Estudos Sociedade e Agricultura
Beatriz Heredia, Leonilde Medeiros, Moacir Palmeira, Rosângela Cintrão & Sérgio Pereira Leite
Análise dos impactos regionais da reforma agrária no Brasil
Estudos Sociedade e Agricultura, 18, abril, 2002: 73-111.
Resumo: (Análise dos impactos regionais da reforma agrária no Brasil). O artigo procura apontar processos de mudança de curto, médio e longo prazo, desencadeados pela criação de assentamentos rurais no Brasil. Buscou-se captar transformações operadas na vida dos assentados, nos assentamentos e na região onde eles se inserem. A pesquisa que deu origem ao artigo tomou como foco algumas regiões do país com elevada concentração de projetos de assentamento e alta densidade de famílias assentadas por unidade territorial (manchas), tendo como suposto que essa concentração é efeito de lutas e de que a proximidade de vários projetos potencializa seus efeitos.
Palavras-chave: reforma agrária, assentamentos rurais, luta por terra.
Abstract: (Analysis of the Regional Impacts of Agrarian Reform in Brazil). This article aims to identify processes of change in the short, medium and long term, generated by the creation of rural settlements in Brazil. The intention was to understand the transformations which have occurred in settlers lives, in the settlements themselves and in the regions surrounding these settlements. The research on which this article is based focused on regions with a high concentration of settlements and a high density of settled families per territorial unit on the hypothesis that this concentration was the result of struggle and that the proximity of various projects has a specific dynamising impact.
Key words: agrarian reform, rural settlements, land struggles.
Beatriz Heredia é professora da UFRJ/IFCS; Leonilde Medeiros é professora da UFRRJ/CPDA; Moacir Palmeira é professor da PPGAS/Museu Nacional/UFRJ; Rosângela Cintrão é pesquisadora; Sérgio Pereira Leite é professor da UFRRJ/CPDA.
Introdução
Um grande número de pesquisas sobre assentamentos rurais no Brasil tem se voltado para a análise de suas condições internas, políticas a eles direcionadas e trajetórias dos assentados. São ainda poucos os estudos sobre o significado da implantação dos assentamentos rurais para as regiões onde estão localizados. Esta é a preocupação central deste artigo, que buscou apontar os processos de mudança por eles provocados no ambiente no qual se inserem.1
Essas mudanças, para as quais o termo impacto pode ser excessivo, pois tende a chamar a atenção para o mais visível e espetacular, muitas vezes têm um caráter molecular e só se potencializam ao longo do tempo. Sua intensidade e natureza dependem de diferentes contextos (locais, regionais, nacionais), impedindo que se busque qualquer linearidade nesse processo de transformação. Como resultados de mudanças de curto, médio e longo prazos, os efeitos da criação de assentamentos fazem-se sentir tanto na vida dos assentados e dos projetos como também fora deles. Longe de atribuir uma valoração positiva ou negativa, afirmando sucessos ou fracassos da política de assentamentos, procurou-se desenvolver uma análise voltada à mensuração e qualificação das mudanças, buscando construir indicadores e apontar relações que refletissem o significado dessas experiências a partir da comparação entre as situações atual e anterior dos assentados (tanto em termos objetivos como subjetivos), bem como entre as condições socioeconômicas existentes no assentamento e aquelas verificadas no seu entorno. Além disso, foi feita uma análise dos efeitos resultantes da criação dos projetos nos níveis local e regional. [1]
Em um sentido mais geral, discutir os impactos dos assentamentos significa atentar para uma multiplicidade de relações nas quais trajetórias diferenciadas implicam resultados diversos, impedindo qualquer procedimento apressado de generalização. Mais do que uma identificação de impactos, trata-se de analisar os efeitos econômicos, políticos e sociais dos processos de transformação desencadeados pela criação de assentamentos. Tais processos têm ritmos e intensidades variáveis e incidem tanto sobre as famílias dos assentados como no entorno dos projetos.
Aspectos metodológicos e caracterização da amostra
A pesquisa tomou como foco algumas regiões do país com elevada concentração de projetos de assentamento e alta densidade de famílias assentadas por unidade territorial, pressupondo que este procedimento traria maior possibilidade de apreensão dos processos de mudança em curso. Tais regiões passaram a ser denominadas manchas e sua delimitação geográfica não necessariamente coincide com outros recortes regionais existentes (como, por exemplo, o do IBGE, governos estaduais, Incra, movimentos sociais). O critério para a sua definição foi a existência de um conjunto de municípios vizinhos com concentração relativamente elevada de assentamentos, tanto em número de projetos, quanto em número de famílias e em área ocupada, e com uma dinâmica histórica, econômica, social e organizativa comum. Foram selecionadas seis grandes manchas, refletindo a diversidade da realidade brasileira: Sul da Bahia, Entorno do Distrito Federal, Sertão do Ceará, Sudeste do Pará, Oeste Catarinense e Zona Canavieira do Nordeste. [2] Dentro de cada grande mancha, foi selecionada uma mancha amostral, composta por um conjunto de municípios com as mais elevadas concentrações de projetos e com as mais altas participações da população assentada em relação às populações rural e urbana. [3] Nela foram aplicados questionários e elaborada uma análise de maior profundidade.
Os assentamentos analisados foram implantados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no período entre 1985 e 1997. Tomou-se como data inicial dessa periodização a implementação do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que marcou uma diferença em relação às políticas anteriores de assentamento, identificadas pela lógica da colonização. A definição de 1997 como último ano contemplado deu-se pelo entendimento de que era necessário um tempo mínimo de existência dos projetos para que se pudesse observar os impactos gerados por eles. A Tabela 1 apresenta alguns dados sobre a amostra.
Tabela 1: Caracterização geral das áreas pesquisadas (manchas amostrais):
Manchas Amostrais
(e estados abrangidos)
N° de municípios selecionados
N° total de famílias assentadas nos municípios (1985-97)
Área total
(em ha) dos PAs nos municípios selecionados (1985-97)N° de projetos pesquisados
N° de questionários aplicados [4]
Sul da Bahia (Região Cacaueira) – BA
8
734
12.919,5
14
87
Sertão do Ceará (Canindé) – CE
4
2.999
110.401,7
10
306
Entorno do Distrito Federal – GO e MG
6
2.409
114.803,2
14
237
Sudeste do Pará (Conceição Araguaia) – PA
2
3.320
240.929,3
10
366
Oeste de Santa Catarina – SC
8
1.802
27.292,9
19
185
Zona Canavieira Nordestina – AL, PB e PE
11
3.849
29.888,7
25
387
Total Geral
39
15.113
536.235,2
92
1.568
Fonte: Listagens do Incra e dados da pesquisa.
Embora todas as manchas selecionadas apresentem concentrações importantes de assentamentos, destacando-se tanto em nível estadual (muitas vezes representando um terço ou mais dos assentamentos existentes) quanto nacional, a participação dos projetos (seja em termos de área ocupada, seja em termos de famílias assentadas) nos municípios e nas manchas pesquisadas é bastante variada. Este fator, aliado às diferentes dinâmicas regionais nas quais se inserem e à maior ou menor capacidade organizativa dos assentados, faz com que os efeitos provocados pela presença dos assentamentos sejam bastante diferenciados.
É importante ressaltar que a amostra é estatisticamente representativa apenas dos municípios selecionados (mancha amostral) e não da totalidade das regiões abrangidas e, muito menos, da realidade nacional.
O surgimento das manchas e a territorialização da reforma agrária
A conformação das manchas, contrapondo-se à lógica de desapropriações isoladas que caracterizam a intervenção do Estado na questão agrária, já é, por si, um aspecto relevante das transformações que os assentamentos têm produzido no espaço regional.
O Estatuto da Terra foi a primeira legislação a estabelecer uma sistemática de intervenção e de desapropriação e a prever a indicação de “áreas prioritárias de reforma agrária”, mas elas não se tornaram realidade durante o período militar. Uma perspectiva de alteração desse quadro surgiu com a redemocratização, em 1985. A proposta de PNRA, pautada pelo Estatuto da Terra, visava o estabelecimento de zonas prioritárias de reforma agrária. No entanto, a reação das forças anti-reformistas levou ao abandono dessa idéia. Daí para frente realizaram-se desapropriações não planejadas que, embora bem mais freqüentes do que no regime militar, ocorreram na esteira dos conflitos e das mobilizações sociais que, com o arrefecimento da repressão, desenvolveram-se mais rapidamente. As medidas que resultaram na criação dos assentamentos do período democrático, sem estarem orientadas para a realização de uma reforma agrária “massiva”, como exigiam os movimentos de trabalhadores, mas adotadas sob pressão destes, foram potencializadas por uma certa simultaneidade (“pacotes” de desapropriações) e por sua concentração nas regiões em que os movimentos atuavam, mesmo não atingindo necessariamente áreas contíguas. A percepção do sucesso do caminho adotado estimulou trabalhadores das cercanias a seguirem na mesma linha, sendo feitas novas desapropriações, adensando-se os assentamentos em determinadas áreas e levando os movimentos a tentarem repetir a experiência em outras tantas. Assim foram surgindo “áreas reformadas” a posteriori.
A estreita relação entre as desapropriações e as iniciativas dos trabalhadores rurais e seus movimentos se evidencia quando são analisadas as informações sobre a existência de conflitos e sobre a iniciativa do pedido de desapropriação. A quase totalidade dos assentamentos pesquisados (96%) resultou de situações de conflito. Em 89% dos casos, a iniciativa do pedido de desapropriação partiu dos trabalhadores e seus movimentos. Em apenas 10% dos assentamentos da amostra, a iniciativa de desapropriação partiu do Incra. [5]
Apesar de serem múltiplas as formas assumidas pelas iniciativas dos trabalhadores (às vezes envolvendo uma combinação ou mudanças delas ao longo do tempo num mesmo local), verifica-se, pela Tabela 2, que 64% dos assentamentos pesquisados resultaram de “ocupações de terra”. Também a “resistência na terra” tem peso importante, estando na origem de quase um terço (29%) dos assentamentos estudados.
Tabela 2: Distribuição dos assentamentos pelas formas de luta utilizadas pelos trabalhadores, segundo as manchas (em número de projetos)
Mancha
Resistência na terra *
Ocupação**
Outras ***
Total (=100%)
Sul da BA
6 (43%)
8 (57%)
-
14
Sertão do CE
4 (40%)
6 (60%)
-
10
Entorno do DF
2 (14%)
9 (64%)
3 (22%)
14
Sudeste do PA
9 (90%)
1 (10%)
-
10
Oeste de SC
-
16 (84%)
3 (16%)
19
Zona Canavieira NE
6 (24%)
19 (76%)
-
25
Total Geral
27(29%)
59 (64%)
6 (7%)
92
Fonte: Perfil dos Assentamentos - Pesquisa de campo – 2000.
* Resistência na terra: inclui todos os casos de luta de trabalhadores rurais (moradores, parceiros, arrendatários, posseiros) por permanecer na terra onde trabalhavam e/ou moravam. Inclui também os casos de “ocupações paulatinas” (quatro no Sul da Bahia e nove no Sudeste do Pará), que são silenciosas, via de regra por pequenos grupos de posseiros que querem criar benfeitoria e ter, dentro de um certo tempo, o seu direito de posse reconhecido. Nestes casos, os conflitos eclodem apenas quando a ocupação é “descoberta”, entrando em jogo a resistência na terra.
** Ocupação: refere-se às ocupações massivas e públicas de terras, que se tornaram freqüentes e consolidaram sua denominação nos últimos 15 anos, a partir do estímulo do MST - Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, mas que no entanto se ampliaram para outros movimentos de luta pela terra ou mesmo para o movimento sindical, que em algumas regiões tem uma presença mais importante que o MST.
*** Outras: abarca tanto os casos em que a iniciativa não pertenceu aos trabalhadores e seus movimentos, como ações de trabalhadores e movimentos não enquadráveis nas categorias anteriores.
Analisando as manchas, vê-se que no Oeste de Santa Catarina, com exceção de três transferências de população promovidas pelo Incra, a implantação de assentamentos passou pela ocupação de terras. As ocupações prevalecem também com muita nitidez no Entorno do Distrito Federal, no Sul da Bahia e no Sertão do Ceará, apesar da importância da resistência na terra nestas duas últimas manchas e das ocupações paulatinas na Bahia. Na mancha do Sudeste do Pará, com uma só exceção, todos os assentamentos estudados surgiram de “ocupações paulatinas”, nas quais a iniciativa da entrada na terra partiu dos próprios trabalhadores. O apoio de mediadores (sindicatos de trabalhadores rurais, Comissão Pastoral da Terra – CPT) só se tornou necessário quando surgiram represálias dos proprietários da terra, na forma de ameaças, pressões ou violência direta de pistoleiros ou da polícia. Esses conflitos, em geral, foram longos. [6] Na mancha da Zona Canavieira do Nordeste, boa parte das ocupações (11 dos 19 casos) esteve combinada com outras formas de luta, como a antiga resistência de moradores ou de pequenos parceiros e arrendatários contra a sua expulsão das terras de engenhos e fazendas, e as mais recentes reivindicações (indenização trabalhista paga com cessão de terra) de trabalhadores de usinas falidas. A utilização das ocupações como um dos instrumentos dessa luta generalizou-se nos anos 90, abrindo também a possibilidade de incorporar ex-trabalhadores da cana e desempregados vivendo nas pequenas cidades da região.
Tabela 3: Distribuição temporal dos assentamentos dos municípios pesquisados segundo a data de sua criação, por manchas (em porcentagens)
Período
Total das manchas
Sul da BA
Sertão do CE
Entorno
do DFSudeste do PA
Oeste de SC
Zona Canavieira do NE
1985-1989
25%
40%
24%
21%
11%
57%
5%
1990-1994
8%
-
5%
4%
30%
6%
2%
1995-1997
67%
60%
71%
75%
59%
37%
93%
Totais
100%
100%
100%
100%
100%
100%
100%
Fonte: Listagem do Incra – 1999.
Os assentamentos estudados, como já assinalado, foram criados entre 1985 e 1997. No entanto, uma análise da distribuição temporal da implantação desses projetos mostra que há variações importantes ao longo daquele período: 25% dos projetos foram criados no período 1985-89, apenas 8% no período 1990-94 e 67% no período 1995-97 (cf. Tabela 3). [7]
Essa variação pode ser atribuída, numa primeira aproximação, às diferentes orientações de política agrária dos sucessivos governos. A redução no período 1990-94 pode ser explicada pela demora na regulamentação das normas constitucionais, o que só ocorreu em 1993. No entanto, a distribuição percentual da criação dos assentamentos nos períodos 1985-1989 e 1995-1997 tende a coincidir com a distribuição das formas de luta utilizadas pelos trabalhadores, resistência na terra (29%) e ocupações (64%), indicando que essa variação, mais do que delimitar períodos de governo, pode estar circunscrevendo tempos em que prevalece um ou outro tipo de conflito e em que uma ou outra forma de luta é hegemônica, reforçando as indicações de que as iniciativas dos trabalhadores são o verdadeiro motor das desapropriações.
Uma análise mais detida das variações desse padrão geral em cada mancha pesquisada reforça tal perspectiva. A diminuição do número de novos assentamentos no período 1990-94 é uma realidade em todas as manchas estudadas. A exceção é o Pará. O aumento do número de assentamentos no período 1995-97 também é geral. A exceção é Santa Catarina. O Sudeste do Pará é a única mancha em que se tem um aumento progressivo do número de assentamentos entre 1985 e 1997, sendo esta uma tendência que atinge o estado do Pará como um todo e, mais amplamente, a região Norte. O que parece estar em jogo nesse privilégio à Amazônia é uma soma da pressão dos que lutam pela posse da terra com a velha idéia da colonização como alternativa à reforma agrária (cultivada pelos governos militares e por alguns ministros do período democrático) e com a perspectiva de bons negócios fundiários, com a desapropriação pelo Incra, a preço de mercado (ou acima), de antigas áreas públicas adquiridas por valores ínfimos por particulares.
A concentração da criação de assentamentos em Santa Catarina no primeiro período é o resultado das ocupações massivas de terra no Oeste do estado levadas a cabo pelo MST e por alguns sindicatos de trabalhadores rurais, com apoio da CPT, quando do lançamento da Proposta de PNRA. Essa mobilização fez com que, nos dois primeiros anos do governo Sarney, esse estado, com menor concentração fundiária no país, estivesse entre aqueles com maior número de desapropriações e assentamentos.
Chama ainda a atenção a situação singular da Zona Canavieira do Nordeste. Foco reconhecido de tensões sociais desde pelo menos meados dos anos 50 e locus de atuantes movimentos de trabalhadores rurais, esta mancha teve um número extremamente baixo de desapropriações e de assentamentos no período 1985-89. O grande salto só ocorreu depois de 1995. O fato novo, capaz de explicar essa distribuição no tempo, é a crise sem precedentes em que mergulhou a agroindústria canavieira a partir da segunda metade dos anos 80. Nos últimos anos, mais de 15 usinas fecharam em Pernambuco sem saldar suas dívidas, inclusive as trabalhistas. As ocupações de terra, até então pouco expressivas na região, na esteira da atuação do MST, tornaram-se o instrumento de luta, por excelência, para o enfrentamento da crise pelos trabalhadores rurais.
No entanto, tanto os movimentos sociais como os demais atores das lutas sociais têm sido prisioneiros e, ao mesmo tempo, atuado sobre algumas configurações históricas específicas que, nas manchas pesquisadas, levaram a uma concentração de projetos de assentamentos: a grande valorização das terras e os fortes fluxos migratórios no Entorno do Distrito Federal; as crises das lavouras cacaueira no Sul da Bahia, canavieira na Zona da Mata nordestina e algodoeira no Sertão cearense (intensificada pela ocorrência de grandes secas); a dificuldade de reprodução da pequena agricultura no sul do país; a falência de grandes empreendimentos patrocinados pelo Estado no Sudeste do Pará.
A concentração regional de assentamentos é assim uma resultante objetiva das lutas empreendidas, que se tornam objeto de reapropriações e racionalizações pelos diferentes atores. Nesses enfrentamentos, os movimentos de trabalhadores têm conseguido definir “áreas prioritárias” para as intervenções do Estado e têm sido hegemônicos no desenho de modelos de “assentamento”, vale dizer, de padrões de relacionamento social que, se não são aqueles idealizados pelas propostas dos movimentos, estão muito mais próximos do que é valorizado pela “cultura camponesa” do que daquilo que é propugnado pelos planejadores estatais.
A presença dos assentamentos na dinâmica social e política regional
Os assentados e suas famílias
Grande parte da população assentada já vivia na zona rural da própria região antes de vir para o assentamento: mais de 80% da amostra originam-se do próprio município ou de municípios vizinhos de onde está localizado o assentamento; [8] 94% deles já tinham alguma experiência de trabalho na agricultura.
Quando se analisa o tipo de trabalho exercido imediatamente antes de vir para o assentamento, constata-se que 75% dos assentados estavam anteriormente ocupados em atividades agrícolas, como assalariados rurais permanentes ou temporários, posseiros, parceiros, arrendatários, membros não remunerados da família. [9] As ocupações predominantes em cada mancha refletem claramente a problemática agrária descrita anteriormente. No Sul da Bahia destacam-se os assalariados rurais permanentes (45% da população assentada), provavelmente ex-assalariados das fazendas de cacau. No Sertão do Ceará destacam-se os moradores (58%), relação predominante nas fazendas do sertão. No Entorno do Distrito Federal e na Zona Canavieira do Nordeste predominam assalariados rurais temporários ou permanentes (mais de 40%), seguidos de posseiros/parceiros/arrendatários, retratando uma população que vivia subordinada às fazendas. Na mancha do Sudeste do Pará predominam os membros não remunerados da família (43%) e posseiros (11%), indicando possivelmente que os assentados sejam filhos ou parentes de posseiros em áreas de ocupação mais antiga. Já no Oeste de Santa Catarina, 44% eram parceiros/arrendatários e 14% membros não remunerados da família (filhos de agricultores), refletindo a crise da agricultura familiar naquele estado.
Com relação ao nível de escolaridade dos responsáveis pelo lote, constata-se que, no total das manchas, 87% deles têm no máximo até a 4a série do ensino fundamental, sendo que 32% nunca foram à escola. Apenas 2% a freqüentaram além da 8a série. Esses dados são semelhantes no caso dos cônjuges e da população assentada com 30 anos ou mais.
Os assentamentos vêm possibilitando, portanto, o acesso à propriedade da terra para uma população historicamente excluída e que, embora mantendo algum tipo de inserção no mercado de trabalho, o fazia em condições bastante instáveis e precárias.
As pessoas que passam a morar nos projetos de assentamento não vêm sozinhas: a maior parte dos responsáveis pelos lotes desloca-se para o assentamento com a família. Em termos gerais, os lotes dos assentamentos estudados seguem, em sua composição, o padrão comum à agricultura familiar, sendo habitados por uma família nuclear (pais, mães e filhos) que passa a ter no local uma importante fonte de trabalho e condições de reprodução social e econômica.
Em mais de 80% dos lotes vivem filhos dos responsáveis, a maioria menor de 14 anos, com uma média em torno de três filhos por família. [10] Uma parcela significativa dos lotes (24%) conta também com outros parentes, como pais/sogros, genros/noras, irmãos/cunhados, netos etc. Eles, em geral, não viviam com a família nuclear antes do assentamento e foram sendo incorporados à unidade doméstica, [11] o que indica que os assentamentos vêm atuando como mecanismos de recomposição das famílias, tanto contribuindo para a reconstituição de laços familiares (antes desfeitos ou ameaçados pela necessidade de deslocamento de filhos, pais, irmãos, em busca de alternativas de sobrevivência), quanto funcionando como uma forma temporária de amparo para familiares.
O deslocamento para o assentamento não envolve somente famílias isoladas (ou com agregação de outros parentes), mas grupos de famílias aparentadas: 62% dos assentados contam com familiares em outros lotes. Assim, os assentamentos também parecem agrupar (ou reagrupar) partes de comunidades, quando não comunidades inteiras.
Nas situações em que boa parte dos assentados era constituída de famílias que já viviam na área desapropriada, a criação dos projetos, além de permitir a manutenção das relações existentes, acaba muitas vezes acarretando o rearranjo espacial de famílias (com a formação de novos laços vicinais), provocando a convivência com pessoas pouco conhecidas ou mesmo desconhecidas, proporcionando novas oportunidades de encontro e convivência e impondo novas formas organizativas.
Os assentamentos e sua organização interna
A localização e o tamanho das áreas destinadas aos assentamentos rurais têm muito de aleatório, uma vez que resultam dos conflitos que se vão manifestando e traduzem, em algum grau, as marcas da estrutura agrária. Uma comparação entre manchas, levando em conta a extensão das áreas totais dos projetos e o número total de famílias assentadas, leva-nos a distinguir três blocos.
O primeiro inclui o Sudeste do Pará, Entorno do Distrito Federal e Sertão do Ceará, ao qual estariam tendencialmente associadas grandes extensões de área e grande quantidade de famílias (mais de 60% dos projetos acima de 2.000 ha e acima de 50 famílias). O segundo, compreendendo o Sul da Bahia e Oeste de Santa Catarina, com assentamentos tendencialmente associando pequenas extensões de área e poucas famílias (a maioria é menor que 1.000 ha e tem menos de 50 famílias). O terceiro envolve a Zona Canavieira nordestina, na qual pequenas extensões de área estão associadas a muitas famílias, traduzindo uma maior densidade demográfica rural e urbana (mais de 60% dos projetos têm menos de 2.000 ha e mais de 50 famílias). [12]
A área média dos lotes é de 35,5 ha no total da amostra, com grande variação entre as manchas, indo dos 7,8 ha da Zona Canavieira do Nordeste aos 72,6 ha do Sudeste do Pará. Há um corte nítido entre Sul da Bahia, Oeste de Santa Catarina e Zona Canavieira nordestina, com tamanho médio de assentamentos de menos de 2.000 ha e lotes menores que 20 ha, e Sudeste do Pará, Entorno do Distrito Federal e Sertão do Ceará, com tamanho médio de assentamentos superiores a 8.000 ha e lotes, em média, com mais de 30 ha. [13]
A organização espacial interna dos projetos parece seguir em geral um certo padrão preexistente entre os agricultores familiares na região em que estão inseridos, mas nem por isso deixa de apresentar inovações.
Na maior parte das unidades pesquisadas as casas estão localizadas nos próprios lotes. Em pouco menos de um quarto dos projetos foram encontradas agrovilas (a maioria no Sul da Bahia e na Zona Canavieira), geralmente coexistindo com formas de nucleação da população anteriores aos assentamentos. Na mancha do Sertão cearense, existem comunidades (agrupamentos de tamanho variável de casas de assentados) com os roçados em torno. As áreas destinadas a pastagens muitas vezes são coletivas. Nos projetos maiores, cada comunidade tem uma associação, que organiza a atividade econômica de seus membros, e o assentamento, no seu todo, tem uma cooperativa central que coordena essas associações. Na mancha do Sudeste do Pará, embora a maior parte das casas esteja nos lotes, a ocupação das áreas provocou o surgimento e/ou expansão de povoados que, em alguns casos, estão se tornando vilas, com pequenos centros comerciais e de serviços, atraindo outras categorias além dos próprios assentados. Na mancha catarinense as casas estão nos lotes e as comunidades (espécies de bairros rurais) seguem o padrão local e podem preexistir ao assentamento ou formar-se como conseqüência dele. Uma nova forma de organização são os núcleos, divisões político-organizativas internas ao assentamento, propostas pelo MST, para discussão de problemas e encaminhamento de demandas ao poder público. Na mancha da Zona Canavieira do Nordeste, sedes de antigos engenhos ou sítios mantiveram-se como lugares de sociabilidade e de iniciativas econômicas ou políticas dos assentados e, em alguns casos, cederam o posto às agrovilas construídas pelo Incra.
Impactos fundiários e demográficos
Os assentamentos rurais estudados não alteraram radicalmente o quadro de concentração da propriedade fundiária no plano nacional, estadual, ou mesmo nas regiões em que estão inseridos, motivo pelo qual não se pode classificar a política de assentamentos rurais como um profundo processo de reforma da estrutura fundiária.
Nos estados abarcados pela pesquisa, a comparação da área total de todos assentamentos rurais implantados pelo Incra até 1999 (excluindo os assentamentos realizados pelos governos estaduais) com a área total dos estabelecimentos agropecuários estabelecida pelo Censo de 1996 mostra que, com exceção do Pará, a participação da área dos assentamentos na área dos estados oscila entre 0 e 5%.
Tabela 4: Participação da área dos assentamentos na área total dos estabelecimentos agropecuários
Manchas
ESTADOS -
até 1999Participação dos PAs na área total dos estados onde estão inseridas as manchas *
MUNICÍPIOS DA AMOSTRA - até 1997
Participação dos PAs na área dos municipios pesquisados**
MUNICÍPIOS
DA AMOSTRA -
até 1999Participação dos PAs na área dos municípios pesquisados**
ESTRATO DE ÁREA
– até 1997
Participação dos lotes nos estratos de área equivalentes nos municípios ***
Sul da BA
BA
3,0%
2,3%
3,1%
5,5%
Sertão do CE
CE
5,3%
15,9%
23,7%
113,2%
Entorno do DF
GO e MG
1,4%
3,1%
5,4%
57, 6%
Sudeste do PA
PA
25,3%
34,6%
40,4%
119,5%
Oeste de SC
SC
1,1%
9,6%
11,3%
18,8%
Zona Canavieira NE
AL, PB e PE
1,5%
12,1%
18,4%
142,7%
Total das Manchas
5,6%
8,7%
12,0%
62,0%
Fontes: Listagem do Incra(1999), IBGE (Censo Agropecuário, 1996).
* ESTADOS: participação percentual da área total dos PAs criados até 1999 no(s) estado(s) onde estão as manchas sobre a área total dos estabelecimentos agropecuários nesses mesmos estados. Estão incluídos os projetos do programa Cédula da Terra na Bahia, Ceará, Minas Gerais e Pernambuco.
** MUNICÍPIOS DA AMOSTRA: participação percentual da área total dos assentamentos (criados pelo Incra até a data indicada) sobre a área total de estabelecimentos agropecuários no conjunto dos municípios da mancha amostral.
*** ESTRATO DE ÁREA: busca identificar a participação da área total dos lotes dos assentamentos pesquisados em relação à área total dos estabelecimentos nas classes de área correspondentes nos municípios (segundo dados do Censo Agropecuário-1996). Utilizou-se a área média do lote declarada pelos assentados para estabelecer os estratos de área predominantes em cada mancha, que foram: 0 a 20ha na Zona Canavieira; 0 a 50ha no Sul da BA, Sertão do CE e Oeste de SC; 0 a 100ha no Entorno do DF e Sudeste do PA.
No entanto, nas manchas amostrais estudadas, a relação entre a área dos assentamentos e a área dos estabelecimentos agropecuários nos municípios é significativamente maior, indicando um processo de territorialização da reforma agrária. Como se pode ver na Tabela 4, há variações importantes entre as manchas (e mesmo entre os municípios que compõem as manchas), indo de apenas 3,1% (dados de 1999), na mancha do Sul da Bahia, até 40,39%, na do Sudeste do Pará. Assim, se no plano dos estados o impacto é em geral modesto, nas áreas escolhidas tende a ser expressivo e, em alguns municípios, chega a ser muito grande, com crescimento significativo entre 1997 e 1999.
A última coluna da Tabela 4 refere-se a um exercício aproximativo que busca dimensionar o impacto fundiário nos municípios em relação às classes de área nas quais se inserem os lotes dos assentados. Neste caso, constata-se um impacto muito significativo. [14] Em algumas manchas, como no Sertão do Ceará, no Sudeste paraense e na Zona Canavieira nordestina, o total da área dos assentamentos é maior do que a área ocupada pelo estrato correspondente de estabelecimentos agropecuários na época do recenseamento do IBGE. [15] Assim, embora não altere o quadro mais global de concentração fundiária, a implantação dos assentamentos tem proporcionado uma reestruturação fundiária nos espaços locais.
Com relação ao impacto demográfico, embora a população assentada não tenha grande peso sobre a população total da região como um todo, sobre a população rural dos municípios, em vários casos, seu peso é significativo. Uma inferência possível, com ressalvas, é de que a intensificação dos assentamentos tenha contribuído, senão para ampliar a população rural nos municípios analisados, pelo menos para estancar seu decréscimo. Em municípios de menor porte populacional, a população dos assentamentos é relativamente importante mesmo quando comparada à população urbana. [16]
Acesso a políticas públicas e condições de infra-estrutura
Em termos gerais, a infra-estrutura dos assentamentos das manchas pesquisadas é bastante deficiente, acompanhando o padrão de precariedade do meio rural brasileiro. No entanto, isso não significa que não haja alterações: a criação dos assentamentos e as expectativas que os cercam acabam por dar origem a uma série de demandas e reivindicações, cuja potencialização relaciona-se com a capacidade organizativa dos assentados e com a conjuntura política local em que se inserem.
A fase inicial de chegada ao assentamento (nos casos em que a população não vivia na área) é bastante difícil, pois tudo no lote está por fazer, inclusive o local de moradia. Para dotar as famílias de um mínimo de condições iniciais para sua inserção social, econômica e produtiva, tem grande importância o acesso aos créditos de instalação ou implantação administrados pelo Incra através de três modalidades: fomento, habitação e alimentação. Nos assentamentos estudados, verifica-se que 81% das famílias foram atendidas com crédito-fomento, 72% com crédito-habitação e 74,63% com crédito-alimentação, o que revela um grau razoável de cobertura.
No entanto, é necessário relativizar esses dados, em função do atraso na liberação dos créditos. Se for considerada a data de criação oficial do projeto, os créditos-fomento e alimentação levaram em média nove meses para serem recebidos, enquanto o crédito-habitação levou mais de dois anos (28 meses em média), tornando mais penosa a fase inicial e comprometendo a capacidade posterior das famílias no desenvolvimento de suas atividades. [17]
Quando perguntados sobre suas condições atuais de habitação em relação às anteriores, 79% dos entrevistados consideram que houve melhora, com algumas variações regionais. Na média, só 8% dos assentados apontaram piora. Uma avaliação do tipo de construção corrobora esta percepção: 74% das casas dos assentados nas manchas pesquisadas são feitas com tijolo ou bloco, sendo que, antes de serem assentados, esse índice não passava de 39%. A liberação dos créditos e as mudanças no padrão de habitação implicaram também uma dinamização do comércio local (pela demanda de materiais) e no mercado de trabalho (ramo da construção civil).
Quanto ao abastecimento de água, a maioria dos assentamentos pesquisados apresenta lotes com problemas de falta de água ou com água de baixa qualidade. Em cerca de 46% deles, os informantes afirmaram haver lotes com problemas de recursos hídricos para a produção.
A rede elétrica existe em 78% dos projetos, mas somente 27% deles são servidos na sua totalidade por ela. Em 66% dos casos estudados, a energia elétrica foi instalada após a constituição do assentamento e, em 53% dos projetos onde há energia, os entrevistados afirmaram ter sido necessária reivindicação para obtê-la.
A telefonia pública é pouco difundida: somente 16% dos projetos a têm, o que significa que qualquer emergência referente à saúde ou mesmo informações básicas sobre funcionamento de mercados implica deslocamentos que, às vezes, são bastante custosos, tanto em termos de dispêndio de energia e tempo, como em termos financeiros.
No total da amostra, a distância média em relação às cidades com as quais os assentamentos têm maior contato é de 28 quilômetros, com um tempo médio de deslocamento em torno de uma hora. [18] Predominam as estradas de terra até a entrada do projeto (46% dos projetos), ou parte de terra e parte de asfalto (34%). Na avaliação dos entrevistados, em 70% dos casos as estradas não são boas, sendo que em metade deles há inacessibilidade na época da chuva. As condições das estradas se agravam ainda mais quando se considera as vias internas: em apenas 18% dos assentamentos pesquisados todos os lotes são acessíveis durante o ano todo. Assim, de forma geral, os assentados estão sujeitos a dificuldades de circulação, em especial nas épocas de chuva, tanto agravando as condições de acesso a serviços de saúde e educação, quanto gerando dificuldades para a comercialização da produção.
Com relação ao transporte coletivo, apesar do quadro geral de precariedade, as observações de campo indicam que, em vários municípios, a presença de assentamentos ampliou a frota de veículos e máquinas das prefeituras, tais como ônibus para transporte escolar, ambulâncias e tratores. Também provocou mudanças em itinerários de linhas de ônibus e a ampliação dos serviços alternativos, como mototáxis e caminhonetes, provavelmente favorecendo também localidades vizinhas.
No que se refere à educação, verifica-se que uma das grandes preocupações das famílias assentadas é com a existência de escolas para seus filhos. Em 86% dos projetos investigados existem escolas, sendo que, em grande parte deles, as escolas foram criadas depois de instalado o assentamento (84%). Essa elevada presença de unidades de ensino parece ter sido produto da demanda dos assentados: em 71% dos casos houve necessidade de reivindicações para a criação de estabelecimentos escolares. As prefeituras são as principais mantenedoras das escolas nos assentamentos (87% dos projetos). Embora minoritárias, aparecem iniciativas de parcerias entre movimentos sociais (MST, STRs), organizações não-governamentais (ONGs) e poder público na manutenção e mesmo na direção das escolas.
A residência no assentamento parece favorecer a ida à escola. Uma porcentagem muita alta da população em idade escolar a freqüenta: em torno de 90% das crianças entre 7 e 14 anos, e em torno de 60% dos jovens entre 15 e 19 anos. A avaliação comparativa, feita pelos assentados entrevistados, entre a situação atual e a anterior com relação aos serviços de educação indica que, apesar das debilidades, 70% dos entrevistados percebem melhoras, ao passo que 20% consideram igual e 9% pior.
O quadro torna-se menos favorável quando se observa o nível do ensino: 77 % dos projetos com escola apresentam salas multisseriadas e, em 73% deles, as escolas oferecem somente até a 4a série do ensino fundamental. Em somente 19% dos projetos com escolas, estas oferecem até a 8ª série. Inexistem nos assentamentos estudados estabelecimentos de ensino médio ou escolas técnicas. A continuidade dos estudos parece estar relacionada com a oferta de ensino no interior do assentamento: em 45% dos projetos as crianças em geral chegam até a 4a série do ensino fundamental, em 13%, até a 5a e em apenas 28% estudam até a 7a ou 8a série. Nos projetos em que não há escolas, os índices de freqüência são menores e a tendência é o estudo ir somente até a 4a série. Neste sentido, a educação oferecida aos assentados ainda é claramente insuficiente (em qualidade e grau de escolarização), tendendo a reproduzir, em um padrão ligeiramente superior, as debilidades de formação da população adulta.
Chama ainda a atenção a presença de programas de educação de jovens e adultos, constatada em 64% dos casos pesquisados, a maior parte deles patrocinados pelo Programa Nacional de Educação para Áreas de Reforma Agrária (Pronera) [19] e, em menor parte, por prefeituras. Isso vem permitindo que uma parcela da população adulta tenha chance de ser alfabetizada no próprio assentamento: nos projetos pesquisados 6% dos adultos acima de 30 anos freqüentavam a escola. Boa parte dos cursos são voltados somente para alfabetização, com número de salas limitado, duração curta e sem perspectiva de continuidade.
No que diz respeito aos serviços de saúde, embora a presença de agentes de saúde, geralmente pagos pelas prefeituras, seja significativa (78% dos projetos), os postos de saúde existem em apenas 21% dos assentamentos pesquisados, a maioria instalada por pressão dos assentados. Onde há posto de saúde, raramente há presença regular de médicos. [20] Dada essa precariedade, os assentados procuram serviço de saúde na sede do próprio município (em 92% dos projetos), em municípios vizinhos (42%) ou em cidades que são pólos regionais (25%).
Ou seja, a criação dos assentamentos, em especial quando envolve deslocamento de população de outros municípios/regiões, implica forte pressão sobre os serviços de saúde locais, sabidamente já deficientes no que se refere a atendimento, e tende a desencadear novas reivindicações ou a engrossar as já existentes. Considerando-se a distância dos assentamentos em relação aos centros urbanos, a dificuldade das estradas e/ou a carência de transporte coletivo, a precariedade do atendimento à saúde tem efeitos graves sobre a vida dos assentados.
Associativismo e participação política
A precariedade identificada com relação à infra-estrutura, aliada às dificuldades de estabelecimento na terra e àquelas mais gerais de reprodução da agricultura familiar, faz com que a criação do assentamento, ao invés de ser um ponto final de um longo processo de lutas, seja um ponto de partida para novas demandas para sua viabilização econômica e social. A nova situação obriga os assentados a vivenciar experiências que, na sua situação de vida anterior, dificilmente ocorreriam. Passam a organizar-se, procurar os poderes públicos, demandar, pressionar, negociar, enfim um amplo espectro de atividades que os colocam frente ao exercício da participação política.
A pesquisa constatou que, nas diferentes manchas, a presença dos assentamentos provocou mudanças nas relações entre os trabalhadores que neles vivem e as autoridades locais, quer impondo a estas novas formas de atuação, quer reforçando mecanismos tradicionais de clientela (comuns em situações de precariedade), quer constituindo novas lideranças que passam a disputar espaços públicos.
As associações, presentes em 96% dos assentamentos pesquisados, são a forma predominante de organização representativa dos assentados. Sua existência é praticamente obrigatória, pois, como personalidades jurídicas dos assentamentos, formalizam os contatos com organismos do Estado e outras agências.
Com menor freqüência, foram identificadas, em alguns assentamentos, organizações representativas e associativas mais amplas, desde sindicatos e associações municipais até entidades regionais, estaduais ou nacionais, como o MST, outros movimentos de luta pela terra e as federações sindicais de trabalhadores rurais.
Constatou-se ainda, em algumas situações, a presença de representantes dos trabalhadores assentados em órgãos colegiados de gestão municipal (Conselhos de Desenvolvimento Rural, Saúde, Educação, Agricultura), em secretarias municipais de agricultura e como candidatos a cargos eletivos nas disputas locais (vereadores e prefeitos).
Esses dados indicam que a experiência política da luta pela terra (qualquer que tenha sido sua forma) acabou por produzir lideranças, formas de representação, um aprendizado sobre a importância das formas organizativas e sobre sua capacidade de produzir demandas. Assim, a existência dos assentamentos, em alguma medida, modifica a cena política local.
A presença dos assentamentos na dinâmica econômica regional
Possibilidades de trabalho e geração de emprego
Num cenário em que se destacam a crise de importantes setores da grande agricultura e as dificuldades na reprodução da agricultura familiar, ao mesmo tempo em que há um relativo fechamento do mercado de trabalho para os segmentos menos escolarizados da população, em diversas manchas os assentamentos representam uma importante alternativa de trabalho e acesso à terra.
Como já apontado, nas áreas pesquisadas a população assentada é originária do próprio município ou de municípios vizinhos, os responsáveis pelos lotes têm baixa escolaridade e enfrentavam, em momento anterior, uma instável inserção no mundo do trabalho rural/agrícola. Com a criação do assentamento, torna-se possível para essa população centrar suas estratégias de reprodução familiar e de sustento econômico no próprio lote, associando às atividades aí desenvolvidas várias outras, muitas delas também relacionadas com a existência do assentamento.
Do total da população maior de 14 anos nos projetos pesquisados, 79% trabalhavam somente no lote, 11% no lote e também fora dele, 1% somente fora do lote e 9% declararam não trabalhar. Ou seja, 90% dos assentados maiores de 14 anos trabalhavam ou ajudavam no lote, numa média de três pessoas por lote. Dos que faziam algum trabalho fora do lote (12% do total), [21] 44% o faziam em caráter eventual, 24% em caráter temporário e 31% de modo permanente. É interessante observar ainda que dos que trabalhavam fora do lote, mais da metade (56%) exercia atividades somente dentro do próprio assentamento, incluindo trabalhos não agrícolas gerados pela implantação do projeto (construção de estradas e infra-estrutura coletiva, professora, merendeira, agente de saúde, trabalhos coletivos, beneficiamento de produtos etc.).
Apesar de se configurarem nitidamente como geradores de emprego, os assentamentos também estão sujeitos à saída (temporária ou definitiva) de pessoas: 28% das famílias nos assentamentos das manchas pesquisadas já tiveram algum membro que se mudou do lote (com variações regionais, sendo o índice mais alto encontrado na mancha do Sudeste paraense e, com 38%, e o menor na Zona Canavieira nordestina, em torno de 15%). Das saídas, 42% são ocasionados pela busca de trabalho e/ou outra terra (chegando a 60% no Ceará). [22] No total, 12% dos lotes dos assentamentos pesquisados perderam membros em função da busca de trabalho.
A produção agropecuária
É bastante grande a diversidade de produtos originários dos assentamentos. O Quadro 1 apresenta, para cada mancha, os cinco produtos agrícolas com maior porcentagem de produtores que plantou, vendeu e que considerou importante na safra 1998/99. Foram incluídos, ainda, os cinco produtos com maior participação no Valor Bruto da Produção (VBP) dos lotes. [23]
Quadro 1: Principais produtos vegetais cultivados na safra 98/99, segundo o número de assentados que produzem, vendem, a importância atribuída e o Valor Bruto da Produção, por manchas*
Classificação
1o. lugar -
porcentagem
mais elevada2a. lugar –
2a. porcentagem mais elevada3a. lugar -3a.porcentagem mais elevada
4o. lugar –
4a. porcentagem mais elevada5o. lugar -
5a. porcentagem mais elevadaSul da
Assentados que produzem
mandioca
milho
banana
feijão
abacaxi
Bahia
Assentados que vendem
mandioca
abacaxi
banana
milho
cacau/ coco
(cacaueira)
Consideram importante
mandioca
banana
coco
milho
abacaxi/cacau
Valor Bruto da Produção
mandioca
abacaxi
cacau
seringa
coco
Sertão
Assentados que produzem
milho
feijão
algodão
abóbora
melancia
do Ceará
Assentados que vendem
algodão
milho
feijão
abóbora
banana
Consideram importante
algodão
milho
feijão
banana
-
Valor Bruto da Produção
milho
feijão
algodão
melancia
arroz
Entorno
Assentados que produzem
milho
arroz
mandioca
cana
feijão
do Distrito
Assentados que vendem
milho
arroz
mandioca
feijão
cana
Federal
Consideram importante
milho
arroz
mandioca
cana
feijão
Valor Bruto da Produção
mandioca
feijão
milho
arroz
soja
Sudeste
Assentados que produzem
milho
arroz
mandioca
abóbora
melancia
do Pará
Assentados que vendem
arroz
milho
abacaxi
banana
mandioca
Consideram importante
arroz
milho
abacaxi
mandioca
banana
Valor Bruto da Produção
mandioca
abacaxi
arroz
milho
abóbora
Oeste de
Assentados que produzem
milho
feijão
mandioca
arroz
batata-doce
Santa
Assentados que vendem
milho
feijão
fumo
soja
arroz
Catarina
Consideram importante
milho
feijão
fumo
soja
-
Valor Bruto da Produção
milho
feijão
fumo
soja
erva-mate
Zona
Assentados que produzem
mandioca
feijão
milho
inhame
banana
Canavieira
Assentados que vendem
mandioca
feijão
milho
inhame
banana
do
Consideram importante
mandioca
inhame
feijão
cana
milho
Nordeste
Valor Bruto da Produção
mandioca
inhame
feijão
batata
cana
Fonte: Pesquisa de Campo, 2000 (referente à safra 1998/99) e PAM, IBGE, 1999.
(*) Este quadro foi montado tomando-se, para cada mancha, os cinco produtos com maior participação percentual: de entrevistados que declararam produzir; de entrevistados que declararam vender; de entrevistados que declararam considerar o produto importante. Células com um traço significam que não houve produto com participação de pelo menos 1% do total.
Verifica-se que não há necessariamente uma coincidência entre os produtos mais cultivados, os mais vendidos e os considerados mais importantes pelos assentados, bem como entre esses e os produtos com maior VBP. Milho, mandioca e feijão são nitidamente os produtos de cultivo mais generalizado e que um maior número de assentados considera importantes, embora com diferenças entre as manchas. Essa escolha tem um valor estratégico, pois trata-se de produtos ao mesmo tempo facilmente comercializáveis e cruciais na alimentação da família. Na mesma direção, porém com menor relevância, seguem inhame, banana e arroz. Complementarmente não são desprezíveis as culturas eminentemente “comerciais”, como algodão, cana-de-açúcar, abacaxi e fumo.
Analisando a participação dos diferentes produtos agropecuários no VBP (incluindo, da criação animal, apenas leite e ovos), [24] constata-se que as dez primeiras posições (que representam 78% do VBP) correspondem a leite, mandioca, milho, feijão, ovos, arroz, abacaxi, soja, inhame, farinha de mandioca. Destes, os três primeiros representam 48% do VBP e os cinco primeiros, 61%.
Com relação à criação animal, a Tabela 5 apresenta a pauta dos produtos produzidos, vendidos e considerados importantes.
Tabela 5: Produtos pecuários produzidos, vendidos e considerados importantes pelas famílias assentadas, por manchas (em %)*
Manchas
Bovino de Corte**
Bovino de lei- te(**)
Aves
Caprinos / Ovinos
Suínos
Criam
Vendem
Impor-
tante
Criam
Vendem
Impor-
tante
Criam
Vendem
Impo-
rtante
Criam
Vendem
Impor-
tante
Criam
Vendem
Impor-
tante
Sul da BA
20
13
15
10
8
8
9
7
6
0
0
0
3
3
2
Sertão do CE
29
25
17
76
10
5
88
19
12
74
26
22
44
7
3
Entorno do DF
34
34
21
77
26
18
95
34
14
7
0,4
0
54
5
3
Sudeste do PA
58
57
43
52
40
30
89
37
13
3
2
0,6
30
8
4
Oeste de SC
39
36
26
83
34
21
97
14
4
6
0
0
83
11
7
Z. Canav. NE
30
16
13
12
2
2
64
9
6
19
6
3
3
1
1
Total Geral
38
32
24
52
20
14
80
22
10
21
7
5
34
6
3
Fonte: Pesquisa de campo, 2000.
* Os valores na tabela correspondem ao total de entrevistados da amostra. Além dos citados, um total de 83 assentados (5,3% do total) declarou outras criações/produção animal, tais como abelha e peixe.
** No caso da bovinocultura objetivava-se saber se a produção mais importante era de leite ou de corte.
Criam: porcentagem dos assentados entrevistados que declararam criar.
Vendem: porcentagem dos assentados que declararam ter vendido algum animal no ano anterior.
Importante: porcentagem dos assentados que declararam ser o produto importante. No caso das aves, o percentual relativo à venda refere-se tanto à carne quanto aos ovos.
A criação de gado bovino, tanto de leite quanto de corte, destaca-se em praticamente todas as manchas, exceto Sul da Bahia e Zona Canavieira, sendo especialmente importante no Sudeste do Pará (venda de bezerros e produção de leite), Oeste de Santa Catarina e Entorno do Distrito Federal. A criação de aves destaca-se em número de produtores, mas parece ser destinada sobretudo para consumo (carne e ovos), a não ser nas manchas do Sudeste do Pará e do Entorno do Distrito Federal, nas quais também se destina ao comércio. A criação de suínos é freqüente (com exceção das manchas do Sul da Bahia e da Zona Canavieira) e quase exclusivamente para consumo. Caprinos e ovinos alcançam alguma importância somente no Sertão do Ceará.
O extrativismo tem importância pontual em algumas manchas: piaçava no Sul da Bahia (onde 44% dos entrevistados produzem e vendem) e erva-mate no Oeste catarinense (vendida por 14% dos assentados e figurando entre os produtos com maior VBP). Ainda com alguma importância para venda aparecem a madeira em estacas no Sudeste do Pará (onde 17% declararam vender) e a lenha para carvão no Oeste catarinense. Outros produtos extrativos mencionados, com alguma importância apenas para consumo e com variações entre as manchas, são lenha, argila, madeira em toras (para cercas e construções) e ervas medicinais.
Impactos na pauta produtiva local
Um exercício de comparação entre os dados de produção obtidos pela pesquisa e os dados estatísticos secundários, pode dar alguma indicação dos impactos dos assentamentos estudados nos municípios onde se localizam. [25]
Se a comparação é feita entre a produção total realizada pelos assentados (a partir de uma estimativa aproximada da produção dos assentamentos para o ano agrícola 1998/99) e a produção verificada nos municípios (pelos dados da PAM/PPM de 1999 e do Censo Agropecuário de 1996), verifica-se que, de modo geral, os assentamentos inequivocamente contribuem para diversificar as pautas de produtos agropecuários, introduzindo novos cultivos e incrementando significativamente a produção de alguns itens secundários das pautas locais. Mesmo em relação a certos produtos já tradicionais nos municípios, os assentamentos se destacam.
Assim, no Sul da Bahia, mesmo com apenas 2,3% da área total dos estabelecimentos agropecuários dos municípios da mancha, os assentamentos destacaram-se na produção de abacaxi, laranja, leite, maracujá, milho, arroz, batata-doce, fumo, mamão e ainda abóbora, acerola, ovos, pepino, quiabo e tomate (na comparação com o Censo de 1996). Na mancha do Sertão do Ceará, os assentamentos (23,7% da área) tiveram importante participação na produção de ovos e, na comparação com o Censo de 1996, também na de algodão. Nessa região, porém, não tiveram maiores efeitos quanto à renovação da pauta produtiva regional. Na mancha do Entorno do Distrito Federal, que ocupa apenas 5,4% da área dos estabelecimentos agropecuários, os assentamentos introduziram o cultivo de batata-doce e destacaram-se na produção de maracujá, ovos, sorgo e ainda (na comparação com o Censo de 1996) de farinha de mandioca e mandioca. Na mancha do Sudeste do Pará, na qual os assentamentos ocupam 40,4% da área, destacou-se a produção de arroz, leite, ovos, soja e ainda (na comparação com o Censo) de abóbora, acerola, cana, cupuaçu, fava, gergelim, inhame, lenha, mel, melancia, polvilho e quiabo. Foram ainda responsáveis pela introdução de gengibre e mudas de laranja. Com relação ao abacaxi, cuja introdução na região como produto comercial teve importante participação dos assentamentos, estes vêm perdendo posição relativa como produtores. [26] Na mancha do Oeste de Santa Catarina, os assentamentos (11,2% da área) se destacam na produção de feijão, mandioca e ovos. Na comparação com o Censo de 1996, é importante (com variações entre os municípios) a produção de abóbora, amendoim, arroz, batata, batata-doce, cebola, erva-mate e lenha para carvão. Com relação a esta mancha, cabe ressaltar o papel de vanguarda que os assentamentos vêm assumindo na criação de formas coletivas para transformação agroindustrial dos produtos. Na mancha da Zona Canavieira nordestina, por sua vez, os assentamentos (18,4% da área) introduziram produtos como o cultivo do açafrão, castanha de caju e gergelim, e se destacam (com diferenças municipais) na produção de amendoim, feijão, maracujá, milho, abacaxi e ainda (na comparação com o Censo de 1996) abóbora, lenha, repolho, batata-doce, farinha de mandioca, melancia. A cana, que ainda predomina na região como um todo, não é um produto importante nas áreas de assentamento, exceto em alguns projetos específicos.
Com relação à pecuária, destacam-se a criação de gado bovino na mancha do Sudeste do Pará (onde o rebanho dos assentamentos corresponde a 26% do rebanho regional); a de suínos nessa mesma região (22% do rebanho); a criação de ovinos e caprinos no Sertão do Ceará (27%), Sudeste do Pará (24%) e Zona Canavieira nordestina (onde o rebanho dos assentamentos chega a 45% do rebanho regional). A criação de aves destaca-se no Sertão do Ceará (32% do número de aves nos municípios), no Entorno do Distrito Federal (48%) e no Sudeste do Pará (56%).
Como se pode observar, é grande a diversidade de produtos em áreas antes monocultoras ou de pecuária extensiva, significando uma espécie de reconversão produtiva em regiões de crise da agricultura patronal, em alguns casos contribuindo para uma reorganização dos sistemas de uso dos solos. A diversificação na pauta de produtos tem efeitos também sobre os próprios assentados, uma vez que a coexistência entre produção destinada à subsistência e produtos para o mercado constitui-se numa forma de resguardo das famílias face aos problemas de comercialização, além de significarem uma melhoria quantitativa e qualitativa na alimentação.
Produtividade, assistência técnica e padrão tecnológico
No caso dos produtos mais relevantes, buscou-se comparar a produtividade média dos assentamentos nos municípios (safra 1998/99) com a produtividade média municipal no Censo Agropecuário (1996). [27] Esse cotejamento revelou que, em 42% dos casos, os projetos obtiveram uma produtividade maior do que aquela encontrada na média dos estabelecimentos agropecuários da região. Em 11%, ela ficou ao redor dessa média e, em 48%, situou-se bem abaixo da média, com variações entre as manchas.
A produtividade alcançada pelos assentamentos não pode ser desvinculada do acesso à assistência técnica e do padrão tecnológico adotado. Na amostra pesquisada, apenas 55% dos assentamentos tiveram, na safra de 1998/99, uma presença freqüente de agentes de assistência técnica, enquanto 22% tiveram um acesso irregular e 13% enfrentaram a sua ausência, com variações importantes entre as manchas. [28] Na maior parte dos projetos em que a assistência técnica estava presente, e com maior regularidade, esta era realizada por técnicos ligados ao programa Lumiar (cerca de 80% dos casos), criado em 1996/1997 e extinto em 1999. [29]
Com relação ao padrão tecnológico, a grande diversidade de situações e sistemas produtivos (tipos de solo e relevo, cultivos mais ou menos suscetíveis a pragas e doenças, modelos de produção etc.) dificultou comparações e conclusões mais definitivas. No entanto, três aspectos podem ser destacados. O primeiro deles é que, apesar de haver uma significativa variação entre as manchas (e mesmo dentro delas) no que se refere ao acesso a instalações, máquinas e equipamentos, implementos e uso de insumos, ela parece reproduzir diferenciações tecnológicas entre as regiões (mesmo que num patamar às vezes ligeiramente diverso daquele existente no seu entorno). O segundo é que o acesso aos meios de produção ainda é precário para parte significativa dos assentados. O terceiro é que, mesmo com a precariedade encontrada, verifica-se que a condição de assentado permite acesso às novas possibilidades produtivas.
Um exemplo ilustrativo do primeiro aspecto é o uso de fertilizantes orgânicos e inorgânicos. Há grande diferenciação entre as manchas nas porcentagens de assentados que os utilizaram (variando de 3% na mancha do Sertão do Ceará para 88% no Entorno do Distrito Federal, no caso dos fertilizantes inorgânicos). No entanto, quando se comparam os assentamentos com os estabelecimentos do Censo, na maioria dos casos os primeiros acompanham os índices municipais de utilização.
Quanto ao acesso às instalações, nos lotes pesquisados, 57% declararam possuí-las. Entre estes últimos, o número médio é de 2,36, apontando uma carência de infra-estrutura nos lotes dado que, entre as instalações, estão incluídas as utilizadas para criação animal (que apareceram com maior freqüência, como curral, galinheiro, chiqueiro, pasto cercado, estábulo etc.), armazenamento de água (açudes, tanques), secagem e armazenamento da produção (galpões, silos, terreiros, barracões), beneficiamento da produção, entre outras.
Finalmente, com relação ao terceiro aspecto, um exemplo é a utilização de máquinas e equipamentos. Apenas 65% dos entrevistados declararam ter utilizado algum tipo de máquina ou equipamento durante a safra 1998/99. [30] Ou seja, cerca de um terço dos assentados nos projetos pesquisados não teve acesso a nenhuma máquina e equipamento a não ser as ferramentas manuais mais básicas (enxada, foice, facão). Dentre os que tiveram acesso, a utilização foi baixa, com uma média de 1,7 máquina/equipamento por lote que utilizou. Cerca de metade (48%) das máquinas e equipamentos utilizados é própria, sendo a restante alugada, muitas vezes da própria associação ou cooperativa dos assentados. Entre os próprios, 76% foram adquiridos depois da criação do assentamento. Dessa forma, embora os números sejam pequenos em termos absolutos, quando comparados com a situação anterior revelam que a condição de assentado ampliou para essa população o acesso aos meios de produção.
A análise do financiamento para instalações, máquinas e equipamentos aponta para um problema de oferta de crédito de investimento nos assentamentos, repercutindo diretamente sobre as possibilidades produtivas dos assentados. Além de uma parte destes estar excluída do acesso a esses bens, entre aqueles que têm acesso, um grupo os adquiriu com recursos próprios. Por exemplo, em 67% dos lotes que têm instalações, estas foram financiadas com recursos próprios dos assentados e em apenas 22% dos casos houve financiamento oficial, com destaque para o Programa Especial de Crédito para a Reforma Agrária (Procera). Já no caso de máquinas e equipamentos, metade (55%) foi adquirida com recursos próprios e em apenas 30% dos casos o Procera viabilizou o acesso. [31]
Acesso a créditos
É apenas a partir da condição de assentados que este segmento de trabalhadores rurais passou a ter acesso aos mecanismos de crédito rural para custeio da produção, ainda que esse processo esteja marcado por grandes dificuldades: 93% das famílias entrevistadas nunca tinham tido acesso a crédito antes. Além disso, na medida em que os recursos mobilizados para o crédito impulsionam um conjunto de atividades locais, aumentam a circulação monetária no município e estabelecem um diálogo direto e particular com o Estado, por meio de suas políticas públicas e agentes financeiros.
Na safra 1998/99, 66% das famílias entrevistadas tomaram crédito para o custeio, num valor médio em torno de R$ 2.200,00, indicando uma razoável cobertura. [32] A principal fonte de recursos foi o Procera, acessado por 88% das famílias entrevistadas que tiveram acesso ao crédito. No entanto, mais da metade (59%) dos entrevistados que tomaram crédito indicou dificuldades no acesso. A principal queixa (78% do total de reclamações) diz respeito ao atraso na liberação dos recursos, fato que na agricultura compromete significativamente os resultados, pois eles não chegam no momento do ciclo agrícola em que são mais necessários.
Vários depoimentos colhidos pelos pesquisadores apontaram que o crédito concedido aos assentamentos repercute diretamente na dinâmica do comércio local dos municípios próximos, nos quais boa parte dos assentados faz suas compras. Uma estimativa do valor total do crédito emprestado aos assentados nos municípios pesquisados (safra 1998/99) mostra que eles representaram 12,5% do total do crédito rural movimentado nesses mesmos municípios, com grande variação entre as regiões: enquanto nos municípios das manchas do Oeste catarinense, do Entorno do Distrito Federal e do Sul da Bahia essa proporção está abaixo de 8%, nas outras três manchas essa participação é bem mais significativa, ficando acima de 30%, chegando a 80% na Zona Canavieira nordestina.
Impactos na comercialização
Com relação à comercialização da produção, a pesquisa revelou que os assentamentos tanto podem reproduzir situações locais preexistentes, sem inovar os canais de comercialização, quanto podem criar novas possibilidades ou alterar o alcance de antigos canais. Vale lembrar que a situação precária das estradas e outros aspectos negativos da infra-estrutura repercutem nas condições e possibilidades de venda dos produtos.
Em todas as manchas os atravessadores têm um peso significativo. No entanto, a presença dos assentamentos, ao aumentar o volume de produção e/ou introduzir novos cultivos, em alguns casos favoreceu o surgimento de outros circuitos de atravessadores que, mesmo numa moldura tradicional, representam novos canais que repercutem também na agricultura local.
A presença dos assentamentos provocou, em vários municípios analisados, o crescimento da oferta, diversificação e rebaixamento dos preços dos produtos alimentícios, com repercussões especialmente nas feiras livres, como o aumento do espaço físico e do número de dias de ocorrência das feiras e a maior presença dos assentados como feirantes, regulamentados ou não, em concorrência com os feirantes “profissionais”.
Também verificou-se uma importância relativa das vendas dentro dos próprios assentamentos (para outros assentados), revelando que os projetos podem, em alguns casos, se tornar, eles mesmos, mercados para os produtos dos assentados, especialmente onde há maior densidade de famílias.
Formas associativas de comercialização (e de beneficiamento de produtos) também vêm sendo experimentadas em vários núcleos, com a criação de pontos de venda próprios (feiras de produtores ou espaços alternativos ao longo das rodovias), formas cooperativas de comercialização, implantação de pequenas agroindústrias, constituição de marcas próprias para comercializar a produção. Essas iniciativas associativas, em alguns casos, têm um peso importante na comercialização dos produtos e, para além do seu significado econômico, têm também a função de transformar a comercialização num momento de afirmação social e política da identidade de assentados e do sucesso da experiência dos assentamentos. [33]
Impactos nas condições de vida da população assentada
Os recursos oriundos da comercialização do que é produzido no lote não são a única fonte de rendimentos familiares, ainda que tenham um peso importante em todas as manchas analisadas. Como diversos estudos (não somente em assentamentos) vêm demonstrando, a reprodução das unidades familiares rurais ultrapassa a dimensão exclusivamente agropecuária, mesclando um conjunto de iniciativas que viabilizam financeiramente o grupo doméstico.
Em virtude da dimensão da pesquisa e da complexidade de análise da renda na agricultura familiar, ao invés de renda monetária, optou-se por trabalhar com a noção de capacidade de geração de renda, ou seja, uma aproximação que deve ser tomada com uma série de ressalvas. [34] Foram considerados três tipos de rendimentos: a renda oriunda da comercialização dos produtos do lote, as advindas do trabalho realizado fora do lote e, por fim, outras rendas e ajudas financeiras recebidas (aposentadorias, pensões etc.). Procuramos complementar essa análise com aspectos da condição de vida dos assentados, relativizando a variável renda como único elemento de medida.
O acesso à terra permite às famílias uma maior estabilidade e rearranjos nas estratégias de reprodução familiar que resultam, de modo geral, em uma melhoria dos rendimentos e das condições de vida, especialmente quando se considera a situação de pobreza e exclusão social que caracterizava muitas dessas famílias antes de seu ingresso nos projetos de assentamento.
A análise da composição dos rendimentos (ou melhor, da capacidade de geração de renda) relativos à safra 1998/99 mostra não só a importância da renda do lote em todas as manchas, como também o peso de outras fontes de rendimento, como as aposentadorias e pensões e as diversas formas de trabalho fora do lote. Na média geral, a renda do lote corresponde a 69%, as atividades de trabalho externo a 14% e os benefícios previdenciários a 17%, com diferenças regionais.
Os rendimentos médios brutos mensais da família, para o conjunto da amostra, são de R$ 312,42, variando de um mínimo de R$ 116,74 na mancha do Ceará até 438,72 na mancha de Santa Catarina, havendo também diferenças dentro das manchas. Se, a partir desses dados, o rendimento mensal per capita for estimado e comparado com um parâmetro aceitável para uma definição de limiar de pobreza que leve em conta as especificidades da condição dos assentados (adotando para essa finalidade o valor de meio salário mínimo per capita), vê-se que o rendimento médio da amostra está acima desse valor, refletindo uma situação de êxito relativo das famílias assentadas, porém com importantes variações regionais. Os assentamentos das manchas do Sertão cearense e da Zona Canavieira nordestina não alcançaram esse patamar, indicando uma situação de precariedade relativa na capacidade de geração de renda das famílias instaladas nessas regiões, cabendo, no entanto, lembrar que, na safra em questão, as condições climáticas não foram favoráveis, especialmente no caso cearense, em razão da ocorrência de secas.
Embora a análise da renda dos assentados tenha sido até o presente momento constantemente chamada ao debate por alguns, para provar o sucesso, e por outros, para indicar a pouca eficácia dos assentamentos de reforma agrária, optou-se por um caminho distinto que relativiza essa variável. Nossa preocupação foi ir mais além e tentar qualificar um pouco melhor as condições de vida dos assentados, sua possibilidade de acesso a serviços e bens e a forma como eles vivenciam essa nova situação e as oportunidades que elas oferecem.
Ao comparar suas condições de vida anteriores ao assentamento com as atuais, 91% dos assentados entrevistados apontaram uma melhoria ou consideraram que houve uma melhoria depois da chegada ao assentamento. Uma análise mais global de alguns aspectos parece corroborar essa percepção. É interessante notar que as manchas do Sertão do Ceará e da Zona Canavieira do Nordeste (cujos rendimentos não alcançaram a linha de pobreza na análise anterior) estão entre as que apresentam os maiores índices de percepção de melhoria: 95% e 92%, respectivamente.
Com relação à alimentação, 66% dos assentados apontaram uma melhora, sendo que essa percepção foi mais pronunciada na Zona da Mata nordestina (82%). Pode-se supor que o acesso à terra e a possibilidade de plantio e de criação animal para o consumo, resultando na já citada diversidade de produtos cultivados, por si sós já garantam condições de alimentação para as famílias assentadas. Conforme mencionado anteriormente, as condições de habitação também apresentaram mudanças positivas.
Quando indagados sobre o seu poder de compra, 62% dos assentados, em média, perceberam melhoras (sendo que 23% consideram que permanece igual), com variações regionais. Também nesses casos os índices maiores foram encontrados nas manchas do Ceará e da Zona Canavieira do Nordeste, nas quais 68% dos assentados consideram que seu poder de compra aumentou. A análise da posse de bens duráveis corrobora essa percepção. Não obstante as variações, em todas as manchas aumentou o número de famílias que possuem fogões a gás, geladeiras, televisores, antenas parabólicas, máquinas de lavar e transporte próprio (especialmente bicicletas e animais, mas houve também um crescimento significativo dos que possuem carros e motos, mesmo que continuem sendo poucos, 8% e 7%, respectivamente). As melhorias no padrão de habitação e na posse de bens duráveis também contribuíram para uma dinamização do comércio local.
Apesar da relativa precariedade de suas condições, o quadro é de muita esperança quando os assentados avaliam o futuro de suas famílias. No total geral, 87% dos entrevistados acreditam que o futuro será melhor, com pouquíssima variação entre as manchas. Como indicam outros trabalhos e os dados da presente pesquisa reiteram, os assentados mostram-se confiantes em relação ao futuro, tendo o acesso à terra consolidado uma perspectiva de maior estabilidade a longo prazo.
Considerações finais
A magnitude dos conflitos sociais que brotam em torno da luta pela terra no Brasil, a adoção pelos movimentos sociais de formas de luta que se revelaram eficazes (como as ocupações coletivas de terra) e sua concentração em determinadas regiões, muitas delas com os sistemas produtivos das grandes propriedades em crise, acabaram por forçar uma ação desapropriatória do Estado, culminando na criação de vários assentamentos num mesmo município ou em municípios próximos. Esse processo deu origem às manchas analisadas pela pesquisa, algumas das quais se constituindo quase que em verdadeiras “áreas reformadas”, contrapondo-se à lógica de desapropriações isoladas e, por si só, criando uma nova dinâmica na região em que se inserem.
Como demonstramos ao longo deste artigo, as mudanças operadas pela presença dos assentamentos são bastante variadas, em função dos contextos específicos em que esses se geraram, da densidade de projetos existentes, das trajetórias dos assentados e da diversidade regional das políticas públicas.
Em certa medida, a criação dos assentamentos acarretou redistribuição fundiária e viabilizou o acesso à terra a uma população de trabalhadores rurais geralmente já residente na própria região, mas não alterou de forma radical o quadro de concentração de terra, no âmbito das manchas: as alterações na estrutura agrária são visíveis somente no plano local. A experiência de luta pela terra, a existência do assentamento como espaço de referência para políticas públicas, a precariedade da infra-estrutura, entre outros fatores, fazem com que os assentamentos tornem-se ponto de partida de novas demandas, propiciando a afirmação de novas identidades e interesses, o surgimento de formas organizativas interiores ao projeto (e também mais amplas) e a busca de lugares onde se façam ouvir. Com isso, os assentamentos acabam trazendo mudanças na cena política local, com a presença dos assentados nos espaços públicos e nas disputas eleitorais.
Em algumas das manchas analisadas, os assentamentos têm provocado um redesenho da zona rural, modificando a paisagem, o padrão distributivo da população e o traçado das estradas, levando à formação de novos aglomerados populacionais, mudando o padrão produtivo, às vezes estimulando a autonomização de distritos e mesmo a criação de novos municípios.
Nas manchas estudadas a criação dos projetos possibilitou, para uma população de baixa escolaridade, no momento anterior vivendo uma instável e precária inserção no mundo do trabalho, a centralização de suas estratégias de reprodução familiar no próprio lote, embora recorrendo a outras fontes complementares de renda e trabalho fora dele. A presença dos assentamentos também acaba gerando postos de trabalho não agrícolas (construção de casas, estradas, escolas, contratação de professores, surgimento de transporte alternativo etc.). Além de criar empregos, os projetos acabam servindo como amparo social a parentes, operando, em alguns casos, como mecanismo de recomposição de famílias. Quanto à atividade produtiva, uma das principais mudanças trazidas pelos assentamentos refere-se à oferta no mercado local de uma maior diversidade de bens, especialmente em áreas antes monocultoras ou de pecuária extensiva. Alguns assentados introduziram inovações no beneficiamento de produtos e nas formas de comercialização. A condição de assentado possibilitou a essa população, pela primeira vez, o acesso ao crédito para produção, ainda que essa integração ao mercado financeiro esteja marcada por um conjunto significativo de dificuldades. O volume de crédito mobilizado em função dos assentamentos repercute também no comércio local e regional e dinamiza outras atividades, como a construção civil.
A criação dos assentamentos permite uma maior estabilidade e rearranjos nas estratégias de reprodução familiar que resultaram em uma melhoria nas condições de vida dos assentados, aumentando sua capacidade de consumo, não só de gêneros alimentícios, mas também de bens de consumo em geral, eletrodomésticos, insumos e implementos agrícolas. Com isso, eles acabam dinamizando o comércio local, tendência que se acentua nos casos de elevada concentração de assentados.
Em muitos lugares, os assentados obtiveram reconhecimento social e político ante os demais grupos sociais, superando uma tensão que aparecia inicialmente, muitas vezes marcada por uma visão de que os assentados eram forasteiros ou arruaceiros (especialmente nas áreas onde os assentamentos foram resultado de ocupações de terra). Para além das questões econômicas, criam-se novos atores sociais e resgata-se a dignidade de uma população historicamente excluída. Foram comuns os depoimentos sobre o sentido do que é ser assentado, principalmente nas áreas onde predominaram as monoculturas e as relações de poder que as marcam. Não pagar renda da terra, sentir-se liberto, senhor de seus passos e capacitado para controlar sua vida, deixar de ser escravo, foram elementos recorrentes nas falas dos assentados quando contrastam o passado com o presente. Por mais que este seja prenhe de dificuldades, o acesso à terra provocou em muitos casos rupturas e uma sensação nítida de melhora.
Foram constatadas, nas manchas estudadas, importantes mudanças trazidas pelos assentamentos, também ficou evidente a precariedade de serviços de saúde, escola, infra-estrutura, acesso a assistência técnica etc., indicando, por um lado, uma insuficiente intervenção do Estado no processo de transformação fundiária e, por outro, forte continuidade em relação à situação de precariedade material que marca o meio rural brasileiro.
Referências bibliográficas
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Schmidt, Benício; Marinho, Danilo; Rosa, Sueli. (orgs.). Os Assentamentos de Reforma Agrária no Brasil. Brasília: UNB/DATAUNB, 1998.
Notas
[1] Este artigo sintetiza alguns dos resultados da pesquisa “Os impactos regionais da reforma agrária: um estudo sobre áreas selecionadas”, realizada entre janeiro de 2000 e dezembro de 2001, pelo CPDA/UFRRJ e Nuap/PPGAS/MN/UFRJ, com financiamento do Nead e IICA. O estudo foi coordenado por Beatriz Heredia (IFCS/UFRJ), Leonilde Servolo de Medeiros (CPDA/UFRRJ), Moacir Palmeira (Nuap/PPGAS/MN/UFRJ), Sérgio Leite (CPDA/UFRRJ) e Rosângela Cintrão. Um resumo do mesmo, base para a preparação do presente artigo, foi elaborado por Rosângela Cintrão e John Comerford, sob orientação dos coordenadores do projeto, e encontra-se disponível em www.nead.gov.br.
[2] A escolha das manchas levou também em conta a existência de estudos preexistentes sobre os projetos de assentamento, bem como a possibilidade de contar com equipes com experiência de pesquisas sobre essas regiões. Evitou-se coincidência com as áreas estudadas pela pesquisa “Impactos regionais dos assentamentos rurais: dimensões econômicas, políticas e sociais”, que abrangeu os estados do Acre, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo e Sergipe (Medeiros e Leite, 2002). A coordenação das equipes regionais ficou a cargo de Aloísio Lopes Melo (Sudeste do Pará), Ana Cláudia Silva e Rodrigo de Ávila (Sul da Bahia), José Ambrósio Ferreira Neto (Entorno do Distrito Federal), César Barreira e Francisco Amaro de Alencar (Sertão do Ceará), Emília de Rodat Moreira e Marilda Menezes (Zona Canavieira nordestina) e Renato Maluf (Oeste de Santa Catarina).
[3] A determinação do conjunto de municípios de cada mancha considerou que a amostra deveria abranger 10% das famílias assentadas em cada município e que o número de questionários aplicados deveria girar entre 100 e 300 por mancha, de forma que a amostragem final total do conjunto das manchas não ultrapassasse em muito 1.500 questionários, representativos de 15.000 famílias nelas assentadas entre 1985 e 1997.
[4] Para cada projeto pesquisado foi feito um "perfil" visando o levantamento de informações gerais sobre o assentamento. Nem todos os projetos existentes no município e criados entre 1985 e 1997 foram objeto de aplicação de questionários. No entanto, a amostra de questionários corresponde a 10% das famílias assentadas em todos os projetos. Um questionário bem amplo foi aplicado ao responsável pelo lote (pessoa que o gerencia, em geral o/a chefe da família, independentemente de ser ou não legalmente o/a titular). Desta forma, cada questionário corresponde a uma unidade familiar de produção. O estudo também se utilizou de entrevistas qualitativas com representantes de diversas instituições locais e regionais, levantamento de bases cartográficas, relatórios técnicos e fontes estatísticas de dados secundários.
[5] Além desses, houve também um caso, no município de Abelardo Luz (SC), em que a iniciativa do pedido de desapropriação veio de uma prefeitura, sem existência de conflito anterior.
[6] Enquanto em Santa Catarina os processos que levaram à implantação dos assentamentos duraram em média dois anos e meio, na mancha do Sudeste do Pará, a defasagem mínima entre a ocupação da área pelos posseiros e a instalação oficial do assentamento foi de cinco anos; em quatro assentamentos foi igual ou superior a dez anos, chegando a 26 anos no caso de Agrisa, em Floresta do Araguaia, no Pará.
[7] Essa distribuição coincide, em linhas gerais, com os dados do país como um todo, quer se considere apenas os assentamentos promovidos pelo Incra, quer se considere também projetos de colonização, reassentamentos e outras formas de iniciativa federal, estadual ou municipal, como faz o Dataluta (Nera, 1999). Segundo esta fonte, dos 4.264 projetos do período 1985-1999, 14% foram criados entre 1985-89, 11% entre 1990-94 e 75% entre 1995-99.
[8] A única exceção é a mancha do Oeste catarinense, na qual é alto o índice dos que viviam em outras regiões do mesmo estado (29%), o que pode ser explicado pelas características da luta pela terra na região. No Entorno do Distrito Federal e no Sudeste do Pará há uma porcentagem relativamente elevada de pessoas nascidas em outros estados, indicando que, provavelmente, os assentamentos estão atingindo populações resultantes de processos migratórios anteriores. Quanto aos responsáveis que viviam antes em zona rural, os menores índices aparecem no Entorno do Distrito Federal e no Sul da Bahia, respectivamente 62% e 66%.
[9] As porcentagens se referem ao total de pessoas em idade de trabalho, ou seja, inclui tanto os/as responsáveis pelo lote quanto outros moradores do lote com mais de 14 anos no momento de criação do projeto. A categoria "membros não remunerados da família" inclui pessoas que trabalhavam com os pais (ou outros parentes), agricultores familiares e também as respostas referentes a “dona de casa”.
[10] Considerando para essa média apenas os lotes com presença de filhos.
[11] Os índices de outros parentes que viviam em áreas urbanas antes de vir para o assentamento atingem 52% na mancha do Entorno do Distrito Federal, 42% no Sul da Bahia, cerca de 30% na Zona Canavieira, 33% em Santa Catarina e 22% no Ceará.
[12] Isso possivelmente traduz uma pressão do movimento sindical pela não-exclusão, na hora da seleção dos assentados, de uma parte dos que estiveram juntos ao longo de todo um processo de luta. Algo do gênero se passou no Ceará, com a recusa dos assentados à divisão em lotes.
[13] As três manchas têm em comum a predominância de fazendas de pecuária extensiva e (como será tratado adiante) a tendência de a pecuária continuar hegemônica nos assentamentos.
[14] Um bom exemplo é o que ocorreu no município de Paracatu, no Estado de Minas Gerais: em 1996, antes da existência de assentamentos, havia 500 estabelecimentos com menos de 50 ha., correspondendo a 31,57% do número e 1,8% da área total dos estabelecimentos. Se forem agregados o número e a área ocupada por lotes dos assentamentos implantados até 1999, todos eles produtos do desmembramento de propriedades com mais de 1000 ha, tem-se um aumento de 239,8% do número de estabelecimentos e de 400,48% da área nesse estrato, elevando a sua participação no total de estabelecimentos do município para 52,52% dos estabelecimentos e 7,39% da área ocupada.
[15] Outra maneira de apreender o impacto fundiário dos assentamentos seria o uso do índice de Gini, que é um indicador específico. Um dos maiores problemas para a utilização desse indicador foi o descompasso entre a data do último censo agropecuário (1995/96) e o período de implantação de grande parte dos assentamentos nas manchas pesquisadas.
[16] Foi feita uma tentativa de estabelecer paralelos entre o processo de implementação dos assentamentos rurais e seu impacto sobre a dinâmica demográfica e migratória nas regiões estudadas, a partir de análises do Censo Demográfico. No entanto, esta revelou dificuldades pelo risco de atribuir aos assentamentos efeitos que, na verdade, ocorreriam sem sua presença ou, inversamente, em nome dessa dinâmica mais ampla, de negar qualquer participação dos assentamentos nas mudanças demográficas.
[17] Esse quadro agrava-se ainda mais quando se considera a data efetiva de entrada das famílias na área do projeto: neste caso, a liberação dos créditos-fomento se deu em média quase quatro anos depois e o crédito-habitação, cinco anos. Os dados referentes ao Oeste catarinense rebaixam consideravelmente a média, talvez em função da maior capacidade de pressão dos agricultores.
[18] As maiores distâncias médias encontram-se nas manchas do Entorno do Distrito Federal (45 quilômetros) e do Sudeste do Pará (40 quilômetros), embora, nesta última região, o tempo médio de deslocamento seja bem maior (90 minutos contra 66 minutos para o Entorno do Distrito Federal).
[19] Programa criado pelo governo federal a partir de reivindicação dos movimentos de trabalhadores (especialmente do MST).
[20] Só em quatro casos, em toda a amostra, foi mencionada a presença diária desses profissionais. Nos demais, eles estão presentes algumas vezes na semana. Em sete dos assentamentos, uma vez por mês. Os médicos que atendem são, via de regra, clínicos gerais. Foram constatados um caso de presença de ginecologista e outro de pediatra. Somente em um dos assentamentos (município de Goiana, em Pernambuco) foi encontrado um corpo médico que envolve clínica geral, pediatria, ginecologia e odontologia.
[21] Somando os que trabalham somente fora do lote, ou no lote e também fora dele.
[22] Das demais saídas, 35% estão relacionadas com casamento, 18% com estudo e o restante com problemas de saúde, desavenças familiares ou internas ao assentamento.
[23] O VBP foi obtido multiplicando a produção total declarada pelos preços praticados regionalmente. Trata-se de uma aproximação, pois nem todos os produtos são vendidos e o preço da venda efetivamente obtido pelos assentados nem sempre é o regional.
[24] Por falta de dados sobre quantidade produzida no ano que antecedeu a pesquisa de campo, houve dificuldade no cálculo do VBP para criação animal, a não ser no caso de leite e ovos.
[25] Os dados utilizados foram os do Censo Agropecuário de 1996 e da PAM/PPM (Pesquisa Agrícola Municipal e Pesquisa Pecuária Municipal), ambas do IBGE. Há uma defasagem temporal entre os anos de coleta dos dados (dados referentes a diferentes safras) e a incerteza da inclusão ou não dos dados dos assentamentos nos recenseamentos e pesquisas amostrais do IBGE.
[26] No caso do Pará, a combinação de significativa participação na área total dos estabelecimentos com as inovações e modificações introduzidas pelos assentamentos permitiu um impacto importante no perfil produtivo regional. Além da diversificação e ampliação da oferta de produtos para o mercado local (tanto básicos, como feijão, arroz, mandioca, milho para criação de aves e suínos, quanto hortaliças, frutas, aves, produtos extrativos e de origem animal), as atividades dos assentados foram determinantes para a implantação de unidades agroindustriais com a produção destinada aos mercados locais (beneficiamento de arroz, laticínios), e também regionais ou nacionais (laticínios, abatedouros, polpa de abacaxi).
[27] Para cada mancha e cada município, comparou-se a produtividade dos principais produtos (em termos de número de assentados que produzem, vendem, consideram importante e da participação no VBP), num total de 146 casos.
[28] Os melhores índices aparecem no Oeste catarinense (onde 74% dos assentamentos tiveram acesso freqüente à assistência técnica). Os piores, no Sul da Bahia (apenas 21% dos assentamentos com presença freqüente) e no Entorno do Distrito Federal (43% com ausência de assistência técnica).
[29] Os governos estaduais (através das Ematers) também realizaram ações de assistência técnica, em especial nas manchas do Sertão do Ceará, do Sudeste do Pará e do Entorno do Distrito Federal. Mas, no geral, há um elevado percentual de projetos não atendidos.
[30] Foi considerada uma ampla gama de máquinas e equipamentos: trator, colheitadeira, plantadeira (inclusive manual), microtrator, tração animal, equipamento de irrigação, carroças, carretas, caminhões e utilitários, máquinas e equipamentos de beneficiamento (trilhadeira, descascador, debulhador, classificador etc.), equipamentos para criação animal (picadora, forrageira, ensiladeira, ordenhadeira, resfriador de leite etc.), motos-serra e outros. Não foram considerados enxada, foice e facão.
[31] Em ambos os casos (instalações e máquinas/equipamentos) podem ter sido declarados como “recursos próprios” outros créditos, não específicos para investimento (como por exemplo fomento e alimentação), o que de qualquer forma não invalida o argumento sobre a carência de créditos de investimento. Nos projetos com presença de grupos coletivos parece haver mais facilidade de acesso a linhas de crédito para investimento (tanto no caso do Procera como no do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar-Pronaf). Por exemplo, mais da metade (52%) das máquinas e equipamentos de propriedade de grupos coletivo foi financiada através de Procera, do Pronaf e do Fundo Constitucional do Nordeste (FNE).
[32] Há variações entre as manchas: o maior acesso se deu no Sertão do Ceará, onde 83% das famílias tomaram crédito, sendo, no entanto, a mancha com menor valor médio: R$ 553,81. A mancha com menor acesso foi o Sul da Bahia (apenas 43% das famílias tiveram acesso a um valor médio de R$ 1.608,14). Os maiores valores médios foram no Pará: R$5.698,00.
[33] Um exemplo é uma cooperativa regional ligada ao MST no Extremo Oeste de Santa Catarina, na qual as atividades comerciais, creditícias e sobretudo as iniciativas no ramo agroindustrial (por exemplo, produção de leite longa-vida) têm grande significado para as perspectivas econômicas dos assentados.
[34] Dadas as complexidades para cálculo dos rendimentos do lote numa pesquisa como esta (com tempo curto, grande abrangência e na qual a renda era apenas um dos elementos da análise) e para não tornar o questionário demasiado longo, optou-se por levantar apenas os itens produzidos, a produção total e os produtos vendidos. Não foram levantados nem a quantidade vendida nem os preços efetivamente recebidos/época do ano em que foram vendidos, nem os custos de produção. Para o cálculo dos rendimentos (capacidade de geração de renda) dos lotes, considerou-se que a produção comercializada era idêntica à produção total (dos produtos vendidos) e multiplicou-se pelos preços médios municipais/regionais (tomando por base fontes estatísticas secundárias da mesma safra, como a PAM/PPM). Com isso, por um lado, houve uma superestimação dos rendimentos, pois nem sempre toda a produção é vendida (especialmente nos casos dos produtos de duplo destino), tendo-se os rendimentos brutos (não se considera os custos de produção). Por outro lado, há uma subestimação do potencial de renda ao não se estimar a renda dos produtos exclusivamente de autoconsumo, contrabalançando a superestimação anterior.