Estudos Sociedade e Agricultura

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Sandra Lúcia de Souza Pinto

Ciência e poder tecnológico: alguns autores


Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 117-124.

Sandra Lúcia de Souza Pinto é mestre pela UFRRJ/CPDA.


O objetivo destes comentários é apresentar o tema da imagem de mundo numa bibliografia que enfatiza o prisma da Revolução Cientifica e as mudanças nas concepções de mundo rural.

A mentalidade que estrutura a jovem nação brasileira está assentada em pilares que decorrem dessas novas concepções, ainda que o legado português de nossa colonização tivesse modelado novos hábitos que nos diferenciaram de outras sociedades, igualmente colonizadas, mas sob outros valores.

Com efeito, até o fim do século 16, a mentalidade e a visão de mundo ocidentais obedeciam à concepção aristotélica do universo estático e hierarquicamente organizado. A modernidade é que modifica esse quadro. Novas representações são atribuídas à natureza, à vida e aos fenômenos. Com a moderna racionalidade, o homem matematiza o mundo e erige nova ciência, logo convertida em verdade absoluta. Descobre técnicas, desenvolve tecnologias, vendo-se cada vez mais dependente de seus resultados nem sempre satisfatórios. Diante da industrialização capitalista e do poder tecnológico desenfreados, causando intensa devastação e a instrumentalização definitiva da natureza, o homem passa a sentir a necessidade de impor valores éticos à ciência, e de repensar a distribuição desigual das riquezas econômicas.

1. Pensamento científico e racionalidade

Antes do Renascimento, o pensamento e a vida do Ocidente obedeciam ao tempo eclesiástico ou ao tempo de Deus. A Idade Média, dominada em sua maior parte pelas atividades agrárias, vivia sob um ritmo de vida lento, pouco se importando com critérios de exatidão, produtividade e quantidade (Le Goff, 1982, p. 62/63). A partir da Alta Idade Média, com o incremento das atividades comerciais, a situação muda e o tempo passa a ser essencialmente humano e urbano, passível de medição e controle, preparando o terreno para a Revolução Científica do século 17.

A falta de precisão do mundo sensível, ou o cálculo do tempo à maneira empírica, de acordo com o movimento dos astros e o cantar do galo, ligava-se à concepção herdada do pensamento grego que partilhava a crença do universo finito e admitia a exatidão dos céus mas não da Terra, esta, segundo Koyré, o mundo do “mais ou menos”. Tais dimensões possuíam naturezas distintas. Por essa visão estática de mundo, as partes do universo possuíam lugar definido dentro da ordem hierarquizada na qual Deus era o centro. Ao redor dele giravam, pela ordem, anjos, homens e, por fim, animais e plantas. Tal concepção será destruída pela Revolução Científica e a introdução da linguagem matemática dos algarismos indianos (ou arábicos) que simplificavam as operações. A exatidão do cálculo tornou-se possível com a elaboração dos instrumentos de precisão que substituíram o universo do “aproximadamente”, essencialmente qualitativo, pelo seu correspondente numérico, quantitativo. A noção finita do mundo foi substituída pela de espaço infinito, regido pela razão.

Esse mundo da racionalidade matematizada, que submete a natureza ao controle humano, é também o da ascensão da burguesia, da intensa urbanização, do interesse sempre renovado por invenções e descobertas, da idéia de progresso e conhecimentos ilimitados. Nele vale o que pode ser contado.

Atento à idéia de homem dominador da natureza, Keith Thomas mostra como as percepções antropocêntricas dos ingleses se modificaram ao longo dos séculos 16 e 17, desde que adquiriram maior afinidade com animais e plantas, enfraquecendo a concepção do homem como ser único. Este deve, agora, ordenar a natureza desordenada, cultivar a terra para torná-la bela segundo critérios estéticos que condizem com formas regulares, simétricas e padronizadas (1988, p. 304).

Partia-se do princípio de que Deus, centro da ordem hierarquizada segundo a visão aristotélica, criara campos, florestas e ambientes rústicos para serem trabalhados e moldados pelo espírito civilizador proveniente das cidades. A partir do século 18, o industrialismo e a vida urbana, gerando poluição e desconforto, patrocinam o surgimento de novas relações homem-natureza. Nasce a mentalidade conservacionista, no bojo da idéia do campo in natura, desordenado, mais belo e saudável que as cidades. Ademais, tem a valorizá-lo o fato de ser criação divina. Tornava-se motivo para ser buscado pelos ricos citadinos ingleses como fonte de privacidade, enlevo e renovação espiritual. Ao campo foram atribuídos características salutares; e aqueles que se identificavam com os ares campestres eram classificados como puros. A flora e a fauna, de daninhas e nocivas, passaram a ser vistas com admiração. Os animais, mesmo os de caça franqueada, começaram a gozar do amparo legal e a contar com a proteção das reservas naturais e artificiais como os zoológicos.

A valorização positiva do campo encontrava correspondência na imagem insalubre e viciosa da cidade. Uma visão religiosa, de fundo medieval, reforçava essa dicotomia. O campo, benigno, ligava-se à perenidade do sagrado, enquanto a cidade, berço da mundanidade, concorria para profaná-lo.

Estar harmonizado com o campo significava o mesmo para com os céus, equilíbrio que primeiro encontrou respaldo teológico antes do científico. O conceito de “cadeia ecológica”, com a necessária preservação de todos os seus elos, apóia-se em desígnios divinos de fortes implicações conservacionistas (Thomas, 1988, p. 329). Assim, passou-se a transmitir o ensinamento cultural de que mesmo as espécies mais nocivas serviam a propósitos humanos.

Mas esses novos valores e sensibilidades já eram parte da rationale burguesa. O culto à natureza, sob vários aspectos mistificador, acobertava as tensões sociais do campo. Os pastores, idealizações que povoavam a pintura e a literatura, não encontravam correspondência no universo crescente de assalariados agrícolas expropriados de suas terras. Por outro lado, o movimento de divinização da natureza partia dos que não dependiam diretamente dela para viver. Estes, próximos das comodidades do lar urbano, podiam manter habitações rupestres onde suportavam passar no máximo um fim de semana. Além disso sobrevinha a solidão e o aborrecimento, principalmente para os apreciadores da boa e civilizada conversa.

Vê-se, assim, que o “natural” é um constructo social moldável aos mais variados contextos. A natureza dessacralizada deixou de ser objeto de contemplação e converteu-se em máquina, “ferramenta de exploração” (Lenoble, 1990, p. 241). Animais e plantas tornaram-se autômatos insensíveis, segundo a “‘teoria mecanicista da vida’” (Ibidem, p. 274). Deus, engenheiro do universo, cedeu lugar ao matemático, apropriador do segredo divino. No primeiro quartel do século 17,“sábios e filósofos, independentemente de sua inclinação de espírito, discípulos de Galileu (...) todos, a despeito de (...) divergências de Escolas e (...) polêmicas muitas vezes inflamadas, se encontram de acordo ao afirmar que a Natureza é uma máquina e a ciência é a técnica de exploração desta máquina” (Ibidem, p. 262).

Invenções, intensificação das descobertas, urbanização crescente, matematização das ciências e do mundo, razão dominando a natureza e possibilitando a crença no conhecimento e progresso ilimitados, formam um conjunto de valores que moldam o inconsciente coletivo ocidental que Castoriadis (1988, p. 145) denominou de “significação imaginária social” e que pode ser resumido em três paradigmas firmemente embasados na crença do desenvolvimento ilimitado. São: 1) virtual onipotência e neutralidade da técnica que apresenta soluções para tudo; 2) ilusão assintótica de um conhecimento linear e infinito; e, 3) predestinação do homem e da natureza ao progresso ilimitado (Ibidem, p. 263). Sociedades e povos distantes desse padrão, portanto tidos como afastados da normalidade, passam a ser vistos como necessitados do impulso desenvolvimentista alojado no bojo dessa “significação imaginária social”. Ela passou a legitimar e justificar a manipulação do homem e da natureza de diversas maneiras na busca da tão almejada normalidade.

Quando tais paradigmas e significações imaginárias são questionados, ocorre uma crise que abala profundamente. Exemplo disso acontece com a economia, esfera que há dois séculos constituiu-se em paradigma de racionalidade, pois matematizável, capaz, portanto, de solucionar todos os movimentos da sociedade, ainda que a sua racionalidade não abarque integralmente o cultural, o social e o histórico, mas o separa da apreensão de totalidade (Ibidem, p. 147).

O que se questiona não é a economia em si, mas sua racionalidade que nos remete à questão do progresso técnico, tido como neutro e “bom”, ainda que mal utilizado pelos sistemas. Ora, essa imagem aparente oculta uma idéia de poder: o controle de fatores e pessoas obscurecido pelo caráter da “progressão assintótica”, ou seja, da crença no progresso ilimitado.

Essa intenção de mais poder apóia-se na separabilidade dos fatos, e é isso que determina os seus limites e localidade. Sua eficácia reside na concepção reducionista que limita a compreensão dos fenômenos inseridos numa totalidade. Tal visão vem sendo criticada por alguns físicos, que já percebem o universo como uma amplitude em que os fenômenos não podem ser vistos em separado, mas como uma complexa rede de inter-relações e integração.

Faz-se necessário repensar os valores reificados pelas modernas sociedades. Não se trata de recusar as criações técnicas e científicas do Ocidente, responsáveis por grandes transformações sociais e naturais. Porém, a celebração da razão se fez sem regra, acima de todas as coisas, na forma de um novo Deus absoluto que aprisionou o homem num cárcere onde somente vale o que pode ser matematizado e contado. Segundo Rouanet, trata-se de uma razão enlouquecida, irracional, que se detém diante das aparências, recusando penetrar na essência dos fatos.

Nesse sentido, o conceito clássico de razão deve ser reanalisado, tornando claro que a racionalidade não é isenta, e que o apoio no dado não equivale a libertar-se do irracional. Precisa-se desenvolver a razão sábia “que identifica e critica a irracionalidade presente no (...) sujeito cognitivo (...) instituições externas (e) discursos que se pretendem racionais as ideologias” (Rouanet, 1989, p. 11/13).

2. O mundo rural brasileiro: trajetória

O mundo rural brasileiro é, e sempre foi, muito diferente do europeu. Desde o descobrimento foi orientado para o consumo externo e, em razão disso, sua produção assumiu, já nas origens, características mercantis. Os portugueses basearam-se na produção agrícola, e não na formação de uma civilização agrária (Holanda, 1989, p. 18). Possuíam a personalidade típica do dono, senhor e empresário, que busca riquezas despendendo o mínimo em esforço físico, como é próprio da mentalidade ibérica, voltada para o ócio e avessa ao trabalho, o que propiciou a formação de uma sociedade desorganizada, não planejada (Ibidem, p. 10).

Os portugueses, caracterizados pelo espírito aventureiro e movidos pelo sonho de riqueza fácil, paradoxalmente, possuíam forte consciência das limitações humanas e terrenas, de forma que não se deixaram levar pelas fantasias das grandes navegações. Fortemente pragmáticos, apoiavam-se no chão dos fatos concretos. Guiavam-se pela experiência, tida como mãe e mestra, principal fonte de segurança. A índole aventureira, o apego à realidade e à experiência, parece que possibilitaram sua sobrevivência e permanência nos trópicos.

Implantaram no Brasil um sistema de exploração baseado na grande propriedade trabalhada por escravos e produzindo para o mercado externo. Possuía traços de “capitalismo primitivo”, não se coadunando com a mentalidade da época. A mentalidade do colonizador ligava-se mais à concepção medieval, a uma civilização de bases rurais e não propriamente agrícola.

Enquanto nas civilizações agrárias a terra é tratada com cuidadoso zelo, recebendo atenção da mais moderna tecnologia, com regime de produção essencialmente familiar - a exemplo das pequenas propriedades européias -, o Brasil rural, criado pelos portugueses, caracterizou-se pela grande exploração exaustiva da terra, sem o mínimo de recuperação do potencial produtivo do solo. A abundância de áreas férteis contribuiu para isso, de forma tal que se originou entre nós uma noção de valor que não privilegiava a terra, mas a quantidade de escravos que a explorava.

A civilização rural brasileira não se caracterizava pela comunidade (a aldeia de campos e equipamentos de uso comum), pelo agrupamento fortemente vinculado à terra, como na Europa dos séculos 16 e 17, período, segundo Thomas, em que já havia a preocupação de civilizar a natureza segundo a racionalidade de uma estética uniformizadora. Aqui, o emprego da técnica, muito longe de preservar, só serviu para tornar mais devastadores os rudimentos de exploração do solo como muito bem percebeu Holanda (ibidem, p. 18).

As diferenças entre esses dois tipos de mundo repetem-se no caso das cidades. A cidade européia, o burgo, não é prolongamento do campo, mas resultado da autonomia das atividades comerciais. No Brasil, as cidades têm origem nas propriedades rurais; são extensões quase que naturais dos latifúndios. Destituídas de autonomia, eram pontos de encontro da população que para elas convergia em ocasiões específicas, nas datas de festejos religiosos, por exemplo.

Senhores de uma moral que se objetivava no acúmulo de riquezas sem a intermediação do esforço físico, o trabalho, para os portugueses, possuía significado exótico. Daí, a produção não resultar de esforço direto, mas de outorgas, delegações, favores, e concessões aos situados abaixo da escala de mando. Estes formavam a linha de frente da ocupação e da posterior destruição da terra. Desagregavam populações indígenas e o meio ambiente. Garantiam o poder do senhor patriarcal à frente de um núcleo familiar ao qual todos, direta ou indiretamente, subordinavam-se. Tal instituição, intransponível e poderosa, essencialmente privada, marcou intensamente nossa vida pública, invadindo-a em todas as suas esferas, fazendo do favor e do mandonismo as moedas por excelência do jogo político.

A devastação da terra é herdeira dessa tradição, algo que se tornou mais sério quando a ela se associou a mecanização pesada, consubstanciada nos pacotes tecnológicos forâneos, reforçando a mentalidade exploradora orientada para a exportação. Passaram-se os anos, mas a mesma lógica é sempre reposta.

“Mais recentemente, a partir de 1930, mudou a forma, através da industrialização, mas não a lógica nem os objetivos centrais que norteiam o país. A criação de uma infra-estrutura, a destruição do meio ambiente, o processo educacional, o sistema de saúde, a cultura... tudo se deu dentro da concepção dos séculos anteriores (Buarque, 1990, p. 63).

Para esse último autor (que retoma Weber e os sociólogos da Escola de Frankfurt), desde o advento da ciência moderna houve um abandono da ética, gerando conseqüências graves para o homem e a natureza (a consciência disso só foi adquirida pelos físicos após a explosão de Hiroxima). Buarque critica os economistas e seu apego à matemática como meio de explicar todas as coisas. Com isso, a esfera dos valores, não matematizável, foi eliminada do cálculo social. Prevalecem o materialismo e o desejo de riqueza a qualquer preço, marcas do racionalismo individualista burguês.

Ainda, segundo Buarque (1990, p. 35), esse modelo se aproxima do seu limite: hoje, mais do que nunca, cresce a consciência de devolver o Homem ao centro do mundo, e de submeter o paradigma do progresso a princípios éticos que englobem a Natureza como “sujeito de sua transformação nos produtos materiais e culturais dos homens”. Trata-se de promover uma revolução ideológica que integre a noção de civilização ao conceito de projeto humano desenvolvido desde os gregos, libertando-a de seu significado restrito de desenvolvimento.

Trata-se de buscar um novo equilíbrio entre racionalidade econômica e racionalidade ético-normativa, de submeter cada vez mais o poder tecnológico a imperativos humanos de liberdade e autonomia, principalmente nos países do Terceiro Mundo, onde a marcha da insensatez só tem produzido endividamento externo, desajustes culturais, desintegração social e degradação ambiental. Entre nós a crença na neutralidade tecnológica só tem obscurecido a consciência dos riscos. Graças a isso continuamos prisioneiros do mundo colonial dos latifúndios (agora transformados em modernas empresas exportadoras); da estrutura socioeconômica que move incessantemente a roda da fome e da miséria.

Bibliografia

Buarque, Cristovam. A desordem do progresso. São Paulo, Paz e Terra, 1990.

Castoriadis, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto. São Paulo, Paz e Terra, 1988.

Febvre, Lucien. O problema da descrença no século XVI: a religião de Rabelais. Lisboa, Início, s.d.

Holanda, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil, 21ª ed. Rio de Janeiro, José Olympio, 1989.

__________. Visão do paraíso, 4. ed. São Paulo, Nacional, 1985.

Koyré, Alexandre. Do mundo do “mais ou menos” ao universo da precisão tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa, Estampa, 1980.

Le Goff. “As mentalidades: uma história ambígua”, In: Le Goff e Nora, P. História: novos objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982.

Lenoble, Robert. História da idéia de natureza. Lisboa, Edições 70, 1990.

Rouanet, Sérgio Paulo. As razões do Iluminismo. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

Thomas, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.