Estudos Sociedade e Agricultura
Ana Mirian Monterrosa de Tobar & Jaime Mauricio Tobar
Ensino agrícola superior: os questionamentos da FAO
Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 99-105.
Traduzido do espanhol por Paulo Eduardo M. Marques.
Ana Mirian Monterrosa de Tobar e Jaime Mauricio Tobar são mestres pela UFRRJ/CPDA.
Não é necessário demonstrar o caráter inadequado dos programas de formação agrícola e suas conseqüências sobre o desenvolvimento rural, já que existem muitas evidências da necessidade de novos programas de ensino agrícola e mais articulados com a realidade, de maneira tal que estejam orientados a capacitar eficientemente os profissionais da área.
Observa-se que as instituições de ensino superior têm demonstrado, na prática, possuir inúmeras insuficiências na formação de profissionais orientados a satisfazer as necessidades dos pequenos produtores agrícolas; notando-se, ainda, que as tentativas de reforma no ensino agrícola têm encontrado dificuldades devido a duas razões principais: a) o entorno institucional que separa as atividades de formação dos programas de pesquisa e de desenvolvimento; e b) a existência de práticas disciplinares que isolam os fatores estudados, conceitual e geograficamente, em estações experimentais ou áreas restritas a estabelecimentos docentes.[1]
Mesmo assim é freqüente observar que os principais fracassos na reformulação do ensino agrícola giram em torno dos problemas que se apresentam quando se pretende implementar programas orientados a atender à grande produção capitalista e não à produção familiar.
Nesse marco, um estudo recente realizado pela FAO,[2] sobre os problemas de adequação da educação agrícola superior na América Latina aos setores camponeses, assinala que neste campo existe uma série de desafios e dificuldades derivadas especialmente de debilidades inerentes aos próprios centros de ensino.
A juízo dessa instituição, o maior desafio que os centros de ensino enfrentam apresenta-se em torno de dois grandes problemas: a) formar profissionais tecnicamente preparados para atender o pequeno produtor num esforço similar ao que se tem realizado para a grande exploração agrícola; ou seja, orientar a estrutura acadêmica e política para a satisfação das necessidades do setor camponês; b) reconhecer plenamente a existência de uma pequena produção que não pode nem deve ser tratada como se fosse uma réplica em miniatura da empresa capitalista. Por essas razões é que os profissionais treinados no modelo de agricultura prevalecente são incapazes de resolver as situações particulares da agricultura de tipo familiar.
De acordo com esse estudo, o ensino agrícola superior na América Latina também enfrenta sérias deficiências e falta de incentivos. As principais deficiências estão nos seguintes aspectos: a) há uma marcada especialização frente à realidade globalizante e integradora; b) predomina excessiva carga acadêmica, que conduz a um limitado aprendizado; c) nota-se ausência de conteúdos relevantes; d) excesso teoricista. Quanto aos desencontros mencionados pela FAO, os mais freqüentes têm a ver com a divergência entre o agrônomo formado, o agrônomo necessário[3] e com a existência de profissionais sem destino.[4]
Diante dessa dramática situação, o estudo em questão assinala que as possíveis vias de solução para a problemática do ensino agrícola podem se encontrar “na formação de profissionais em condições efetivas de formular e executar modelos compatíveis com as necessidades dos agricultores e que, além disso, estejam dentro das possibilidades de que os governos possam satisfazê-las de forma eqüitativa”.[5]
No entanto, é necessário reconhecer que os problemas detectados pelo estudo mencionado não são de responsabilidade exclusiva dos centros de ensino, uma vez que neles também interferem os interesses das diferentes classes sociais e a própria concepção do o Estado sobre o ensino agrícola superior e o desenvolvimento rural — razão pela qual o estudo realizado pela FAO deixa muitas questões sem resposta.[6]
Uma abordagem paralela dos problemas do ensino agrícola pode surgir a partir da perspectiva aberta por Grignon (1981)[7] sobre as origens e funcionamento do ensino agrícola na França. Segundo a análise desse autor a educação agrícola nasce com a finalidade de se converter em um instrumento da classe dominante para controlar a transformação e/ou a conservação da agricultura, do campesinato e da sociedade rural por meio dos agentes e instituições pertencentes ao sistema de ensino.[8]
Além disso, ainda de acordo com o autor, os objetivos principais que o ensino agrícola pretendia alcançar estavam orientados para modificar as técnicas agrícolas e fazer chegar o progresso tecnológico à zona rural, o que permitiria aos políticos liberais lograr, entre outras coisas: a) introduzir a idéia do progresso técnico na mentalidade do camponês, desta maneira, forçando a distinção entre dois tipos de agricultura: a habitual (a dos camponeses e a moderna a dos técnicos ; b) transformar, interiormente, o modo de atuar e pensar do camponês para separá-lo da influência da Igreja e dos latifundiários[9]; c) atuar indiretamente, por meio do campesinato, sobre as outras categorias sociais e assim amortecer as crises e conflitos estranhos ao campo[10]; d) induzir o campesinato a romper, ou, pelo menos, a se afastar de suas formas tradicionais de atuar e pensar, adotando novos valores, crenças, exigências morais e novas necessidades; e e) conduzir o campesinato a pensar opostamente às classes populares urbanas e a ignorar as divergências e os antagonismos que opõem o pequeno proprietário rural aos grandes exploradores e à classe dominante.[11]
Em suma, com tal padrão de ensino se pretendia, e em muitos casos ainda se pretende, introduzir elementos e agentes transformadores na mentalidade do camponês, considerados necessários para manter sua dominação.[12] Em boa medida esta tem sido a tônica seguida na América Latina, onde se manteve uma estrutura de ensino similar à francesa[13], dando origem, assim, ao aparecimento de uma diversidade de saberes que fazem do ensino agrícola um ensino elitista. Na maioria das vezes os mais altos níveis de “educação” não podem ser obtidos pelos filhos dos camponeses, por estarem reservados para a classe média urbana, e começa-se a fazer então agronomia fora da agricultura, nas palavras de Grignon, a gerar agrônomos sem terra; sendo esta uma das razões das deficiências e desencontros mencionados no estudo da FAO.
Desta maneira, na medida em que se começa a fazer agronomia fora da agricultura, começa também a surgir a dissociação entre prática e teoria[14] e a multiplicação da especialização[15] (surgindo a administração, planejamento e economia agrícola, entre outras) — o que explica o fato de o ensino agrícola não conseguir solucionar os problemas da pequena produção familiar.
Se os questionamentos assinalados pela FAO são importantes, também é preciso destacar o fato de que em boa medida é o “público” atual das ciências agrárias que, freqüentemente, define o grau de capacitação do profissional para resolver os problemas da pequena produção, já que, como assinala Grignon, eles se vão perfilando como um novo tipo de intermediário entre o campesinato e a classe dominante. Observe-se que esses profissionais se hierarquizam em função das distâncias em relação à classe dominante, à ciência e à cidade; ou melhor, o aluno mede seu futuro êxito profissional pela freqüência e pela regularidade de seus contatos com a classe dominante, e não pelo seu trabalho em favor dos pequenos produtores.
Com base nessas considerações, é preciso formular novas interrogações que dêem pistas para compreender por que o ensino agrícola não logra ser uma resposta apropriada para os problemas da agricultura latino-americana altamente polarizada. Corrigir os problemas de conteúdo temático e incrementar a prática serão suficientes para melhorar a situação atual do ensino agrícola? Ou será necessário reorientá-lo em direção a mercado mais apropriado, o dos estudantes e/ou clientes realmente interessados em enfrentar a problemática da pequena produção familiar?
O delineamento dessas interrogações conduz a duas reflexões: uma relacionada com os estudantes de agronomia e outra sobre as universidades. Quanto aos primeiros: enquanto não se disponham a utilizar as ferramentas profissionais tanto a favor da agricultura capitalista quanto em benefício da produção familiar, ou não provenham dos estratos camponeses, continuarão tratando a agricultura como uma atividade semelhante àquelas que obedecem às leis econômicas, e os pequenos agricultores, como empresários-consumidores possuidores de lógica e racionalidade similares à dos grandes empresários agrícolas.[16]
Quanto às universidades, elas devem começar a mudar os seus programas de ensino, e insistir mais “na formação dos espíritos e não tanto na aquisição de informações mais ou menos enciclopédicas ou obsoletas, de tal forma que os estudantes possam aprender a analisar situações concretas, identificar e hierarquizar os problemas que se apresentam, conceber soluções adequadas para a especificidade de cada caso, tomar decisões conseqüentes e assumi-las em sua execução. Para tanto, o ensino agrícola universitário deve associar rigor científico e preocupação com a operacionalidade, capacidade de abstração e sentido prático.”[17]
Somente assim a universidade pode apresentar à sociedade profissionais comprometidos com o processo de desenvolvimento agrário, incluindo aí uma perspectiva de ciências sociais que contribua para abrir horizontes. Isso capacitaria os novos profissionais a propor soluções reais à crise do setor rural. Daí assume importância particular o fato de que a docência e a pesquisa devem centrar-se no conhecimento da realidade, já que somente elas permitem uma formação mais abrangente e capaz de sensibilizar as atividades profissionais em direção aos interesses dos produtores pobres e marginalizados.[18]
Notas
[1] Brochet, M. "En pro de una formación simultánea de los agricultores y los agrónomos". In: Seminario Latinoamericano: La Formación Universitaria en Desarrollo Agrario. Manágua, Nicarágua, 1991.
[2] FAO, Educación Agrícola Superior. La urgencia del cambio. Série Desarrollo Rural n. 10, Santiago, Chile, 1993, p. 98.
[3] No estudo se assinala que essa tendência a ministrar conteúdos com escassa aplicação cotidiana dissocia a formação profissional das demandas dos grupos sociais. FAO, op. cit., p. 32.
[4] O termo é utilizado para referir a dificuldade dos profissionais de ciências agrárias de entrarem no mercado de trabalho, devido à não-valorização por parte dos agricultores da contribuição do conhecimento científico às atividades produtivas. Ibid, p. 39.
[5] Isto espelha a observação da FAO de que os programas de desenvolvimento agrário impulsionados pelos governos somente atingem cerca de 10% dos pequenos produtores. Ibid, p. 30.
[6] Vale também perguntar quais são as concepções e as finalidades que a própria FAO atribui à educação agrícola como instrumento de desenvolvimento rural. Isto é importante na medida em que a FAO, por seu caráter internacional, não realiza suas análises com base na diferenciação de classes, mas se limita à formulação de diagnósticos, sem que se visualize a existência de um paradigma próprio sobre a questão camponesa.
[7] Para este autor o ensino agrícola foi inventado pelos políticos para ascenderem ao poder através da conquista do campo mediante controle e compromissos eleitorais. Grignon, C. “La enseñanza agrícola y la dominación simbólica del campesino”, In: Foucault, M. et al. Espacios de poder, La Piqueta, Madrid, 1981, p. 53-84.
[8] Em vez de um complexo de interesses relacionados com a dinâmica social e política que condiciona os camponeses, o ensino agrícola é considerado por Grignon como um instrumento de dominação de tal forma que as suas instituições se estruturaram com a finalidade de gerar uma variedade de saberes. A granja-escola destinava-se à maioria dos futuros camponeses; as escolas técnicas, a futuros professores ou altos funcionários, enquanto os institutos agrícolas tinham como finalidade a formação dos homens de escritório do campo. Na medida em que se ascende na hierarquia, perde-se no caráter agrícola e rural, de tal forma que ainda quando o ensino se destine a um público definido em termos de origem social (os filhos de agricultores ou, ao menos, rurais), na realidade esta definição vem pelo seu destino social. Grignon, C. op. cit, p. 56/57.
[9] Na América Central, como em outros países latino-americanos, a Igreja Católica tem exercido um papel importante nas mudanças da estrutura agrária, primeiro como responsável pela introdução dos programas de reforma agrária e desenvolvimento rural durante o período da Aliança para o Progresso; e, depois, pela posição a favor dos despossuídos, gerando fortes enfrentamentos com a classe dominante, como na Nicarágua e em El Salvador.
[10] O crescimento do proletário urbano confere, por meio do ensino agrícola, a exaltação das virtudes camponesas, da imagem idealizada do camponês e da vida rural, de tal maneira que a violência e a miséria urbanas impulsionam a volta ao campo, onde o campesinato possui uma virtude evangélica. Grignon, p. 68.
[11] Ainda que Grignon não se manifeste claramente, as evidências indicam que em alguns países da América Latina esta finalidade não tem sido totalmente cumprida; situação ilustrada pelas alianças operário-camponesas em Nicarágua e El Salvador, que se converteram em pontos mais fortes dos processos revolucionários contemporâneos na região.
[12] Garcia Canclini lembra que os sistemas sociais necessitam reproduzir a ordem por meio de uma política cultural-ideológica, já que não existe classe dominante capaz de assegurar por muito tempo o seu poder econômico somente mediante o aparato repressivo. N. Garcia Canclini, As culturas populares do capitalismo. São Paulo, Brasiliense, 1983, p. 34/35.
[13] Em muitos países da América Latina o ensino agrícola encontra-se diferenciado de acordo com a origem dos estudantes. Assim os alunos das escolas agrícolas geralmente são filhos de camponeses, que recebem um pouco de teoria e prática e raramente continuam os seus estudos. Os colégios técnicos atendem a outro tipo de cliente: os filhos de camponeses médios e operários. Finalmente, as faculdades de agronomia raramente contam com camponeses. O seu público principal são filhos de agricultores médios ou altos, e de classe média urbana.
[14] A respeito, Dufumier indica que tanto é necessário formar estudantes de agronomia por meio de uma sólida base teórica, como também prepará-los para o trabalho de campo. Só assim o espírito científico se projeta sobre a realidade agrícola, em estreita relação com os produtores. Dufumier, M. “La formación de los ingenieros agrónomos para el desarrollo agrícola del tercer mundo”, In: Seminario Latinoamericano: La formación universitaria en desarrollo agrario, Manágua, Nicarágua, 1991, p. 7.
[15] O estudo da FAO mostra que nas últimas décadas, além de crescer o número de escolas e matrículas, cresceu aceleradamente tanto a quantidade de especialidades como a especialização profissional em ciências agrárias. FAO, op. cit., p. 28.
[16] Para Dufumier os engenheiros-agrônomos cada vez mais terão de mudar de empregador devido a circunstâncias econômicas, e demonstrar maior capacidade para enfrentar constantemente novos problemas que não admitem, a priori, nenhuma solução automática. Dufumier, M. op. cit., p. 4.
[17] Id. ibid, p.6.
[18] Tobar, J. M. “Desarrollo Agrario: ¿ Carrera, ciencia o universidad ?” In: Seminario Latinoamericano: La Formación Universitaria en Desarrollo Agrario, Manágua, Nicarágua, 1991.