Estudos Sociedade e Agricultura

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Raimundo Santos

Alberto Passos Guimarães num velho debate


Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 53-63.

Estas são as primeiras anotações de uma releitura de Quatro séculos de latifúndio, realizada no contexto da pesquisa “Duas gerações de intelectuais pece-bistas”, atualmente em curso na área Sociedade e Agricultura do CPDA-UFRRJ.

Raimundo Santos é professor da UFRRJ/CPDA.


O falecimento de Alberto Passos Guimarães em dezembro de 1993, a trinta anos da primeira edição de Quatro séculos de latifúndio, chama a atenção para a importância do ensaísta alagoano, radicado no Rio de Janeiro desde o final do Estado Novo.

Bem ao estilo da época, Alberto Passos Guimarães escreveu sobre a “realidade brasileira” nas duas problemáticas de maior relevo para a esquerda dos primeiros anos 60 - a questão agrária, chave da contemporaneidade brasileira; e a conjuntura econômica daquele tempo “sobredeterminado” pelos monopólios internacionais. São expressão justamente desse momento os livros mais conhecidos - Inflação e monopólio no Brasil (1963) e, sobretudo, Quatro séculos de latifúndio (1963; reeditado em 1968).

Sem dúvida, a questão agrária, com a reafirmação da tese da feudalidade[1], confere a Alberto Passos Guimarães inscrição entre os constituintes do modelo democrático-burguês de interpretação pecebista do Brasil contemporâneo.[2] É com Quatro séculos de latifúndio que ele ficará conhecido na cena intelectual da esquerda daqueles anos 60, e terá, desde então, presença representativa na historiografia agrária brasileira.

1. O argumento de Quatro séculos de latifúndio em favor da reforma agrária

Rever Quatro séculos de latifúndio de uma perspectiva datada, implica, por um lado, considerá-lo como uma das primeiras monografias agraristas importantes, aparecida depois das obras maiores (em perspectiva mais abrangente), como são exemplos - incluída a história econômica de Simonsen[3] - Formação do Brasil contemporâneo (1943) e História econômica do Brasil (1945), de Caio Prado Jr.; e Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado. Por outro, significa revê-lo como texto do debate então em curso desde as páginas da Revista Brasiliense[4] e Estudos Sociais, a revista do PCB publicada à seqüência da crise do XX Congresso do PCUS.[5]

Com efeito, logo no início de Quatro séculos de latifúndio (cap. “O regime econômico colonial: feudalismo ou capitalismo?”), Alberto Passos Guimarães deixa claro o sentido político da argumentação de sua monografia. O resgate da feudalidade e o combate às teorias do “capitalismo colonial” e do “capitalismo agrário” visavam revelar a incidência “nada inocente” dessas concepções, uma vez que a postulação de uma origem e evolução em sentido comercial-capitalista de nossa economia agrária tornava desnecessária a mudança de suas estruturas, debilitando a contemporaneidade da reforma agrária.

Pelo contrário, afirmar a feudalidade permitia demonstrar que a tarefa da remoção dos “restos feudais” - cujos efeitos ao longo do tempo por certo diminuíram de intensidade - tinha raízes históricas, encerrava nova lógica para uma economia mais progressista, e também se convertia em processo emancipatório para milhões de camponeses e trabalhadores rurais, cidadãos sob sursis dos constrangimentos extra-econômicos impostos pelo “monopólio da terra”.

Toda a estrutura do livro - capítulos sobre o engenho açucareiro dos primeiros tempos (senhorio territorial); as fazendas cafeeiras não-escravistas e as de pecuária; o surgimento da pequena produção; sobre as crises e a evolução capitalista da agricultura pós-30 - toda essa estrutura concorre para realçar os traços das classes agrárias, dando inteligibilidade à ação dos grupos camponeses, tanto no processo mais antigo de debilitação do latifúndio, quanto na sua incorporação ao movimento agrário da passagem dos anos 50 para a década de 60.

Alberto Passos Guimarães, diferente de Caio Prado Jr. e também de Nelson Werneck Sodré, reivindica o cânone econômico como pressuposto diferenciador do seu argumento em favor da desqualificação de uma classe burguesa no processo de colonização. A raiz da feudalidade brasileira - e esta poderia ser uma explicação para a “compatibilização” do viés produtivista com a inexistência de uma “economia camponesa” na gênese de nosso mundo agrário - radicaria na estrutura de propriedade implantada segundo instituições feudais, acrescido o regime de trabalho escravista.

A diluição da institucionalidade feudal será lenta e se transfigura na hora da Abolição, quando o sistema de parceria à Vergueiro vai reproduzir formas extra-econômicas de subordinação da força de trabalho ao sistema latifundista já constituído. A avaliação de Alberto Passos Guimarães da evolução da agricultura pós-30 será pessimista, matendo-se inclusive muito reservado em relação à modernização agrícola ocorrida no após-64.[6] Em Alberto Passos Guimarães, o contra-ponto que historicamente irá corroer a estrutura pretérita, será a pequena produção (a “luta de classes dos pobres”) que, ademais, confere atualidade à reforma agrária camponesa como único meio para remover os obstáculos ao pleno desenvolvimento das forças produtivas nacionais.

Sem pretender que esta seja a abordagem mais produtiva, assume-se aqui o enfoque da intenção publicista do autor, ou seja, o da inscrição de Alberto Passos Guimarães no processo elaborativo do pensamento comunista, onde análise e leitura política da realidade se cruzam definindo o locus do intelectual na cena pecebista, naqueles anos marcada por uma intensa luta interna.

Pressupondo que a idéia de revolução burguesa inconclusa implica discriminar grupos sociais - no PCB dos anos 20: camponeses e pequena burguesia (a da revolução “democrático-pequeno-burguesa”, de Otávio Brandão); depois: burguesia nacional; contemporaneamente: classes médias - considerados estratégicos para a realização da hegemonia operária, poderia ser muito interessante comparar Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodré e Alberto Passos Guimarães a partir, justamente, do tratamento que eles deram à questão agrária em relação ao velho tema da feudalidade brasileira, peça-chave do modelo de revolução para a América Latina da III Internacional e ponto de referência do debate dos anos 60.

2. As teorias agrárias de Caio Prado Jr. e o PCB

Como ponto de partida da comparação, pode-se dizer que a conseqüência da teoria de “capitalismo agrário” de Caio Prado Jr. e de sua insistência em negar a feudalidade brasileira[7] vai ser exigir do PCB concentração no movimento social dos assalariados e semi-assalariados rurais. O argumento pradiano insiste em que estes últimos são expressão moderna da dinâmica econômica do campo brasileiro, mas têm a sua potencialidade associativa limitada por constrangimentos “semifeudais”, “restos” pretéritos de um mundo historicamente conformado pela grande empresa, em evolução capitalista.

Essa interlocução entre Caio Prado Jr. e o PCB precisa ser qualificada. De um lado, há em Caio Prado aceitação sem reservas das teorias clássicas de classe universal, forma-partido PC, marxismo-leninismo, socialismo real. Mas, de outro, o historiador paulista dá mostras de não querer aprisionar-se inteiramente ao modelo corrente; e pensa numa revolução nacional (dentro da matriz terceiro-interna-cionalista), de olho num bloco popular de hegemonia operária para comandar um Estado Nacional concebido como projeto histórico capaz de reverter o sentido do desenvolvimento econômico impresso ao país desde a colonização.[8]

O ponto de distanciamento em relação ao PCB não estará nesse “estatismo”, próprio da idéia leninista de revolução no Terceiro Mundo, mas no equacionamento da questão agrária sob prisma diferente. Donde Caio Prado Jr. irá propor, como eixo reivindicatório, não propriamente a reforma agrária de tipo camponês, associável ao diagnóstico feudalista, mas melhorias econômicas, emprego, sobretudo a generalização da lei trabalhista, um padrão moderníssimo e incômodo, se se leva em conta o paradigma estagnacionista que informa a matriz nacional-libertadora, largamente aceita na época.

Ampliando o ponto, ainda se pode dizer que toda a singularidade observada por Caio Prado na formação social brasileira - “sentido da colonização”, “capitalismo colonial” (cf. valorização do mercantilismo burguês daquele tempo); “capitalismo agrário”, noção já procedente da leitura sobre a grande exploração agrícola - vai importar no desconforto do intelectual dentro do seu partido. Desconforto paradoxal à medida que o PCB só vê em Caio Prado Jr. a comparação de suas teorias agrárias com a ideologia terceiro-mundista; e ele próprio também se sente impossibilitado de elaborar uma “linha política” mais consentânea com uma sociedade em processo de modernização. Desconforto que, aliás, acentuar-se-á na descrença de Caio Prado diante do desenvolvimento acelerado que o país experimentará a partir de 64. Resulta daí, inclusive, o seu desinteresse pela questão da democracia política; um alheamento, aliás, que vem de longe, desde que ela começa a entrar na pauta da esquerda brasileira, já no tempo da Revista Brasiliense, sobremaneira a partir de 1958, quando o PCB reconhece o desenvolvimento capitalista do país, e evolui, por caminhos complicados, em direção a uma política de frente democrática.[9]

3. O enfoque “desenvolvimentista” de Sodré

Já Werneck Sodré, mesmo preso ao velho debate sobre o regime colonial, situa supletivamente uma parte da sua argumentação em favor da feudalidade na passagem do trabalho escravo para o assalariamento livre. O ponto aqui é o fenômeno da regressão feudal, ou seja, o processo de “invasão formigueira” de pequenos lavradores e pequenos criadores, que aos milhares se assentam ao longo dos espaços vazios do sistema latifundiário em crise, disseminando a nova classe sob formas de servidão e semi-servidão, a particularizar a evolução agrária brasileira.

Mesmo que o Sodré de Formação histórica do Brasil já tivesse deixado o viés mercantilista de compreensão do regime colonial[10], em certo sentido pode-se dizer que lhe vale para a controvérsia, diversamente do argumento pradiano, muito mais a forma da coação extra-econômica do que o formato de grande exploração onde se ocupa a força de trabalho semi-emancipada.[11]

Talvez se possa dizer que a elaboração de Sodré da mesma forma que realça a burguesia nacional a partir de 30 também concentra interesse nas classes médias urbanas, cujo protagonismo progressista deita raízes desde o Império, tem importância no contexto de 30[12], e assim por diante. A argumentação de Formação histórica do Brasil sugere que as principais classes estratégicas para a conformação do bloco nacional-popular não pertence ao mundo pretérito, como no velho esquema. Nada estranho que o tema da democracia política aparecesse como mais um ingrediente na visão nelsonwerneckiana de conclusão da revolução burguesa.[13]

Se Sodré revela ambigüidade ao falar da democracia, o seu “desenvolvimentismo”, isto é, a sua aposta na nova dinâmica pós-30, fator de maiores transformações, traz de volta o tema. Talvez não seja exagero supor que, para ele, o problema camponês já não tenha a mesma centralidade que outros lhe atribuem.[14] A modernização, ao cabo descrita por Sodré, já não se concebe como uma “revolução ativa”, mas como um processo de “revolução pelo alto”.[15] Esse problema de um desenvolvimento histórico particular não teria escapado a um Caio Prado Jr. que, nas suas primeiras intuições sobre as transformações sociopolíticas da Independência e do Império (cf. Evolução política do Brasil, 1933), chega perto da noção gramsciana de revolução passiva.[16] A dificuldade, depois, irá ser a acentuação no tema do atraso, que não permitiria ampliar a noção de “capitalismo agrário” para uma teorização sui generis capaz de compreender toda a formação social; donde a impossibilidade e o bloqueio para a valorização do tema da democracia política.[17] Perspectiva que se descortinaria, tempos depois, quando o interesse pelas vias não-clássicas de evolução agrária corrói o paradigma das revoluções burguesas na análise comunista, e o reconhecimento da obra de modernização “prussiana” do regime de 64 torna-se irrecusável.

4. A frente única e a politização da questão agrária

Neste ponto necessita-se qualificar o problema da ideologia marxista-leninista como limitante do pensamento pecebista, deixando-o incompleto, sujeito a leituras variáveis segundo a correlação de facções ideológicas no interior do partido.

O ponto é este: a correlação entre intelectuais e “linha política” amiúde não pode ser estabelecida tão linearmente; e, por isso, quando se procura ver as contribuições dos intelectuais no PCB, deve-se fazê-lo com certa abstração dos paradigmas prevalecentes; às vezes, ler mais nas entrelinhas dos textos e nos seus efeitos políticos, do que mediante simples análise do discurso partidário onde elas são aproveitadas. A história das idéias comunistas, pelo menos nos momentos mais relevantes do pecebismo contemporâneo,[18] mostra que a elaboração da política pecebista caracteriza-se por ser “pragmática”; ou seja, ocorre após custosos processos de ultrapassagem de uma orientação claramente percebida como entrave, com muita resistência a mudanças paradigmáticas, como “atualização” da ideologia, esta sempre reiterada como raison d'être.

Se se examinar a presença de Alberto Passos Guimarães na virada da orientação pecebista à hora da crise de 1956/57[19], é possível supor que a “retidão” de Quatro séculos de latifúndio - colada à ortodoxia econômica para esvaziar a tese do “capitalismo colonial”, enfatizando a existência de uma “questão camponesa” ao modo clássico - faça parte desse tipo de mentalidade elaborativa.

Bem a propósito, um dos artigos de Passos Guimarães dessa época, publicado na “Tribuna de debates” do V Congresso de 1960[20], dá pistas para esse enigma do surgimento de um pensamento mais avançado num contexto de contenção do “espírito novo” no interior do partido.

Com efeito, ali se dá conseqüência ao reconhecimento oficial dos poderes quase absolutos da contradição antiimperialista, a ela subordinando toda a lógica da formação social, para esvaziar de conteúdo a velha visão “agrarista” que subsumia o problema agrário a uma oposição aos “restos feudais” de um país condenado à estagnação, desconhecendo a nova dinâmica do Brasil de meados dos anos 50. Por tal caminho, recusava-se o velho enfoque orientalista e também, como sua derivação, a política ultrapassada do partido que se alimentava do radicalismo diante da fragmentação e do caráter esporádico das lutas camponesas de então.[21]

Ao defender “três frentes da luta de classes” no campo brasileiro, e não apenas duas (dos camponeses contra o latifúndio feudal e dos assalariados e semi-assalariados contra os “capitalistas” do patronato rural), Alberto Passos Guimarães quer introduzir no problema do pouco desenvolvimento do movimento camponês em relação à movimentação mais intensa da articulação nacionalista a dimensão amplificante da “grande política” de frente única. Essa nova estatura conferia à questão agrária um papel estratégico e ela já não poderia mais ser vista como uma questão per se, interpelável por um ente voluntarista externo (classe operária, PC), passando a ter o seu encaminhamento dependente da dinâmica da vida política nacional. Nisso resultava a definição da “primeira frente de luta” do movimento rural em oposição aos monopólios internacionais. Ou seja, subordinava-se a questão nacional-camponesa, e a doutrina da aliança operário-camponesa (aceita mais como ideologia), à questão nacional-antiimperialista, passando-se a partir daí a viver o desafio de também ter que mudar a imagem de uma nação que, malgré tout, já era capitalista.

Dessa perspectiva de uma “questão nacional” concebida mais como desenvolvimento econômico (em Sodré; na Declaração de Março; nas Teses do V Congresso de 1960), não havia como ignorar a força avassaladora do chamado movimento nacionalista e a fraqueza e isolamento das lutas camponesas da primeira metade dos anos 50.[22] Sem concessão à teoria do “capitalismo agrário” e resistindo à revisão do paradigma da hegemonia operária, Alberto Passos Guimarães ainda vai propor um outro processo universalizante suplementar: “a frente da luta de classes dos assalariados e semi-assalariados (que muito freqüentemente aliam à condição de assalariados a condição de camponeses) terá uma especial preponderância sobre as demais. Por intermédio dessa frente será possível montar as correias de transmissão que irão ligar o proletariado e o movimento democrático das cidades aos camponeses e ao movimento democrático do campo”.[23]

Se esse é o percurso, tortuoso, de Alberto Passos Guimarães, pode-se afirmar que ele terá conseqüência no interior do seu partido, e/ou espelhará o esforço pela “nova política”. Através dele caminhava-se no PCB para uma nova compreensão, segundo a qual os camponeses não constituiriam mais a “questão central da revolução”, mas seriam uma dentre as classes - camponeses, burguesia nacional, classes médias - consideradas estratégicas para a estruturação de um processo reformador a se conformar no plano da política com muitas mediações, descontinuidades e gradualismo.[24]

5. Observações finais

Todas essas considerações sobre o lugar dos três intelectuais no pensamento pecebista referem-se a uma mesma matriz, pois nenhum deles questiona os paradigmas comunistas como os “eurocomunistas brasileiros” dos anos 80. Ainda são hipóteses sobre construções que aparecem diferenciadas quando se dá atenção ao tipo de equacionamento que eles fazem das “particularidades do campo brasileiro”, e chegam a desdobrá-lo para a “política agrária” do partido.

Num caso, marcado pela “heterodoxia”, o que se destaca é o valor atribuído ao sistema da plantation na conformação de relações sociais agrárias de tipo capitalista, mas que o PCB não apreende em toda a sua conseqüência. Nos outros dois, realça-se o tema dos constrangimentos extra-econômicos que ainda inibem o mercado de trabalho, e (como também preocupa a Caio Prado) abafam os movimentos sociais modernos. Enfatizar um “capitalismo agrário”/sem capitalismo nacional divorcia as teorias pradianas do PCB; nos outros autores, apesar do marxismo-leninismo, evolui-se para o reconhecimento da realidade burguesa do país e a aceitação da questão democrática.

Em suma, com esses parâmetros, poder-se-ia observar como, desprovido da questão camponesa “clássica”, Caio Prado encontra dificuldade para acomodar na sua teoria de revolução brasileira a “dinâmica econômica” (capitalista) do campo, sobretudo à medida que não ultrapassa a tradição estagnacionista e tende a olhar para o Estado como peça-chave da libertação nacional. E como um Sodré, quem sabe, se por contrapor ao latifundismo feudal o desenvolvimento capitalista brasileiro, chega a sinalizar com um frentismo reformador[25]. Algo mais arraigado numa formação social marcada por movimentos políticos policlassistas, que inclusive realçam as classes médias urbanas, protagonistas desde cedo do progressismo republicano.

Em Alberto Passos Guimarães, seria mais importante a “atualização” da questão camponesa, que ele realiza em duas dimensões. De um lado, mediante a sua politização, quando ele a coloca como “parte estrutural” de um movimento político geral (a frente única nacionalista e democrática da segunda metade dos anos 50); e, de outro, através de uma tática mais realista que se propõe “para atingir em larga escala” as massas camponesas, ainda inativas, centrada na forma sindical moderna de mobilização a partir de um trabalho preferencial com os assalariados e semiassalariados rurais.

Para terminar, verdadeira a hipótese de que as idéias de Alberto Passos Guimarães sempre tiveram acolhida no PCB, aqui também caberia dizer que a abordagem política da questão agrária bem poderia ser uma explicação plausível para a incongruência da Resolução do V Congresso de 1960, onde simultaneamente se postula reforma agrária de tipo camponês com uma maior centralidade para o trabalho partidário junto aos assalariados, semi-assalariados e o sindicalismo rural.[26] Aí estariam, ademais, indícios de pistas interessantes para um outro tipo de equacionamento do problema da clivagem existente no movimento social agrário dos anos pré-64 - Julião e as Ligas Camponesas, de um lado, o PCB e os sindicatos, de outro; nisso cada um espelhando de modo emblemático a sua razão de ser e a postura política característica.

Notas

[1] A formulação anterior dessa tese mais expressiva é a de Nelson Werneck Sodré. Cf. Formação histórica do Brasil, ed. Brasiliense, São Paulo, 1962.

 [2] Guido Mantega assim qualifica a construção terceiro-mundista do PCB, na qual insere a leitura nelsonwerneckiana do Brasil. Cf. A economia política brasileira, ed. Vozes, Petrópolis, 5ª. ed., 1984.

 [3] Roberto Simonsen com sua História econômica do Brasil (1937) é bibliografia recorrente, inclusive passa a ser o principal interlocutor brasileiro de Alberto Passos Guimarães na controvérsia sobre o regime econômico da Colônia.

 [4] As intervenções mais polêmicas dessa revista são os artigos de André Gunder Frank e Caio Prado Jr. A ensaística pradiana foi recolhida em 1979 pela editora Brasiliense no livro A questão agrária. Para Gunder Frank, ver, por exemplo, o seu artigo “A agricultura brasileira: capitalismo e o mito do feudalismo”, In: Revista Brasiliense, no. 51, jan./fev. 1964.

 [5] Alguns desses artigos estão na coletânea: Marighella et alii: A questão agrária. Textos dos anos sessenta, organizada pela editora Brasil Debates, São Paulo, 1980.

 [6] Isso fica bem claro no capítulo acrescentado à 2a. edição de 1968 de Quatro séculos de latifúndio. O tema merece o ensaio “O complexo agroindustrial” (ini-cialmente palestra proferida no Teatro Casa Grande, Rio de Janeiro, outubro de 1975), publicado na ocasião pelo jornal Opinião; traduzido por mim e publicado por Teodoro Buarque de Hollanda na revista Estudios sociales centroamericanos, no. 14, maio/agosto 1976, San José, Costa Rica.

 [7] Aliás, temporã, se se remonta à noção do “sentido da colonização” (cf. Formação do Brasil contemporâneo); e reiterada, como se pode ver na participação do historiador paulista nos debates do IV Congresso do PCB de 1947, e nos anos 50/60.

 [8] Cf. Cláudio de Souza Freitas: “‘Realidade Brasileira’ e militância: o diálogo de Caio Prado com o PCB”. Tese de Mestrado. CPDA-UFRRJ, Seropédica, RJ, 1993.

 [9] A propósito, Elias Chaves Neto, o editor da Revista Brasiliense, publica no seu primeiro número o artigo “Política de União Nacional”, no qual propõe unidade de-mocrática em torno da Constituição como ponto de partida para a abordagem dos problemas nacionais; e merece uma exasperada réplica de Prestes (“É necessário combater e desmascarar os defensores e porta-vozes do nacional-reformismo”), publicada no jornal Voz Operária, de 28/04/56. Curioso como Caio Prado, durante todo o período da revista (1954-64), mantém uma posição pessimista em relação à conjuntura, sem valorizar, como o PCB, as possibilidades abertas pelos governos civis da época. Aliás, em sua intervenção para o V Congresso do PCB de 1960, Caio Prado explicita bem que o significado maior de sua controvérsia era questio-nar os “quinze anos da política de frente única”, praticada, segundo ele equivoca-damente, pelo PCB desde a redemocratização de 1945. Apud Cláudio de Souza Freitas, op. cit.

 [10] O deslize nelsonwerneckiano “de primeiro momento”, semelhante ao de Caio Prado Jr., também consiste em reconhecer existência a uma burguesia comercial na sociedade portuguesa à hora do descobrimento, influente e capaz de dar caráter burguês à grande lavoura da Colônia, o que lhe permitiria chamar de “capitalismo colonial” a empresa da colonização. Cf. As classes sociais no Brasil, ISEB, Rio de Janeiro, 1957.

 [11] Cf. Sodré, Formação histórica do Brasil, op. cit.

 [12] O insulamento da oligarquia agroexportadora em relação ao conjunto da vida nacional projetava as possibilidades de aliança dos setores médios com as demais classes dissidentes. Idem.

 [13] “A defesa da democracia, no processo da Revolução Brasileira, não se prende, assim, ao supersticioso respeito a uma legalidade formal, mas à compreensão de que a democracia é o caminho apropriado ao seu desenvolvimento. Não interessa ao nosso povo, evidentemente, uma legalidade qualquer, uma democracia qualquer, mas o regime democrático efetivo, cujo conteúdo esteja intimamente ligado ao desenvolvimento de alterações econômicas, políticas e sociais, capazes de afetar profundamente o país e corresponder ao avanço das forças produtivas que impõem modificações radicais nas relações de produção”. Idem, p. 404.

 [14] Ver, por exemplo, o artigo de Nestor Veras: “O papel dos camponeses na revolução”, escrito para os debates do V Congresso do PCB de 1960. Cf. Voz Operária, de 3 a 9/6/60.

 [15] Há referência específica. Cf. Formação histórica do Brasil, op. cit., p. 357.

 [16] É Carlos Nelson Coutinho quem faz as comparações, aproximando as observações pradianas sobre mudanças “com a supervivência da organização social vigente”, o amorfismo e a impotência dos movimentos sociais, com o modelo gramsciano do Risorgimento. Caio Prado Jr. postula, para reverter a tendência histórica, a criação de uma “estrutura política democrático-popular”, uma noção próxima do conceito de sociedade civil. Cf. “A imagem de Brasil de Caio Prado Jr.”, In Cultura e sociedade no Brasil, ed. Oficina de Livros, B. Horizonte, 1990.

 [17] Idem.

 [18] Cf. R. Santos: O pecebismo inconcluso, ed. Sociedade do Livro/UFRRJ, Seropédica, 1992.

 [19] Não encontramos ainda registro da participação de Alberto Passos Guimarães propriamente nos debates do XX Congresso. Para uma descrição desse processo e de suas contradições, ver R. Santos: A primeira renovação pecebista, ed. Oficina de Livros, B. Horizonte, 1988. Sobre o papel de Alberto Passos Guimarães no contexto da Declaração de Março de 58, ver o depoimento de Giocondo Dias a João Falcão, In: J. Falcão: Giocondo Dias, ed. Agir, Rio de Janeiro, 1993, p. 201.

 [20] Cf. “As três frentes da luta de classes no campo brasileiro”, In: Voz Operária, São Paulo, 22 a 28/7 e 29/7 a 4/8/60.

 [21] Idem.

 [22] Aliás, esse descompasso é apontado por Agildo Barata durante os debates sobre o Relatório Kruschev, e provocará enorme escândalo. O temor da ortodoxia dentro do partido era o de, ao se deslocar o eixo das alianças para atores mais presentes e efetivos a frente única da burguesia nacional com o proletariado no movimento nacionalista a conseqüência seria transferir o cumprimento programático das mãos de um governo de molde revolucionário para o gradualismo reformador dos governos policlassistas, enfraquecendo o paradigma comunista. Ver sobre este ponto R. Santos: O pecebismo inconcluso, op. cit.

 [23] Ibidem.

 [24] O que se diz acima fica sugerido grosso modo mais pela leitura das teses para discussão do V Congresso, que têm todas as características para serem consideradas o veio maior dessas elaborações oficiosas e oficiais. Cf. Teses para a discussão do V Congresso do PCB, folheto, Rio, 1960.

 [25] Embora não sejam claras as relações Sodré-PCB, observa-se que é dessa época a maior valorização da pequena burguesia urbana na política pecebista contem-porânea. Sobretudo no VI Congresso de 1967, onde ela é definida como “aliada fundamental” da classe operária. Cf. “Informe de balanço do CC ao VI Congresso do PCB”, In: M. A. Nogueira: Vinte anos de política, ed. LECH, São Paulo, 1980.

 [26] A “contradição” é apontada por Caio Prado Jr. Cf. A revolução brasileira, cap. 2, ed. Brasiliense, S. Paulo, 1966. Para uma maior problematização do ponto consulte-se Luiz Flávio de Carvalho Costa: O PCB e a questão do sindicalismo rural 1954-1964. Tese de doutorado, USP, São Paulo, 1991.