Estudos Sociedade e Agricultura

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Angela Duarte Damasceno Ferreira

Processos e sentidos sociais do rural na contemporaneidade: indagações sobre algumas especificidades brasileiras


Estudos Sociedade e Agricultura, 18, outubro 2002: 28-46.

Resumo: (Processos e sentidos sociais do rural na contemporaneidade: indagações sobre algumas especificidades brasileiras). O presente texto procura descrever os processos e sentidos sociais do rural na contemporaneidade, sistematizando aspectos de tais processos e sentidos nos países de capitalismo avançado, a partir de literatura sobre a questão, e discutindo como o rural do Brasil acompanha as tendências destes países e guarda especificidades. Mostra como se pode pensar o rural brasileiro como territórios em recomposição nos quais os atores sociais constroem estratégias de reprodução e permanência diversas. Analisa a crescente diversificação ocupacional e os diferentes usos e funções dos espaços rurais no país, e discute como essas heterogeneidades não minimizam o fato de o rural no Brasil ter sua feição e dinâmica dadas principalmente pela agricultura.

Palavras-chave: novas ruralidades; contemporaneidade; territórios rurais; agricultura.

Abstract: (Rural Processes and Social Meanings in the Contemporary World:  Questionings on Brazilian Specificities). This paper looks at the processes and social meanings of the rural in the contemporary world. First it systematizes aspects of these processes as they occur in advanced capitalist countries, as related in the literature. It then goes on to discuss how rural processes in Brazil both reflect those tendencies and manifest specificities. It shows how the Brazilian rural milieu can be thought of as "territories in re- composition", where farmers - the main social actors - construct diverse strategies for reproduction and continued rural residence. It looks at the growing occupational diversity as well as the different uses and functions of rural space, discussing how new heterogeneity does not undermine the fact that the characteristics and dynamics of the rural in Brazil continue to spring primarily from agriculture.

Key words: news ruralities; contemporary world; rural territories; agriculture.

Texto apresentado no XXIX Encontro Nacional de Estudos Rurais e Urbanos Ceru/USP, realizado nos dias 27 e 28 de maio de 2002.

Angela Duarte Damasceno Ferreira é professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).


No final dos anos 60, nos países de capitalismo avançado, e no início da década de 80, no Brasil, a maioria das construções sociais sobre o rural sugeria o seu desaparecimento acelerado. As idéias da urbanização societária (Lefebvre, 1970a e 1970b) e da artificialização da agricultura – as quais liberavam a produção de alimentos da sua base natural-rural e de seus componentes e agentes arcaicos – constituíam o cerne do questionamento que até então se fazia aos estudiosos do mundo rural: les ruralistes, sont-ils en quête d’objet? [1]

A idéia do desaparecimento do rural não era estranha aos quadros teóricos das ciências sociais: de Spencer a Durkheim, de Weber a Marx, o pensamento clássico pressupunha a hegemonia do industrialismo e da urbanização na civilização moderna; a subs­tituição da comunidade pela sociedade e da solidariedade mecânica pela solidariedade orgânica; a racionalização do mundo como sentido dos processos sociais em curso e a generalização do modo de produção capitalista industrialista e urbana em escala planetária. Mesmo que a espacialização rural-urbana não constituísse o elemento central dessas formulações, estava implícito o suposto segundo o qual o novo mundo era urbano e o velho, rural, uma diferenciação obviamente pensada em função dos espaços que historicamente serviam de base aos modelos societários em expansão e em decadência.

Quando, nos últimos 30 ou 40 anos, as teorias do desaparecimento do rural se desenvolveram, os processos de modernização da agricultura e as mudanças do mundo rural haviam atingido o seu auge. Vários sentidos vinculavam-nas à idéia de declínio:

Ao lado desses sentidos de esgotamento, a idéia de generalização da cultura urbana desqualificava a pertinência do rural como espaço portador de singularidades.

Como categoria analítica, o rural se esvaziava de significado e a Sociologia Rural era questionada como disciplina, já que ela parecia evocar, como seu objeto, uma sociedade à parte, um fenômeno anacrônico diante da integração da agricultura à indústria, do fim do campesinato e da urbanização crescente do campo. [2]

A partir da década de 90, a literatura das ciências sociais especializadas passou a apontar reiteradamente as potencialidades do rural como espaços para reformas societárias de cunho integrativo e como base para se repensar a qualidade de vida na contemporaneidade. O fundamento dessa nova visão residia no fato de que, em diversos países, registravam-se processos de recomposição dos espaços rurais (retomada do crescimento demográfico, diversificação ocupacional, aumento na oferta de trabalho etc). Mais do que isto: a nova visão refletia o fato de que se estavam organizando, em vários países, associações e movimentos sociais de base rural que propunham uma forte crítica às políticas rurais e agrícolas gestadas conforme o modelo de desenvolvimento modernizador; movimentos sociais que evidenciavam sua disposição para se tornarem atores coletivos da revitalização do rural. [3] As ciências sociais passaram a analisar esse fenômeno falando de novas rura­lidades, renascimento rural, reconstrução da ruralidade, novo rural, emergência de novos atores sociais rurais, espaços rurais como territórios do futuro. [4]

Mas se tal literatura tem elementos em comum, ela não deixa de repor controvérsias. De fato, as definições do rural e da ruralidade, as construções de suas delimitações, apesar da renovação do quadro analítico para dar conta dos traços da sociedade contemporânea, ainda estão influenciadas pelas posições teóricas do debate clássico, as quais podemos resumir, esque­ma­ticamente, assim:

1 – A posição da homogeneização: o rural como uma realidade e constructo social em declínio, com papéis delimitados por um mundo urbano em expansão. A ruralidade é um conjunto de representações que fazem valer tais papéis, neles integrando identidades rurais em transformação. Assiste-se ao fenômeno da urbanização do campo e a tese do contínuo rural-urbano é refeita para dar sentido à urbanização geral num território concreto.

2 – A posição da reconstrução e ressignificação: o rural é um espaço de vida e trabalho, uma rede de relações sociais, uma paisagem ecológica e cultural e representações específicas de pertencimento, de desejo ou projetos de vida. Esse conjunto de características materiais e imateriais apresenta uma sin­gularidade e uma dinâmica próprias, mesmo se articuladas integralmente ao “mundo urbano” no âmbito de um território concreto ou imersa nos processos, redes e símbolos mais gerais da urbanidade. Uma dinâmica portadora de desenvolvimento, como diz Marcel Jollivet: “O desenvolvimento, longe de passar pela ignorância de um rural fadado a desa­parecer e a se dissolver no urbano, supõe duas dinâmicas paralelas, uma rural, outra urbana, complementares e se construindo e desconstruindo uma à outra” (Jollivet, 1997: 10). Não se trata de sociedades rurais de caráter tota­lizante; não se trata de autonomia do rural em relação ao urbano: o modelo analítico propõe a interdependência, a comunicação, a com­ple­mentaridade. É a essa percepção que se encadeia a possibilidade de uma reconstrução da ruralidade como portadora de mudanças societárias.

Embora simplificada, a sistematização dessas duas posições permite entender a controvérsia em torno da qual atualmente gira uma parte significativa da análise da ruralidade.

No entanto, apesar de tal controvérsia, nos países de capitalismo avançado, as análises do rural contemporâneo têm evidenciado algumas características e tendências geralmente reconhecidas. Apresentamos, a seguir, um resumo dessas análises:

A partir desse olhar sobre as ressignificações do rural nos países de capi­talismo avançado, coloca-se a questão de se procurar saber que similitudes existem entre aquelas tendências e as que ocorrem com o desenvolvimento do rural no Brasil contemporâneo. Pode-se pensar, aqui entre nós, em reconstruções de ruralidades? Se elas estão em curso, que processos sociais as caracterizam?

Para prosseguir com esse debate, que vem se tornando relevante no Brasil, algumas informações sistematizadas por nossos estudiosos, além de outros dados do IBGE, permitem uma comparação do nosso rural com o das sociedades de capitalismo avançado acima referidas. Esse cotejo conduz a algumas considerações preliminares que precisam ser corroboradas com pesquisas regionais e locais. Sugerimos essa comparação valendo-nos dos seis itens que se seguem.

 

Características do rural brasileiro

No Brasil, a definição administrativa do que é rural incorpora tudo aquilo que não é uma aglomeração dotada de alguns serviços. Os estudos de Wanderley (1997, 1999 e 2001) e de Veiga (2002) demostram os equívocos desse tipo de definição. Independente do tamanho, todas as municipalidades brasileiras compõem-se de uma parte considerada urbana – a sede do município, mesmo se ela tiver uma população bastante reduzida – e de uma área definida como rural, caracterizada por habitações dispersas. Apenas um exemplo: se uma localidade muito pequena é promovida à categoria de município, ela se tornará necessariamente uma aglomeração com estatuto urbano, mesmo se apenas possuir 1.000 habitantes. Assim, um pequeno vilarejo é considerado espaço urbano, mesmo que não ofereça nenhuma experiência urbana a seus habitantes (Wanderley, 1997), se pensarmos em tudo que a literatura sociológica definiu como tal. Seus habitantes são contados como urbanos nos recenseamentos brasileiros. Esse procedimento faz com que o Brasil seja visto muito mais “urbanizado”, com mais de 80% da população vivendo em cidades, do que a maioria dos países europeus, que têm outras definições para distinguir o rural do urbano (nos quais unidades administrativas mais amplas, incluindo pequenas cidades, são consideradas rurais segundo critérios demográficos e outros).

Considerando as ambigüidades daquelas definições do rural e a subestimação que acarretam da sua importância demográfica e social, algumas tendências e características do rural e da agricultura brasileira podem ser identificadas:

1 – Pelos critérios e dados censitários, a população rural diminui pro­gressivamente no Brasil, mas os dados do PNAD mostram variações positivas entre 1998 e 1999 (32.321.722, em 1998, e 32.585.066, em 1999). Uma análise mais atenta dos dados indica, de um lado, a diminuição da fecundidade rural e, de outro, um lento acréscimo da população rural com 10 anos ou mais a partir de 1992 (Graziano da Silva e Campanhola, 2000). Utilizando outros critérios, os estudos de Veiga (2002) mostram que, em metade dos municípios com características rurais, não houve evasão populacional entre 1991-2000, notando-se, em um quarto deles, aumento populacional bem superior ao que ocorreu no Brasil urbano. [5]

2 – Diminuem as migrações inter-regionais que foram muito importantes nas décadas passadas, quando, na sua maioria, se constituíam em êxodo rural (ou êxodo de pequenas cidades). Entre 1998 e 1999, há um saldo migratório negativo em todas as regiões do país, com exceção do Centro-Oeste.

3 – Registra-se um contínuo decréscimo no número de estabelecimentos rurais. No entanto, em 1996, tínhamos aproximadamente cinco milhões de estabelecimentos que empregavam quase 18 milhões de pessoas, o que não é um número negligenciável (cf. Censo de 1995-96).

4 – A população ativa ocupada na agricultura decresceu de forma persistente entre 1992 e 1996, mas se estabilizou e inclusive experimentou um pequeno aumento entre 1996 e 1999 (PNAD).

5 – A maior parte da população ativa na agricultura brasileira é constituída por agricultores que trabalham com sua própria família. Apesar de todas as imprecisões do conceito, principalmente do modo como ele é utilizado no Brasil atualmente, a agricultura familiar é expressiva quanto ao número de estabelecimentos e extremamente minoritária quanto à superfície total dos estabelecimentos (os diferentes tipos de grandes propriedades e grandes estabelecimentos continuam detendo a maior parte da área ).

6 – Por fim, é necessário indicar que, apesar das discrepâncias regionais ou entre produtos, o modelo produtivista que se generalizou no país não homogeneizou os padrões tecnológicos e organizacionais da agricultura bra­sileira no mesmo nível dos da agricultura de países de capitalismo avançado (nos quais também existem heterogeneidades). A agricultura tradicional per­siste em muito maior escala no Brasil.

 

O rural e a agricultura

Os estabelecimentos rurais ainda são importantes em números absolutos. Se tomamos os dados de ocupação, vemos que, da totalidade da população ativa empregada no Brasil, quase 25% se concentram na agricultura (PNAD, 1999). A maioria da população ocupada no meio rural, todavia, está trabalhando na agricultura – 71% contra 29% em outras atividades (idem). Segundo esses dados do PNAD organizados por Graziano da Silva e Campanhola (2000), entre 1992-1997, a tendência é de um aumento da população rural não agrícola, fenômeno que precisa ser analisado qualitativamente nas diversas regiões para que se possa entender o seu significado como processo social em desenvolvimento.

Ainda segundo aqueles mesmos dados, a pluriatividade cresce entre os agricultores. Mas permanece amplamente minoritária: apenas 6,8% da população ativa ocupada na agricultura possuem uma atividade secundária e mais de 64% dentre os pluriativos desenvolvem uma segunda atividade também na agricultura. Se tomarmos o total dessa população que trabalha na agricultura, somente 2,3% possuem uma atividade não agrícola (Graziano da Silva e Campanhola, 2000). [6]

A nova paisagem e os processos produzidos pela integração de atividades não agrícolas nos estabelecimentos rurais e pela pluriatividade dos agri­cultores e seus familiares o aumento de uma população rural não agrícola e de aposentados que moram no campo, trazem um fenômeno de diversificação no meio rural. No entanto, não se pode pensar o rural brasileiro nos termos em que é pensado nos países de capitalismo avançado: nossa realidade não dá suporte para uma representação do rural como predominantemente não agrícola.

 

O rural como residência e lugar de lazer para os citadinos

Essa outra face do rural é uma tendência em expansão, porém ainda restrita. O rural e as pequenas cidades passaram a ser espaço residencial para uma faixa da população que trabalha nos centros maiores e também para apo­sentados. No entanto, por uma questão de mobilidade cotidiana e de acesso a serviços, esse fenômeno se restringe às áreas mais próximas das grandes e médias cidades. A precariedade do nosso meio rural constitui um freio para que se consolide como espaço residencial nos moldes das experiências eu­ropéias e norte-americanas.

Em algumas regiões, cresce, nos espaços rurais periurbanos, o número de citadinos que se lançam em empreendimentos agrícolas ou rurais com fina­lidades não agrícolas, desenvolvendo um contínuo intercâmbio com as cida­des e otimizando as oportunidades disponíveis nos dois espaços (Karam, 2001; Corona, 1999; Darolt, 2000).

Já é visível entre nós a utilização do espaço rural como lugar de lazer e como paisagem que tem um valor em si, uma certa “amenidade” que pode ser dinamizadora do renascimento de localidades não muito distantes dos grandes centros urbanos ou daquelas próximas de espaços particularmente dotados de recursos naturais atraentes. Trata-se de um processo incipiente que enfrenta vários obstáculos, como a ausência de boas estradas e serviços que propiciem estrutura de base às atividades turísticas no meio rural e em pequenas cidades. Mas já se identificam iniciativas de valorização de paisagens culturais específicas – étnicas, de valor histórico regional (Made, 2001) e de revitalização da cultura popular local (Abib, 2002) – que dina­mizam os municípios onde estão sendo desenvolvidas.

 

O rural e a questão ambiental

Os agricultores e outros rurais estão participando crescentemente de debates ambientais que concernem à natureza que lhes é próxima. No entanto, no Brasil, a legislação ambiental é menos restritiva ao uso das áreas rurais situadas fora de espaços de preservação ambiental e/ou menos aplicada.

Em algumas regiões muito modernizadas ou com um número considerável de criações industriais, verificam-se problemas graves de erosão e poluição da água que têm despertado a preocupação em encontrar alternativas para os padrões produtivos predominantes.

Em áreas periurbanas, os problemas da água já mobilizam governos municipais e estaduais, ONGs, associações de produtores agrícolas, de moradores, Conselhos de Desenvolvimento Rural e outras entidades. Elas buscam formas coletivas de uso e preservação dos recursos, tanto no que se refere à poluição industrial e de origem agrícola, como no que diz respeito ao lixo e resíduos sólidos de esgoto.

Também as várias experiências de gestão e preservação dos recursos florestais colocaram os agricultores e os rurais no âmago da discussão ambiental (Probio, 2002; Zanoni et ali, 2001), contrapondo experiências em que os agricultores são diretamente envolvidos nas políticas ambientais com aquelas em que a postura preservacionista é imposta pela lei e pela vigilância policial.

Uma mudança interessante a se observar é aquela que ocorreu no discurso e na prática do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra: com contradições e ambigüidades, hoje a questão ecológica se tornou tema de discussão programática desse movimento social. Embora originalmente distante das preocupações ecológicas, o MST vem crescentemente incor­porando os debates mais gerais contra a agricultura moderna e tem en­corajado os seus militantes a adotar práticas agrícolas menos agressivas e mais conservacionistas do solo e recursos naturais (Giuliani, 1999; Amaral et ali, 2002). O Jornal Sem Terra juntou-se à campanha contra os transgênicos, na qual discutiram a dependência em relação a padrões tecnológicos de produção agrícola não controlados pelos agricultores (Oliveira, 2002). A conversão dessas posturas em práticas agrícolas ecologicamente adequadas está sendo construída no âmbito do movimento, processo que poderá ser aprofundado à medida que políticas públicas as incentivem. Mas, como diz Giuliani (Giuliani, 1999: 1), “se um desenvolvimento sustentável concreto só pode resultar da mobilização e da participação e não de decreto ou de fórmulas predeterminadas, o MST desempenha um importante papel na sua concepção e realização”.

Embora em menor escala que nos países europeus, o modelo produtivista começa a ser questionado no Brasil. O movimento da agricultura alternativa apresenta uma grande vitalidade e repousa no crescimento do número de consumidores preocupados com a qualidade dos alimentos. No entanto, o perfil de renda da população urbana constitui ainda um freio para a generalização dessa expectativa de consumo: as preocupações ante a qualidade não ultrapassam a questão central do próprio acesso à alimentação.

 

Os agricultores e suas estratégias de reprodução

O rural brasileiro é perpassado pelas diversas estratégias dos seus principais atores – os agricultores – para permanecerem neste espaço social. [7] Trata-se também de um rural dinamizado por movimentos sociais que propugnam a volta à terra, tanto para os agricultores que não a possuem como para os migrantes rurais nas cidades, de primeira, segunda e terceiras gerações (aqueles que, segundo a adequada formulação de Maria de Nazareth B. Wanderley, “nunca entraram nas cidades apesar de terem saído do campo”). [8] Um rural onde os agricultores vêm pondo em prática estratégias de diversificação de seus estabelecimentos, de pluriatividade, de associativismo, de agroindustrialização em pequena escala, enfim, estratégias de valorização das oportunidades que o espaço local e a região oferecem para viabilizar sua reprodução tanto como agricultores quanto como rurais.

O caráter cada vez mais grupal e coletivo dessas estratégias, gerando uma apropriação das especificidades do espaço rural para seu uso, permite pensar em novas territorialidades em construção. Essa consideração nos remete à idéia de território, noção amplamente empregada nos estudos rurais e urbanos atuais. Em uma de suas vertentes, ela teve suas origens teóricas na análise do desenvolvimento socioeconômico interligada à base espacial e deu fun­damento ao conceito de desenvolvimento territorial (Veiga, 2002). Nessa perspectiva, a idéia de território tem sido associada à noção de capital social (Abramovay, 2000) para significar a trama social do espaço ou ambiente que desempenha um papel relevante tanto no desenvolvimento rural como em outros processos de desenvolvimento econômico e tecnológico.

Em outra de suas vertentes, origina-se de reelaborações recentes da geografia [9] (Santos et ali,1996) para dar conta de novas relações sociais espacializadas. O território é pensado como lugares contíguos e lugares em rede que contêm simultaneamente funcionalizações diferentes, sejam elas complementares, divergentes ou opostas. A possibilidade, no entanto, desse território conter e criar solidariedades está posta na contemporaneidade (idem). Aqui está implícita a idéia de apropriação e uso dos recursos – naturais, sociais, tecnológicos, organizacionais, identitários – que os atores sociais constroem nessa base espacial que também é um conjunto de relações sociais articuláveis em níveis mais amplos (idem: 16).

 

Territórios do futuro: [10] as potencialidades e singularidades do rural brasileiro

A literatura que analisa as diversas formas de reivindicação, luta e or­ganização, bem como as novas propostas produtivas dos agricultores e sem-terra, tem realçado os esforços dos agricultores para viabilizar sua per­manência no rural e na agricultura. No Brasil, a atividade agrícola em geral é menos regulamentada pelo Estado do que na Europa e na América do Norte, e as ações governamentais de apoio à agricultura familiar também são mais restritas. No entanto, o espaço para iniciativas e o espectro de pos­sibilidades são mais abertos, ao contrário dos países de capitalismo avançado, nos quais os sindicatos, as organizações municipais e o Estado (além dos organismos li­gados aos mercados comuns regionais) regulamentam mais os usos do espaço e a produção.

 A ampliação das funções e usos do meio rural aqui também está em desen­volvimento, embora suas perspectivas não prescindam de políticas públicas de apoio às iniciativas dos agricultores e outros grupos rurais.

No Brasil, a perspectiva de se pensar o rural como território do futuro é de­monstrada de forma exemplar pela mobilização dos sem-terra e pelos assentamentos rurais que evidenciam sua potencialidade para uma política de combate à fome e à exclusão social.

Há uma revitalização rural em curso, mesmo que desigual em diferentes territórios. Certas regiões passam por processos contínuos de exclusão e marginalização, ao passo que outros territórios rurais detêm chances de trabalho, de cultura e sociabilidades que são cada vez mais valorizadas.

As considerações precedentes sugerem algumas comparações entre o rural brasileiro e o rural hoje em reconstrução nos países de capitalismo avançado. Nestes países, o rural é considerado dissociado da agricultura, embora configurado com a agricultura; e visto, também, como pluriativo e como espaço residencial para não-agricultores; é revalorizado como espaço de lazer, paisagem e como centro dos embates em torno de questões ambientais.

Já no caso brasileiro, a agricultura é que define o espaço rural. Parafraseando Hugues Lamarche (2000), pode-se dizer que aqui o rural se define pela agricultura, mas não apenas por ela. Os agricultores brasileiros estão pondo em prática uma grande diversidade de estratégias de reprodução social – entre elas, a luta pela terra – que dão certo sentido à nova ruralidade em cons­trução no país. Os demais processos observados naqueles países também existem no Brasil, mas aqui ainda são incipientes. Sua existência e pers­pectivas de expansão não permitem, no entanto, alimentar a hipótese de uma urbanização generalizada do território, nem de uma homogeneização dos modos de vida e das culturas dos espaços, o que inclusive não ocorreu na maioria dos países de capitalismo avançado. Um fato que exemplifica a complexidade dos processos de diversificação ocupacional no meio rural e seus sentidos múltiplos é a pluriatividade dos agricultores, que freqüentemente representa uma estratégia de reprodução do estabelecimento agrícola e da família ou parte dela no espaço rural, otimizando as opor­tunidades que o território disponibiliza.

Temos no Brasil uma ruralidade em reconstrução sob um processo complexo, não unidirecional, e que se revitaliza na sua complementaridade intrínseca com o urbano e que ainda carece de análises, estudos locais e regionais acerca de suas singularidades.

 

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Notas

[1] Os ruralistas (estudiosos do rural) estão procurando o seu objeto? Esta questão foi lembrada por Marcel Jollivet para indicar a visão corrente naquela época sobre a tendência ao desaparecimento do rural como espaço e sociedade específicos (Conferência de abertura do Seminário Agricultures et ruralités au Brésil-Nanterre, Universidade de Paris, nos dias 12 e 13 de junho de 2001).

[2] Essa era uma posição bastante generalizada. Os que percebiam as singularidades do rural continuaram validando a Sociologia Rural como um ramo da Sociologia que utilizava conceitos e métodos mais gerais para apreender tais especificidades e contribuir para o avanço da análise sociológica. Ao analisar, por exemplo, a tradição da Sociologia Rural como disciplina, Jollivet (Jollivet, 2001: 9) afirma: “A Sociologia Rural é apenas um ramo da Sociologia Geral, aplicando ao estudo dos fatos sociais rurais as teorias e métodos daquela, põe em relevo aspectos negligenciados pelas outras ciências sociais e permite sua compreensão do ponto de vista sociológico; inversamente, enriquece as teorias e os métodos da Sociologia Geral pela sua experiência particular de contato com a realidade social rural.”

[3] A Conféderation Paysanne, da França, é emblemática nesse sentido: ao reivindicar sua condição camponesa e pertencimento à região e ao local, contestou o sindicalismo tradicional e as políticas agrícolas e de desenvolvimento rural vigentes (Conféderation Paysanne, 1990). Ela se articulou a outras organizações de agricultores europeus na crítica às políticas agrícolas comuns. Mais recentemente, integrou o movimento contra a globalização, procurando dar visibilidade às suas reivindicações específicas nas manifestações e fóruns.

[4] Veja-se, entre outros, Marsden, 1989; Mathieu e Jollivet, 1989; Marsden et ali, 1993; Kaiser, 1990; Hervieu, 1993; Murdoch e Marsden, 1994; Jollivet, 1997; Jean, 1997; Ferreira e Zanoni, 1998; Wanderley, 2000 e 2001; Silva e Campanhola, 2000; Carneiro, 1998; Entrena Durán e Perez, 2000; Ratier, 2000; Ferreira, 2001.

[5] Veiga, analisando os dados censitários organizados segundo outros critérios que os vigentes atualmente – e que remontam ao Estado Novo –, mostra que 30% da população rural são rurais, 80% dos municípios, além de 90% do território nacional.

[6] Os autores referidos consideram aqueles dados subestimados e indicam uma tendência ao crescimento daquela pluriatividade.

[7] Acerca de tais estratégias, ver Ferreira (2001) e Ferreira, Silva e Antuniassi (1999).

[8] Palestra proferida na UFPR para estudantes do Doutorado em Meio Ambiente e Desenvolvimento e do Mestrado em Sociologia, em agosto de 2000.

[9] O conceito de território, originalmente utilizado na botânica e na zoologia para significar o espaço sob domínio de uma espécie, foi incorporado na geografia moderna por um dos seus principais sistematizadores, Friedrich Ratzel (Moraes, 1984). Para Ratzel, o território é o espaço apropriado, sob o domínio de grupos humanos ou Estados: “É fácil convencer-se de que do mesmo modo como não se pode considerar mesmo o Estado mais simples sem o seu território, assim também a sociedade mais simples só pode ser concebida junto com o território que lhe pertence”(Ratzel, 1990). Incorporada à geografia política e à noção de Estado-nação, numa concepção jurídico-política, em sentido menos restrito, a idéia de território retorna à geografia na contemporaneidade para dar conta de uma noção de apropriação para uso (Moraes, 1984).

[10] Recorremos, aqui, ao título do livro de Bruno Jean, Territoires d’avenir: pour une sociologie de la ruralité.