Estudos Sociedade e Agricultura

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Luiz Werneck Vianna

1964


Estudos Sociedade e Agricultura, 2, junho 1994: 7-10.

Professor da UFRRJ/CPDA e do IUPERJ.


Se as sociedades onde tradicionalmente existem atores e instituições políticas fortes e enraizados, treinados nas artes da tentativa de exercer domínio sobre as circunstâncias, sempre experimentam surpresa com o que há de diferença entre os resultados das suas ações e as suas intenções, a nossa, com sua proverbial inorganicidade, parece estar condenada à estu-pefação diante de cada episódio significativo em sua história. Os idos de 1964 se constituíram em um desses momentos  um movimento político e militar, orientado para interromper o longo ciclo do regime Vargas, e que derruba por meio de um golpe de Estado o seu herdeiro, o presidente João Goulart, se põe, nem decorridos três anos, em linha de continuidade com o que fora o alvo da sua intervenção.

1964 teria vindo como que para confirmar 1937, não apenas pelo registro coercitivo de suas instituições o corporativismo sindical do Estado Novo foi legitimado pelo regime militar, em que pese a publicística ortodoxamente liberal da época de arregimentação de forças pré-golpe, mas sobretudo pela concepção de que os fins da aceleração econômica deveriam prevalecer na ação dos aparelhos do Estado. Os dois momen-tos fariam parte do processo de longa duração da moderni-zação conservadora brasileira, em que as elites políticas se sobreporiam às elites econômicas, e promoveriam a com-patibilização entre os interesses modernos da indústria e do ethos do industrialismo com as oligarquias agrárias tradicionais, num contexto institucional de controles sociais repressivos sobre as classes subalternas.

O regime militar teria produzido, pois, um resultado oposto ao das motivações que animaram as condições para o êxito do golpe de Estado, principalmente das forças sociais que o apoiaram em nome da defesa do liberalismo econômico e de uma “normalização” da estrutura de classes no país, “sa-neando” o Estado da presença das classes subalternas instaladas no seu interior, em razão do que seriam os efeitos perversos decorrentes do populismo de uma fração das elites e da própria estrutura corporativa na organização do sistema de poder de então. Como se sabe, tal “normalização” efetivamente ocorreu, ao preço, porém, da expropriação política de toda a sociedade civil, persistindo-se, ademais, na prática de um capitalismo politicamente orientado, muito distante das aspi-rações liberais de uma sociedade de livre mercado.

São inúmeras, de fato, as aproximações entre 1964 e 1937, no que houve de impulso fáustico neles para o desenvolvimen-to das forças produtivas materiais e no seu impacto sobre as estruturas sociais e de poder da ordem tradicional. Participam, inclusive, da mesma situação paradoxal: dois regimes crucial-mente autoritários, avessos à democracia política 1964 apenas tolerou o Parlamento, do qual procurou esvaziar todo poder, mas que dão curso a uma vigorosa democratização social pelas repercussões dos seus atos sobre a composição demográfica do país e suas estruturas sociais e ocupacionais. O autoritarismo desses dois regimes não se aplicou, portanto, na suspensão do movimento a fim de congelar, à Salazar, um status quo. Obedeceram, sim, à lógica transformista do con-servar-mudando e freqüentemente mais mudando do que conservando, basta ver a movimentação dos setores subal-ternos no mundo agrário, hoje liberados em grande parte do estatuto de dependência pessoal ao senhoriato rural.

Cessam, aí, as semelhanças. O tipo de modernização que vinga em 1937 supõe uma atitude mais complexa do ator ele evita isolar a economia da política e da organização social, seu estilo é europeu, durkheimiano, sistêmico. Precisamente o que se buscou com a introdução da fórmula política do corporativis-mo foi imprimir um andamento articulado e solidário às esferas da economia, da política e da organização social. Por outro lado, a cultura política do iberismo predomina em suas elites Oliveira Vianna é um exemplo notório, para não se falar do próprio Vargas, e daí suas predileções pelas concepções organicistas e comunitaristas da ordem nacional, e suas reservas quanto ao individualismo e ao mundo livre dos interesses.

Já 1964 é de inspiração americana em geral, para suas elites, o recurso à ordem burocrático-corporativa é meramente instrumental, como é inspirada na Sociologia americana a sua teoria de modernização social, ao contrário das referências européias, sobretudo italianas, dos homens de 1937. Nessa espécie de marxismo vulgar às avessas, tem-se a crença de que mudanças econômicas em sentido “modernizante” isto é, que criam o indivíduo apetitivo e valores de livre mercado, induzem a um desenvolvimento político e social homólogos à sua natureza. Introduziu-se, assim, uma abissal assimetria entre economia, política e organização social, as duas últimas congeladas pelo autoritarismo enquanto a primeira dispara num movimento em flecha. De outra parte, foi essa a lógica que separou drasticamente a esfera do público da esfera do privado, ensejando o aparecimento de uma cultura política em que o indivíduo via como estranho tudo que não fosse o seu interesse particular imediato.

Mais do que os desastres econômicos, derivados em grande parte de uma estratégia equivocada para agir na nova circuns-tância dos negócios do mundo, 1964 importou uma verdadeira hecatombe política, ético-moral e no tecido social, aprofundan-do a tradicional atitude na população de indiferença à política, dificultando, pela perversão individualista, a passagem do indivíduo ao cidadão, e agravando em escala inédita a exclu-são social, ao mobilizar setores subalternos do campo para os pólos urbano-industriais, onde chegavam destituídos de direitos e de proteção das políticas públicas.

Foi o processo de transição à democracia que revelou os efeitos da americanização “pelo alto” conduzida pelo regime militar a degradação do público não somente na esfera estatal, mas também na própria sociedade civil, em que a dimensão do interesse se aparta da dimensão da opinião, reduzindo-se a vida associativa a uma confraria inorgânica de interesses corporativos para a qual inexiste, salvo como retórica de legitimação, o horizonte da política e do interesse geral. Ensaia-se, hoje, a lenta sedimentação de uma nova cultura política, que, partindo do mundo dos interesses da grande maioria se invista de uma expressão pública a fim de transformar as relações entre a sociedade e seu Estado. Nesse caminho, trata-se de traduzir e elevar ao plano da política a tumultuada democratização societária, fruto imprevisto da obra do regime militar, convertendo interesses em direitos e deman-das sociais em refor­mas públicas que democratizem o Estado.

Cumprir esse novo processo requer a consolidação da democracia política e de instituições que garantam o fluxo da participação de uma cidadania que se expande, qualitativa e quantitativamente. 1964 é uma página virada, e, com tudo que trouxe de ruim, não deixou de confirmar, com independência das intenções, uma grande e antiga paixão nacional: o desen-volvimento material, com suas naturais repercussões sobre a desorganiza­ção da sociedade tradicional brasileira. Decerto que agora nos defronta­mos com um problema de construção da ordem mas há os que a querem como resultado da participação de todos, como há os que a pretendem reduzi-la à razão, à vontade e aos interesses de alguns poucos. E é nesse novo “1964” que todos estamos entre Fujimores e Pinochets ou, no melhor, num processo de afirmação da cidadania que reforce e institucionalize de vez a democracia política.