” (idem: 70). Freyre punha outros traços, tão ao seu especial gosto sociológico. Por exemplo, ele dizia que o modo rurbano de vida em subúrbio prolongaria no adulto pequenas aventuras dos dias de meninice, inclusive – estende-se ele em descrições miúdas mas sempre relevantes para o seu argumento – contatos com os pés descalços, e assim por diante. Diferente do que pode parecer, no emblema americano – acrescentava ainda o autor –, essa nova população não era majoritariamente de homens de posses, uma vez que uma terça parte dela já se constituía, em 1971, de empregados em centros urbanos. Freyre fazia a apologia desses “surbanitas” por eles estarem se formando num “laboratório so-cial” que, mesmo que ainda carecessem de todas vantagens do mundo urbano e conservassem reminiscências de algumas de suas patologias urbanas (alcoolismo, entre os mais adultos, até o uso de drogas, entre jovens), traziam em si – dizia ele em 1982 – várias vantagens. Além daquelas características positivas já apontadas nas conceituações anteriores, resumindo a nova tendência do estilo de vida, o autor punha esta outra vantagem: “E parece característico tanto em face de problemas para a defesa de vantagens, das facilidades de viver e do conviver neossuburbanita, um maior envolvimento dos residentes em solidariedades cívicas” (idem: 73).
Em um outro texto dessa época contemporânea em que reivindica o seu conceito de rurbanização como política social, Gilberto Freyre mencionava prescrições de tipo bem concretas, como o aproveitamento de recursos físico-econômicos (casos de regiões nordestinas) e também chegava a se referir a ações governamentais mais conceituadas. Dois exemplos: ele elogiava muito o programa que, então, formulara o prefeito de Curitiba, Jaime Lerner, chamado de “Comunidades Rurbanas” (reconhecendo-se nelas, o próprio Freyre as considerava “o mais objetivo exemplo, no Brasil atual, de crescimento harmônico de cidade ou de áreas, em termos, a um tempo, socioeconômicos, socioecológicos e socioculturais” (Freyre, 1982c in 1982: 15). Outrossim, ele iria admitir, nesse mesmo texto tardio, que vira no advento do regime de 1964 a “oportunidade ideal para o começo, no Brasil, de uma ampla política de rurbanização”, pressupondo ser aquele imediato pós-64 também a hora do requisito da sua tese – uma “reforma agrária viável” não ideológica – a ser levada adiante pela força do governo militar (idem: 16). [7]
Em linhas gerais, esse era o “ideal rurbanizante” freyriano de civilização brasileira, oriundo de uma idéia gestada na sociologia de transculturação da obra interpretativa, exposto como tese mais completa no discurso às professoras primárias (1956) e, afinal, retomado pelo sociólogo, no começo dos anos 80, como uma decidida orientação de política social. Vinte e cinco anos antes, naquele texto do mesmo ano da posse de Juscelino, o autor já fizera tanto alusão à Inglaterra dos anos 40 do século passado, ocasião em que alguns autores ingleses falavam da necessidade da “reabilitação da vida inglesa” ante o enfraquecimento da sua “fonte rural” sacrificada à excessiva valorização da sua urbanização naqueles tempos (Freyre, 1982a in 1982: 95), quanto mencionara a experiência norte-americana – de onde o autor recolhia o neologismo rurban, como ele próprio explicava, uma idéia “dinamicamente rurbana” criada por um norte-americano chamado Galpin (idem: 94). Aliás, registre-se ainda que, para Freyre, esse empenho de “valorização da fonte rural” de civilização lembrava, aqui, o regionalismo recifense de meados dos anos 20 do século passado, o qual, desde esse longínquo tempo, o sociólogo dizia começara a ser bem ativo no Brasil, não obstante não ter despertado suficiente interesse para ser levado na devida conta pelos construtores de Brasília.
Revolução agrária como desenvolvimento sustentado
Em registro diferente, Caio Prado Jr. também apresenta o tema agrário altamente compenetrado com o mundo urbano, com a importância de chamá-lo de ponto nevrálgico da problemática brasileira. Em seu agrarismo de grande empresa, empregados e sindicatos, o autor de A Revolução Brasileira confere à reforma do mundo rural uma espécie de qualificação econômico-construtiva, vendo-a como um verdadeiro take off do desenvolvimento de uma economia que não homogeneizara social e geograficamente o país. Ele a considerava uma grande transformação capaz de criar bases sustentadas a um industrialismo que já havia exaurido tanto a sua forma de “crescimento material especulativo e caótico” quanto o modelo de mercado urbano restrito mais contemporâneo.
Por esse seu programa, Caio Prado Jr. torna-se um autor bastante estranho no debate marxista sobre o tema das relações do campesinato com a política, tal como este ficaria consagrado na bibliografia do pré (PCB) e do pós-64 (Martins, 1981). Primeiro, porque, contracorrente do próprio campo ideológico, a interpretação caiopradiana de Brasil registra o nascimento de um país organizado de um empreendimento mercantil, sem feudalidade, uma teoria na qual o grosso dos habitantes do mundo rural aparece como uma força de trabalho mobilizada pelo plantation system como desvalidos vindos de fora. [8] Depois, porque, singularizando essa população assim formada e que, ademais, se reproduzira sob um capitalismo não-universalizador do progresso, Caio Prado Jr. constrói o seu problema – de olho no modelo clássico europeu-norte-americano – como a busca de um certo produtivismo, concebido como meio hábil para também instituir aqui seres autonômos na “generalidade do país”. Nisso retomando a equação do pensamento clássico e isebiano (“um país sem povo”), ao invés de concentrar a sua publicística na busca do colapso do capitalismo, conforme lhe prescrevia a tradição marxista-leninista.
É com esse modo “americano” – aqui vivido não por um farmer em marcha para o Oeste mas por uma população destituída de nacionalidade – que Caio Prado Jr. equacionava as mobilizações dos grupos rurais. Ele sempre reiterava que a luta pela terra – se decorrente da tese feudalista e/ou do modelo de revolução de 1848 – não sustentaria uma revolução agrária, uma vez que o que se pretendia como tal não se assentava na “dialética econômica” que estruturava o mundo rural brasileiro, cuja lógica maior estava dada pela contradição entre os monopolizadores das condições de emprego e os grandes contingentes pobres dependentes de ocupação (empregados e subempregados nos grandes setores da agropecuária) e a vultosa massa de sem-trabalho espalhada pelo território nacional.
Segundo o autor de A Revolução Brasileira, o associativismo dos empregados rurais viria prosseguir, no pós-64, o caminho abolicionista da criação do mercado de trabalho livre e dar continuidade ao industrialismo, à medida que essa retomada soerguesse a “massa da população” do velho “estatuto de trabalho e produção a serviço da empresa mercantil” e a constituísse como uma “coletividade socialmente integrada e organizada nacionalmente” (Prado Jr., 1966; 1978: 137). Mencione-se um outro trecho desse livro, no qual o historiador falava que “a inaptidão das atividades econômicas do país de oferecerem ocupação regular e adequada à força de trabalho disponível – o que aliás, embora suprido parcialmente por ocupações mais ou menos parasitárias e marginais, se faz sentir também em outros níveis e setores, mas que na população originária do campo se manifesta de maneira mais acentuada – tem suas raízes na própria feição específica e nas características essenciais de nossa economia, e se liga em última instância ao insuficiente entrosamento das atividades produtivas (que é onde normalmente se gera ou devia gerar-se o essencial das ocupações) com as atividades próprias da população engajada, ou que deveria estar diretamente engajada naquelas atividades” (idem: 154). O historiador esperava que daí surgisse um processo de autogênese que viesse a romper com aquele “círculo vicioso” a que ele se refere usando o aforismo “não temos produção porque não temos consumo, e não temos consumo porque não dispomos de um nível adequado de atividades produtivas” (idem: 158).
Por trás da linguagem e às vezes da própria ambigüidade, em A Revolução Brasileira, o historiador já não buscava no mundo rural apenas um aliado dotado de impulsos para alicerçar a revolução de “forças sociais”, como prescrevia o conceito da aliança operário-camponesa, no caso da especificidade brasileira, segundo ele, para estendê-los à “generalidade do país” através das ações trabalhistas (Prado Jr., 1964). Há, no texto de 1966, a idéia de uma movimentação agrarista cujo potencial de sociabilidade poderia se concretizar com uma estratégia hábil para tirar “consideráveis parcelas da população” do marginalismo. Caio Prado Jr. extraía do sindicalismo rural, no exemplo das greves canavieiras de Pernambuco de 1963, um modelo para pensar, no pós-64, um processo de ampliação do mercado interno que reorganizasse a economia e que pudesse, como ele sempre dizia, reforçar aquele entrosamento das atividades produtivas com as necessidades da “massa da população”. [9] Ou seja, ao invés de outras considerações ao estilo da tradição (construir a hegemonia proletária, garantir a transição ao socialismo etc.), Caio Prado Jr. referia aquela combinação rural-urbana basicamente a uma organização de tipo sindical que lastreasse todo o território, unindo pequenos, médios e grandes centros numa larga trama organizacional. [10] Isso diferenciava o agrarismo caiopradiano tanto de qualquer campesinismo de teoria revolucionária quanto de toda valorização acrítica da evolução técnico-produtiva da agricultura brasileira, marcando-o como um constructo sobre a incorporação dos grupos agrários numa ordem liberal-democrática.
Em suma, o agrarismo de Caio Prado Jr. é um reformismo pensado como revolução democratizadora ali onde a práxis da luta de classes podia ser eficaz para alterar relações de propriedade e ainda contempla uma política de colonização, em princípio, prescrita para dinamizar áreas onde aquele tipo de ação revolucionária não repercutia, por estar ali uma população escassa e/ou praticamente inexistir economia expressiva (Lênin, 1907; 1949). Ao propor, para a “generalidade do país”, uma espécie de nova Abolição à Welfare State destinada, antes que a ações de poder, a incorporar a população à economia nacional, Caio Prado Jr., no entanto, não alimentava um agrarismo de dissolução da ordem. Ele também se diferenciava dos velhos enfoques espacialistas, ao defender aquela política de colonização da sua tradição como uma “recolonização”, em regiões onde a população já estava assentada (nos interstícios entre os grandes domínios e nas regiões ocupadas, porém, endemicamente pobres), mediante a instalação da agricultura familiar, no primeiro caso, até mesmo mais como aquela alternativa de ocupação, anteriormente mencionada, para desequilibrar o mercado de trabalho a favor dos trabalhadores, e, no segundo contexto, propriamente como um mecanismo de incorporação social para erguer o camponês e os habitantes dos “grotões” brasileiros do isolamento e da vida precária.
A marcha para o oeste e a pequena produção familiar
Com efeito, em “Problemas de Povoamento e a Divisão da Propriedade Rural” (1946), em sentido parecido à crítica gilbertiana à escassez de raízes socioculturais de Brasília, Caio Prado Jr. também interpelava, nos anos 40, uma “marcha para o Oeste” pela falta de integração e homogeneização do homem rural. Extraindo o tema do “interior” de sua teoria da transição de uma formação social dependente – a colônia de produção – para uma economia com os seus próprios eixo, mercado e povo, o historiador pensava em superar o padrão de assentamento populacional histórico que trazia para o presente os “graves inconvenientes” da “exploração desordenada” do território (na qual “num vaivém contínuo, formou-se esta coletividade caótica que é o povo brasileiro”, cf. Prado Jr., 1946; 1977: 210). Em lugar da “fórmula vaga” da “Marcha para o Oeste”, ele dizia ser preciso tematizar a questão do povoamento a partir dos seus dois vetores principais: o da “dispersão”, traço qualificado, ademais, pelo tamanho do território, e, sobretudo, o da “mobilidade”, responsável pela instabilidade permanente da população. [11]
Se para formular o agrarismo não camponês Caio Prado Jr. pusera as vistas nos modernos sindicatos rurais do Nordeste de Gilberto Freyre, neste texto ele iria observar aquele “vaivém” governado pelo naturalismo dos ciclos no exemplo da economia cafeeira e na sua marcha do Vale do Paraíba para zonas adjacentes e, depois, para o Oeste. Um movimento contínuo por entre uma estrutura social cujas formas de sociabilidade não se mostravam capazes de reverter o sentido de precariedade da vida do brasileiro estabelecido a Oeste da economia urbana. A começar pela estrutura social dos “grandes domí-nios”, onde a agricultura “é um negócio, uma especulação, como seria outra atividade qualquer, comercial ou financeira” que não cria ligames à terra (idem: 216), [12] diferentemente do “verdadeiro agricultor” que, “identificando-se com ela, fazendo de sua propriedade função exclusiva de sua existência”, dela faz o “centro único de suas atenções”, incluída a vida de seus sucessores (idem: 216). Como descreve o autor, logo depois da estrutura social da fazenda, viria o seu complemento natural na figura do assalariado, igualmente dissociado da terra e tampouco sem conseguir criar uma sociabilidade estável (“...não realiza nada que não lhe seja de proveito imediato”, cf. idem: 218).
Caio Prado Jr. só vai encontrar um “elemento demograficamente estável” no pequeno agricultor, justamente para quem a propriedade não é um negócio, “mas a sua habitação, o seu lar, a sua fonte de subsistência”, constituindo com ela as suas raízes e reprodução sociais muito bem mais sólidas (idem: 225). O “progresso sensível” que aos seus olhos representava a pequena em relação à agricultura de grande porte levava Caio Prado Jr. a considerar, neste texto de 1946, a economia dos produtores familiares como a solução para o problema fundamental do povoamento – a “estabilização e fixação da população rural do país” (idem). Ele, então, também chegava a concluir pela “simples” substituição do grande domínio da fazenda pelo pequeno agricultor, [13] em termos de uma política dirigida àquele processo de assentamento, que deixaria de ser “um fenômeno espontâneo, caótico e cheio de falhas, como se está dando atualmente”, para ter, mediante o fomento da agricultura familiar, “uma evolução organizada, planejada, e sobretudo amparada e estimulada” (idem).
É assim que, à hora de pensar em “uma tal reforma agrária” (sic), Caio Prado Jr. tem em mente, então, as experiências de colonização exitosa do Sul e do Sudeste, e a elas se referirá como modelo de um novo programa para “refundir a nossa estrutura agrária”. Um programa que “já não deve ter por objetivo povoar territórios desertos” (idem), mas que, tendo o sentido da palavra de ordem da “Marcha para o Oeste”, se proponha “recolonizar” os territórios já devassados. Ao invés de uma ação de penetração mais profunda rumo ao interior – onde, como ele dizia, certamente ficam as “reservas futuras a serem oportuna e progressivamente aproveitáveis” (idem: 231) – tratava-se de levar adiante a colonização em “zonas velhas” onde já existem sistemas instalados (transportes, aparelhamento urbano, indústria, comércio etc.) e onde ela poderá se afirmar mediante processos de retalhamento das grandes propriedades e fazendas que não subsistam como tal em termos econômicos, constituindo, afinal de contas, um programa de “transferência da propriedade” como início para uma reorganização “em tais bases” da economia agrária. O autor apontava para o tema da territorialidade da vida social, realçando as virtualidades da agricultura familiar, almejando “uma população densa e estável, capaz de aproveitar todos os recursos da terra e viver uma vida digna da espécie humana. Precisamos encerrar definitivamente a nossa secular e tão onerosa caça ao húmus” (idem: 231). Caio Prado Jr. quer interditar aquela mobilidade da civilização brasileira que, aliás, Freyre registrara em seu livro Nor-deste (1937), assim escrevendo a propósito da marca primordial: “Durante o período decisivo da formação brasileira, a história do Brasil foi a história do açúcar; e no Brasil, a história do açúcar, onde atingiu maior importância econômica e maior interesse humano, foi nessas manchas de terra de massapé, de barro, de argila, de húmus” (apud Dantas, 2000), húmus em busca do qual também tinha se movido o café do litoral para o Oeste.
Longe da miragem nas grandes obras em zonas pouco povoadas, autocentrado na questão da qualidade de vida, Caio Prado Jr. queria que se voltassem as energias para erradicar as outras conseqüências, além da material, que a baixa densidade demográfica trazia para o país. Pessimista, a preocupação de Caio Prado Jr. àquela época era a de que, em seus mais de 450 anos de existência (1946), a “população nômade” brasileira não só ainda não realizara algo de ponderável, como apresentava “na maior parte do território já ocupado e explorado” sinais de “senilidade” (“com exceção de algumas aglomerações urbanas, e raríssimas zonas rurais, o resto do país é um triste testemunho de ruínas e de decadência precoce. Resultado necessário e fatal dos nossos efêmeros períodos de prosperidade. Mesmo São Paulo, de cujo progresso costumamos nos orgulhar tanto, não foge à regra”, cf. Prado Jr., 1946; 1977: 213). Ele punha as vistas no “povo nômade” daqueles tempos, o qual, antes de tudo, era um “povo-disperso”, no sentido de uma população que todavia não conseguira se estabelecer, plenamente, do ponto de vista produtivo-social, cultural e político, inclusive no litoral. Bastava lembrar o caboclo e o seu isolamento como símbolo da débil sociabilidade do homem brasileiro, “freqüente até nos arredores de grandes centros, como São Paulo” (idem: 211).
Esses são alguns traços do modo como a conexão rural/urbana aparece em Caio Prado Jr.. Diferente de Gilberto Freyre, em lugar de uma interpelação de um rural pretérito-telúrico, a se transformar sob influxo de um urbanismo transmigrado num todo ecologicamente equilibrado e novo, o historiador interpelava a “economia agrária” a partir de um próprio moderno que ela mesma continha – o seu povo de assalariados e semi-assalariados –, fazendo muitas alusões aos “alcances profundos” da dimensão agrária que tais grupos trariam para o que, como os pensadores dos anos 50, ele também chamava de “revolução brasileira” e definia como um processo formado pelas reestruturações completas da economia e da vida política nacional.
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É dessa dupla perspectiva reformista que o historiador descreve o cenário primordial do mundo não urbano, referido a axiomas do pensamento social, o principal e primeiro deles o de que o maior óbice à “construção de uma nação moderna” era a carência endêmica da população, de grandes proporções no meio rural. A idéia caiopradiana de integração das zonas rurais de grande miséria pressupunha, em primeiro lugar, o adensamento do progresso e das reformas e, em segundo lugar, o estímulo a processos de complexificação da vida social, nisso, aliás, recebendo influxo de Gilberto Freyre, já expressamente citado em Formação do Brasil Contemporâneo, o qual voltava a aparecer na valorização da economia familiar, feita no texto de 1946, como política estratégica para áreas de escasso dinamismo e de vida precária de suas populações.
Essa filiação a Gilberto Freyre pode estar insinuando aproximação, mesmo formal, entre o sociólogo Pernambucano e o marxista Paulista. A conterraneidade díspar não impede conjeturar sobre outros eventuais pontos de contato no tema comum da inter-relação rural/urbano, Freyre propondo o conceito de rurbanização hibridizante, inclusive como uma política nacional, e Caio Prado Jr. insistindo em uma nova Abolição agrarista, incluída nela aquela sua noção de recolonização do interior mais próximo. Distantes nas perspectivas das suas obras, pelos seus pontos de partida, métodos e objetivos últimos diversos, aqui eles estão reunidos mais numa lembrança do que seriam os seus desenvolvimentismos sustentados, registrando-se algumas sugestões que estariam a oferecer ao tema do território. Um, cultivando-o na origem acuçareiro-nordestina da formação social como uma fonte existencial, o outro, vendo-o como lugar de um agrário de ponta moderna capaz de uma inovação social generalizável pela força de trabalho ao largo do país. Tema da territorialidade que, de alguns anos para cá, está tendo novo equacionamento, trazido pelas riquíssimas discussões sobre a ecologia e a sustentabilidade, sobre a nova ruralidade e a descentralização, sobre a política e a cultura cívica nos pequenos e médios centros. Esse realce no território se põe na ordem do dia como conseqüência da cada vez maior valorização do cotidiano nos negócios das populações no espaço local, um local já não mais visto tanto ao modo de “sedimentações passivas” oligarquizantes e/ou de “passados úteis” mobilizáveis para refuncionalizações, mas levado em conta por ser algo novo, reflexo do franco processo de democratização da vida regional brasileira.
Referências bibliográficas
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Notas
[1] Referindo-se ao sentido de “democratização social” da miscigenação na sua explicação do Brasil pela “formação patriarcal”, o autor se dizia “apenas acrescentando a um sentido puramente material, marxista, dos fatos, ou antes, das tendências, um sentido psicológico. Ou psicofisiológico” (Freyre, 1931/33; 1961). Para achar a “civilização brasileira” na casa-grande – lembrando o deep south americano – Gilberto Freyre se interessava mais na “estabilidade agrária e patriarcal” do Norte do que no movimentismo das bandeiras sulistas. Simpático às reações anticientificistas de certo “neo” ou “pós-marxismo” da época, em meados dos anos 50, Freyre dizia que a “revolta” de Picasso a “aspectos da ciência Moderna” era o exemplo a ser seguido numa procura, na Antropologia e nas ciências sociais”, de uma “metodologia unitária” que também levasse em conta o estudo do comportamento humano, “que trans-bordasse em reinterpretações artísticas e filosóficas do Homem” (Freyre, 1957; 1961).
[2] Caio Prado Jr. se põe no ponto de vista da particularidade brasileira e se debruça sobre uma formação social que não se constituíra como um processo de criação no próprio povo do mercado para sua produção. Aqui, diferente do industrialismo clás-sico, o mercado se tornara questão central, tal como a produção fora para a Economia clássica e para Marx. Segundo ele, o fato merecia uma teorização específica, crucial para se poder pensar os “países coloniais”. Daí, o tema da nacionalidade-população-mercado interno ocupar todo o seu marxismo de pensamento social (Santos, 2001).
[3] É curiosa a estruturação do livro mais contemporâneo de Gilberto Freyre, chamado Rurbanização: Que é?. O próprio autor comenta a pouco “correta” ordenação dos materiais do volume, dizendo haver nele muitas “repetições”, inclusive o reaparecimento de artigo bem anterior servindo de base para uma introdução geral. Há indícios de textos compostos com remissões e passagens de outros mais antigos. Quanto a Caio Prado Jr., também se pode observar não poucas aporias em suas dissertações agrarista e urbana (Santos, 2001).
[4] Evocando essa preocupação habermasiana em relação ao abandono dos assentados nas diretrizes propostas para a consolidação da área reformada – sua retirada da proteção pública –, foram tão imediatas e fortes as reações ao anúncio da plataforma do programa que não deixaram vir à tona suas outras implicações, incluídas aquelas conseqüentes à incorporação das últimas discussões da bibliografia especializada, já presentes na primeira versão do texto.
[5] Freyre continuava assim o trecho acima: (esse) “Processo em situação dos brasileiros das chamadas cidades satélites, tem sido notavelmente abrasileirante, ao mesmo tempo que ruralizante de excessos urbanóides. Daí Brasília estar atingindo um ponto ideal de equilíbrio entre sua modernidade urbana e a sua circunstância não só rural como quase saudavelmente selvagem” (Freyre, 1982b in 1982: 65).
[6] E explicava a adjetivação: “A Semana de Arte de São Paulo não foi toda de arrojos sectariamente Modernistas. Teve arrojos de uma espontaneidade juvenil na sua revolta a convenções academicamente literárias, a purismos gramaticais estagnantes da Língua portuguesa, a rotinas nas artes – na música, na pintura, na escultura – que vinha impedindo a cultura brasileira de ser criativamente nacional em vez de, nas piores maneiras de ser sub, subeuropéia e subacadêmica” (idem: 68).
[7] Gilberto Freyre registrava que fora pelo “lamentável recuo” do general Castelo Branco ante aquele requisito de “reforma agrária” para a política rurbanita que ele próprio recusara os altos cargos que o regime de 1964 lhe oferecera (ele mencionava os de ministro da educação e de embaixador junto a Unesco). (Freyre, 1982c in 1982: 16).
[8] Essa interpretação tem como conseqüência certa desmistificação da idéia marxista de classe universal, como se pode ver nas descrições que Caio Prado Jr. faz dos grupos subalternos nos livros de 1933 e 1942, e ainda em várias referências à presença deles na vida política de 1945 e do pré-64 (Santos, 2001).
[9] Aquelas greves provocaram três ordens de efeitos na região de Palmares: a) uma “verdadeira transmutação” nas condições de vida dos trabalhadores rurais; b) com os ganhos salariais, a região dinamizara-se (maior movimento comercial etc.) e c) ali também já estaria em curso aquilo que ele chamava de “efeito econômico” da pressão das lutas reivindicativas dos empregados, encarecendo a força do trabalho, abrindo ainda mais a propriedade fundiária ali onde baixa a produtividade. Este acesso à terra, por sua vez, repercutiria no mercado de trabalho, também favorecendo os trabalhadores (Prado Jr., 1964).
[10] Caio Prado Jr. conferia muita importância às organizações sindicais e associações similares em médios e pequenos centros urbanos (para a “educação”e “habilitação” dos trabalhadores rurais). Ele chamava a atenção – “num país onde a distribuição das atividades industriais e as concentrações e núcleos operários” têm uma estrutura “ganglionar”, uns praticamente separados dos outros – para a “grande urgência” de se ir reduzindo os “vazios intermédios a fim de dar maior consistência ao todo” (Prado Jr., 1966; 1978: 179).
[11] Essa mobilidade tivera direções fundamentais: primeiro, as suas rotas históricas, do Nordeste para o Norte, do Nordeste para São Paulo e de São Paulo para o Oeste; depois, as migrações inter e intra-regionais e locais. Não eram deslocamentos de pequeno vulto: “Multidões de trabalhadores transferem-se de uma para outra fazenda, de uma para outra região, deixando para trás suas casas, suas culturas, suas atividades, para recomeçar tudo noutro lugar. E é por isso que nunca chegam a realizar nada de sólido e definitivo” (Prado Jr., 1946; 1977: 211).
[12] Essa economia de fins “essencialmente mercantis e imediatistas” só poderia cultivar o desleixo e até mesmo levar ao abandono da terra, quando os seus proprietários não conseguissem passar adiante as fazendas como ‘títulos ao portador” (o exemplo posto pelo historiador são os anos imediatamente anteriores a 1929 em São Paulo). (Cf. idem).
[13] O próprio autor assim esclarecia o ponto: “Digo ‘simplesmente’, porque de fato não há aí propriamente inovação. A pequena propriedade já existe entre nós; em certos setores é mesmo um elemento muito importante da nossa estrutura agrária; preconizar a difusão dela não constitui pois plano teórico e abstracto, uma especulação sem base na realidade” (idem: 226).