Estudos Sociedade e Agricultura

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Eli Napoleão de Lima

Amazônia: história, mitos e imagens


Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 91-93.

Eli Napoleão de Lima é professora da UFRRJ/CPDA.


A Amazônia está novamente em pauta. Em dezembro de 1988 o assassinato de Chico Mendes fez-se acompanhar de nova onda de notícias sobre a região. Já antes disso corria mundo a informação de que a região ardia em chamas. Estava sendo devastada a maior e mais rica reserva genética do Planeta em biodiversidade.

Em 1989 o grande tema privilegiado da modernidade era o meio ambiente e a sobrevivência da humanidade. A revista Time (de 2 de janeiro de 1989) elegeu como homenageado do ano o Planeta Terra em perigo.

Tem sido assim: volta e meia uma avalanche de informações desencontradas, difusas, invade as capas das revistas nacionais e estrangeiras; e, como se fosse necessário tomar atitudes bruscas, apela-se para a pregação do cataclismo, do início ou quase já do fim.

Historicamente, a Amazônia tem sido enfrentada grandiosamente, de forma deslumbrante, paradisíaca; ou de maneira decepcionante, grotescamente desfigurada.

É assim em meio da imagem de uma Amazônia-pátria-do-mito, de 300 anos de pilhagem e de conflitos, diante de sua mundialização a partir da crise internacional (explosão demográfica, déficit da produção alimentar, ecologia), que devemos definir nosso trabalho investigativo, com a intenção de superar a superficialidade e a cantilena da busca de “identidade” para a região, “conhecimento” que a viabilize economicamente, que a incorpore ao país e ao resto do mundo.

José de Souza Martins, já em 1980, dizia que muito do que se falava e escrevia sobre a Amazônia nas universidades, nas associações profissionais e nos jornais das grandes cidades, daqui e d'alhures, era excessivamente fantasioso. Para ele o que se observava no mundo amazônico, na verdade, era uma transformação capitalista que devastava as relações entre os homens, da mesma forma que devastava a natureza, numa escala que constituía um verdadeiro saque.[1]

Segundo a seguinte avaliação de Márcio Sousa, tudo resta a fazer:

Pensar criticamente o Amazonas (embora falando do Estado, o livro é sobre a região), o processo político e cultural desta terra que padece de uma completa ausência de investigação científica e está assolada pelo recenseamento ou pelo beletrismo... Pouco estudada, verdadeiramente abandonada, com uma bibliografia parca e documentação rara e saqueada por inescrupulosos que se julgam proprietários do passado. Uma história escrita com a letra minúscula do preconceito e da distorção mentirosa.[2]

Nossa investigação está pensada em uma perspectiva histórica, entendendo-se aqui a História no sentido de Carr[3], não como mero apego/emancipação do passado, mas como o seu domínio, “como chave para a compreensão do presente”. E dirige sua atenção para a problemática que Márcio Sousa percebera na literatura de conquista, crônicas e diários de viagem, assim como a literatura de “inspiração amazônica”, [4] ou seja, a perspectiva de desvendar as imagens falsas sobre a Amazônia, e sua “funcionalidade” para uma mentalidade dominadora e espoliativa.[5]

Com efeito, na literatura brasileira, a Amazônia aparece sob o signo da borracha; observe-se que só estaremos aqui falando de alguns dos títulos surgidos nessa época: precisamente aqueles registrados pelas histórias literárias como de “inspiração amazônica”, por exemplo, Euclides da Cunha (Contrastes e confrontos, 1907 e À margem da história, 1909) e Alberto Rangel (Inferno Verde, 1907).

Nesses textos é fácil desvendar a idéia de Amazônia como um território objeto de conquista, como condição prévia à fixação do homem. A terra amazônica, “má” ou ameaçadora (mito da “natureza hostil”), é a visão predominante no discurso sobre a região na cultura brasileira.[6]

Tão introjetada está essa idéia de “hostilidade” da natureza amazônica na cultura brasileira que tem legitimado medidas integracionistas às custas da destruição ecológica e das culturas autóctones. E quando a imagem de “hostilidade” não está presente nos discursos sobre o “aproveitamento” da região, em seu lugar aparece a “exuberância” de uma imensidão “infinita”. O alarme pelo avanço da destruição ecológica poderia ser considerado um exagero.

Assim, nossa intenção, primeiramente, é fazer uma avaliação do argumento amplamente difundido de que o “atraso” tem raízes na inviabilidade da agricultura amazônica, o que teria levado, irresistivelmente, para o extrativismo exportador; em seguida, revisaremos a literatura colonial que tematiza a região. Mais detidamente nos dedicaremos ao ciclo da borracha; um ciclo violento, profundo, mas efêmero, que se, por um lado, possibilitou o esplendor de suas capitais - Belém e Manaus -, por outro, à hora do colapso da economia regional, provocou na cultura um nefasto afastamento da realidade regional.

Em suma: se foi precisamente através do fenômeno da borracha que se deu a inserção da Amazônia na história oficial do país, foi através de uma literatura, que não supera o espírito colonial e reproduz em seu discurso a mentalidade de exploração sobre o mundo amazônico, que a sociedade e cultura brasileiras tomaram contato com a região - até bem pouco tempo atrás, quando uma crise planetária de outra ordem vai repor o tema da Amazônia noutras dimensões e significados.

 

Notas

[1] Cf. “Introdução” a Lúcio Flávio Pinto. A Amazônia no rastro do saque. São Paulo, Hucitec, 1980. Outro título importante para essa desmitificação é o livro de Márcio Sousa. A expressão amazonense. Do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo, Alfa-Ômega, 1977.

[2] Idem, p. 17.

[3] Cf. Carr, E. H. O que é história? Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976.

[4] Referimo-nos à literatura produzida entre fins do século XIX e início do século XX, associada ao auge do ciclo da borracha.

[5] Márcio Sousa, op. cit.

[6] Maligo, Pedro. A Amazônia de Alberto Rangel, Gustavo Cruls e Peregrino Jr.: o paraíso diabólico da floresta. Rio de Janeiro, Departamento de Letras, PUC, 1985.