Estudos Sociedade e Agricultura
Carla Veronica do Nascimento
Revalorizações de Sobrados e Mucambos
Estudos Sociedade e Agricultura, 18, abril, 2002: 191-196.
Carla Veronica do Nascimento é mestranda do CPDA/ UFRRJ.
Para celebrizar o centenário de nascimento de Gilberto Freyre, a Editora Record preparou cuidadas reedições comemorativas das principais obras do escritor pernambucano, entre as quais Casa-Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso, como se sabe, os três volumes do programa gilbertiano de estudo da nossa formação social sob o regime de uma economia patriarcal.
A leitura de Sobrados e Mucambos é de tal maneira prazerosa que quase não nos permite atentar, nas páginas de sua boa literatura, para questões que ele traz para a Sociologia brasileira. Já nisso Gilberto Freyre mostra ser um de nossos clássicos das ciências sociais demasiadamente polêmico. O fato de convergir para a obra gilbertiana muita atenção a aspectos normalmente desconsiderados pela tradição científica torna o mestre de Apipucos cada vez mais o estudioso de uma vertente sui generis da história da nossa sociedade. Ainda muito jovem Gilberto Freyre iniciou uma ensaística marcada por um estilo que – agora se vê cada vez mais – colocava-se adiante do seu tempo. Se porventura, até bem recentemente, os intérpretes viam que Freyre voltava-se para os costumes e os hábitos cotidianos de modo sugestivo, ainda estava para ser devidamente reconhecida na sua obra uma historiografia marcadamente interessada no valor das idéias e da integração de conhecimentos singulares como fonte de crítica à intenção totalizante que sacrifica a História a um modelo científico. [1]
Ultimamente a bibliografia especializada tem confirmado a significativa relevância da singularidade da vida institucional e da estratificação social brasileiras, tal como expostas nas narrativas da sociologia freyriana, se comparadas com outras sociologias mais difundidas no país, essencialmente com aquela, também “clássica”, que se voltou para a demonstração da falta de autenticidade da formação da sociedade brasileira, como já observou Jessé de Souza, referindo-se à tese de Roberto Schwartz alusiva às idéias liberais “fora de lugar” no contexto de uma sociedade ainda escravocrata, como a descreveu Machado de Assis.
Antecedido por Casa-Grande e Senzala, o texto germinal de Freyre, o seu segundo complemento, Sobrados e Mucambos, apresenta uma complexidade bastante expressiva do quadro histórico que passa a ser objeto da atenção do autor: as transformações modernizadoras do Brasil ao longo do século XIX. Se Casa-Grande e Senzala tem como fio condutor o encontro entre culturas na origem da nação, a partir das características gerais da colonização portuguesa e da formação da família brasileira, realçando as influências culturais e o problema da miscigenação, em Sobrados e Mucambos, a narrativa gilbertiana se concentra na decadência do patriarcado rural. Nesse segundo volume da famosa trilogia, Gilberto Freyre focaliza o crescimento do pólo urbano brasileiro, pontuando-o com antíteses culturais, o viés sempre presente em todas as suas descrições da formação da nossa sociedade. Sobrados e Mucambos continua o tema da ambigüidade cultural brasileira, voltando-se para as questões relativas à colisão entre a tradição patriarcal e o processo de “europeização”, trazido pela influência da Europa burguesa, e não mais da cultura ibérica. De impacto forte nesse outro Brasil do século XIX, o processo modernizador descrito por Freyre é apresentado nas mudanças dos hábitos de vestir, de leitura, de consumo, enfim, sob variadas transformações nas quais o brasileiro se metamorfoseou em “civilizado”, como se o fizesse para “inglês ver”. Mas, na verdade, imergindo em um processo nada artificial, e, sim, de efetiva modernização.
Assim como em Casa-Grande e Senzala o patriarcalismo é chave explicativa da natureza da nossa formação social, da sua estruturação e mudanças, tal noção também é estratégica em Sobrados e Mucambos. No primeiro livro, a família é a unidade básica da sociologia freyriana, já que as instituições e o Estado português se encontravam distante da empresa colonial brasileira. Gilberto Freyre, como se sabe, torna esse conceito fundamento da sua explicação de questões tanto sociais como psicológicas que segregam, aproximam e tornam íntima a vida do homem brasileiro. Para o autor, a intimidade entre os pólos desiguais da sociedade escravista seria inerente ao tipo de patriarcalismo poligâmico (graças às relações dos senhores com escravas) aqui vivido e cuja origem mais longínqua ele vai buscar na semente da experiência colonial portuguesa moura, uma influência cultural que iria conferir substrato democratizante à empreitada dos nossos colonizadores no Brasil.
Gilberto Freyre também interpreta o nosso drama social ao longo do século XIX a partir de uma apreciação psicoanalítica segundo a qual os modos da nossa sociabilidade têm caráter “sadomasoquista”, marca de uma patologia específica na qual a dor alheia, o não-reconhecimento da alteridade dos negros e a perversão do prazer transfiguraram-se em lastro básico das relações interpessoais que estruturaram a formação social brasileira.
Em Casa-Grande e Senzala, o autor mostra que o sistema das casas-grandes e senzalas acomodava relações sociais; em Sobrados e Mucambos, ele exibe com clareza as alterações das mesmas casas-grandes que se urbanizam em sobrados com requintes arquitetônicos europeus e passam a expressar novas relações de distanciamento entre ricos e pobres, brancos e gente de cor, casas-grandes e casas pequenas, conferindo grande importância à condição dos homens dentro de seu ambiente de moradia. Nesse contexto, o sociólogo pernambucano revela em Sobrados e Mucambos o prestígio que o espaço público vai ganhar através de um novo sistema de interações sociais, que inclusive desencadeia posturas de defesa ante os abusos dos senhores que tentavam fazer desse espaço urbano um prolongamento da sua propriedade: “a própria arquitetura do sobrado se desenvolvera fazendo da rua uma serva, onde as biqueiras descarregando com toda a força sobre o meio da rua as águas da chuva; as portas e os postigos abrindo para a rua; as janelas – quando as janelas substituíram as gelosias – servindo para os homens escarrarem na rua” (p. 14).
Não se pode aludir aqui a um maior número de temas de Sobrados e Mucambos. Mencionam-se apenas algumas passagens relativas aos elementos realçados pela dimensão cultural que valoriza a “europeização” do Brasil na primeira metade do século XIX, percebida por Gilberto Freyre como uma institucionalização notável da modernidade ocidental entre nós. Mediante pormenorizadas descrições e narrativas, o autor procura mostrar como no Brasil difundiu-se uma série de concepções que traziam consigo novos princípios, novos modos de estar em sociedade e em família. Ele põe o leitor diante de numerosíssimos testemunhos de novas posturas, que se colocavam em “moda”, graças ao ideário moderno, higiênico, científico e normatizador.
Sobrados e Mucambos trata basicamente da paisagem social, mediante uma narrativa motivada pela chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro que veio favorecer hábitos, comportamentos e papéis sociais que aceleraram as renovações políticas, econômicas e culturais. A corte portuguesa teria uma função crucial nesse contexto, por romper com o isolamento da Colônia e por desencadear um movimento de integração da sociedade brasileira, que assume enorme consistência de novos comportamentos modernizantes exibidos através da própria arquitetura de suas moradias que se transformam.
Com o desenvolvimento das cidades, a hierarquização das relações sociais é firmada pela oposição entre o nosso mundo arcaico e os valores europeus burgueses e as novas realidades, principalmente aquelas relativas às transformações do estilo de vida na sociedade, que vieram integrar-se ao perfil do caráter nacional, criando-se espaço para uma sociabilidade até então não existente.
A idéia da “europeização” era a de civilizar de modo semelhante às maneiras e aos comportamentos burgueses, acolhendo os valores individualistas que advinham com o incremento do mercado capitalista numa sociedade ainda atrasada, dependente e muito pouco burguesa em relação às européias. Essas atitudes e valores tornavam-se a forma essencial da chegada da modernidade ao Brasil trazida pela troca de mercadorias que, por sua vez, acarretava modificações nas nossas estruturas de sociabilidade, gerando novas relações entre pretos e brancos, filhos e pais, mulheres e homens; redimensionamentos que Freyre – não será demais repeti-lo – relata-nos com muita riqueza de detalhes ao longo dos capítulos de Sobrados e Mucambos.
Essa importação de idéias européias faz chegar ao Brasil uma modernidade assimiladora de aspectos tradicionalistas, transformando essa mesma modernidade em algo de sentido bastante diferente das idéias originais. É assim que Freyre mergulha no cotidiano social do século XIX e afirma que o “moderno” brasileiro conservava a essência da nossa tradição. O autor de Sobrados e Mucambos atenta para o fato de que a europeização e o aburguesamento social, impulsionados por idéias que haviam tido origem em uma realidade social diversa, chegavam refratados, singularizando-se, já que não havia aqui nem uma urbanização como a do exemplo clássico, nem um grupo social que pudesse ser considerado como burguesia, uma vez que nossa sociedade apenas se urbanizava e ainda era marcada pelo escravismo.
O argumento freyriano retorna ao processo de declínio do poder patriarcal familiar, já visível na formação do Império, e realça o advento das relações interpessoais, consoante a figura do Imperador (e do próprio estado imperial), ostentando o manto de “pai de todos”. Inclusive, durante essa época de transição, o autor acentua as modificações do personalismo rural e do poder privado dos senhores, consideravelmente debilitados pelo novo espaço que emergia com a urbanização, como se os novos valores revelados em Sobrados e Mucambos insinuassem que as próprias relações sociais estavam congregando a diminuição ou a substituição do individualismo e do privatismo historicamente ambientados no patriarcado rural por estratégias de um possível “coletivismo”.
Grosso modo, pela leitura de Sobrados e Mucambos percebemos que estamos diante de uma grande transformação social, com a passagem de uma sociedade ruralizada para uma outra citadina, transformação que, em última instância, abre caminho, à medida que novas oportunidades de trabalho são oferecidas, para indivíduos mestiços, filhos ilegítimos de senhores e padres, pessoas de status intermediários, que aprendem ofícios e transportam-se para uma experiência na qual o elemento tipicamente burguês afirmava-se crescentemente como a marca daquela sociedade. Há várias passagens relativas às possibilidades de ascensão social dos negros e, principalmente, dos mulatos (capítulos V, XI, XII), tais como: “É verdade que ao mesmo tempo que se acentuavam os antagonismos, tornavam-se maiores as oportunidades de ascensão social, nas cidades, para os escravos e para os filhos de escravos, que fossem indivíduos dotados de aptidão artística ou intelectual...”(p. 111) ou ainda “... Com o século XIX, e o desenvolvimento das cidades, as cidades maiores tornam-se o paraíso dos mulatos a que já se referira um cronista do século XVIII...” (p. 606).
Enquanto em Casa-Grande e Senzala, os escravos são os “pares” dos senhores, em Sobrados e Mucambos é o “mulato” que se habilita como protagonista da ascensão e da mobilidade social, tornando-se peça estratégica da referida transformação social, na medida em que sua condição de trabalhador livre passava a representar o emblema de uma real oportunidade de circulação para negros escravizados.
Esse é o quadro sociológico moldado por Freyre para um contexto de maior proximidade entre posições polares (senhor e escravo) que é suscitado pelo processo de urbanização, bem desenhado em Sobrados e Mucambos na diferenciação das formas de vestimentas, comidas, modo de transporte, jeito de andar, tipo de calçado etc., já que a escravidão não mais exteriorizava quem era senhor e quem era escravo. Era em tal contexto que o mulato se tornava diferente do que era, uma vez que, ocupando posições sociais de privilégio dos brancos, sociologicamente virava branco.
Já foi reconhecida essa teoria da modernização da formação social brasileira, fazendo de Gilberto Freyre um teórico da “democracia racial”, por ele descrever aquele processo de superação da condição do negro em mestiço embranquecido, inserindo-o na estrutura social. A nova valorização do pensamento gilbertiano, intrinsecamente relacionado com o realce conferido ao compartilhamento dos valores burgueses, vem trazendo uma nova apreciação da sua trilogia, dedicada ao estudo sobre a decadência do patriarcado rural e o desenvolvimento do urbano no Brasil. Se lermos Gilberto Freyre de Casa-Grande e Senzala e também de Sobrados e Mucambos, veremos que se trata de dois textos encadeados, mas bastante diferenciados: o primeiro, focalizando a miscigenação e sua relação com o processo de democratização social e o segundo, voltado para o tema da modernização social, nos termos daquilo que Jessé de Souza chama de enfoque freyriano da “revolução burguesa” no Brasil.
Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos. Ilustração de Lula Cardoso Ayres, M. Bandeira, Carlos Leão e Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Record, 2002, 892 p.
Notas
[1] Não por acaso Gilberto Freyre está sendo aproximado à história das mentalidades. Esta justamente veio situar-se no ponto de junção entre o indivíduo e o coletivo, o longo tempo e o cotidiano, o inconsciente e o intencional, o estrutural e o conjuntural, o marginal e o geral.