Estudos Sociedade e Agricultura

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Angela Mendes de Almeida

Classe e nação: estilos de pensar e de sentir


Estudos Sociedade e Agricultura, 12, abril 1999: 46-55.

Resumo: A partir de uma divergência recentemente exposta entre Le Roy Ladurie e Norbert Elias a propósito da origem da sociabilidade burguesa, faz-se um passeio pelas obras desses teóricos, retomando a influência de Thomas Mann sobre Elias, para discutir, em torno da contraposição entre a evolução histórica da França e a da Alemanha, a existência de estilos de ser ao mesmo tempo nacionais e de classe: estilos de pensar e de sentir, profundamente marcados pela evolução histórica das classes sociais nesses países. Esses estilos vão determinar escolhas ideológicas, literárias e artísticas, formando uma espécie de idiossincrasia nacional.

Palavras-chave: Nação; classe; burguesia; estilo de pensamento.

Abstract: Class and Nation: Styles of Thought and Feeling. On the basis of the recently exposed divergence between Le Roy Ladurie and Norbert Elias concerning the origins of bourgeois sociability, this article revisits the works of both thinkers, stressing Thomas Mann's influence on Elias and bringing into focus the oppositions between the historical evolution of France and Germany in order to discuss the existence of styles of being that are impregnated with national and class elements: styles of thinking and feeling that are deeply marked by the historical evolution of the social classes in those countries. These styles, in their turn, determine ideological, literary and artistic choices that lead to forms a national idiosyncrasy.

Key words: Nation; Class; Bourgeoisie; Styles of Thought; Aristocracy.

Angela Mendes de Almeida é professora da UFRRJ/CPDA.


Há pouco tempo um artigo de Peter Burke, colaborador habitual do Caderno “Mais”, intitulado “A hierarquia da nobreza”,[1] chamou a atenção para a obra de Emmanuel Le Roy Ladurie, Saint-Simon ou le système de la Cour (1997), sobre a Corte de Luís XIV vista pelo prisma das Mémoires do Duque de Saint-Simon. Por ser uma espécie de visão antagônica das análises, hoje já clássicas, de Norbert Elias sobre a mesma Corte e sobre Versailles (1987), o livro de Le Roy Ladurie era candidato a despertar a gula literária de qualquer um.

O Saint-Simon ou le système de la Cour é uma obra de fôlego de um historiador que já foi chamado de Le Dauphin de Braudel (Dauphin sendo o título do herdeiro do trono francês desde 1349 até a abolição da monarquia). Suas obras de maior repercussão foram Montaillou, village occitan (1975)[2] e Le siècle des Platters – T. 1: Le mendiant et le professeur (1995).

Não procede, entretanto, a observação de Burke sobre um início de carreira de Le Roy Ladurie dedicado às “pessoas comuns” que, surpreendentemente, teria desembocado em um tema aristocrático. Nesse ínterim, como boa parte dos historiadores franceses atuais, Le Roy Ladurie passou seu crivo pessoal sobre as histórias das histórias da França, dando a sua versão sobre acontecimentos e personagens.[3] Já se havia ocupado também do reino de Luís XIV e do de seu pai, Luís XIII, em L'Ancien Régime (1610-1715) (1991), no qual, por exemplo, chega a se confrontar com o cronista seiscentista de fatos aristocráticos e íntimos, Tallement des Réaux (1960), a propósito de uma alegada homossexualidade de Luís XIII, que ele aceita como possível, não sem antes desclassificar com desmesurado desdém o contador de historinhas, como boateiro pouco digno de confiança (1991: 57). Vale dizer, portanto, que como a grande parte dos historiadores franceses, Le Roy Ladurie esteve sempre atento ao “grande século” do Roi Soleil, que antecedeu ao das Luzes, culminando com a Revolução Francesa.

Voltando ao Saint-Simon ou le système de la Cour, trata-se de um diálogo implícito contraposto à análise de Norbert Elias em A sociedade de Corte,[4] distanciando-se do endosso admirativo de sociólogos como Bourdieu[5] e de muitos seguidores da escola des Annales, dentre eles, Roger Chartier.[6] O diálogo é implícito porque Le Roy Ladurie ignora praticamente a contribuição de Elias, reservando para um “Anexo” o comentário de suas divergências. A análise de Le Roy Ladurie sobre o sistema de corte durante o reino de Luís XIV e a subseqüente Regência, assentada sobre as Mémoires do Duque de Saint-Simon, desenvolve-se sob o signo da hierarquia, sendo o Duque tido como um obcecado pelo lugar hierárquico e pela pureza de sangue. Com efeito, em suas memórias Saint-Simon obstina-se contra uma modificação na ordem hierárquica introduzida por Luís XIV através do édito de 1715, pelo qual tornava “hábeis para a sucessão” os bastardos reais. O resultado desse édito foi o de criar uma escala intermediária de precedência na hierarquia aristocrática para os filhos das amantes do rei –da Duquesa de La Valière e da Marquesa de Montespan– entre os príncipes de sangue e os duques, entre os quais ele próprio. Saint-Simon (1993: 13 e 509) lamentava esse rebaixamento da nobreza de sangue em proveito de bastardos cujo lugar superior na hierarquia era devido apenas à preferência voluntariosa do pai-rei, subvertendo o princípio do sangue.

A crítica de Le Roy Ladurie a Norbert Elias vai no sentido de não aceitar sua tese de que a sociedade de corte representou um momento privilegiado –na chamada “Idade Clássica” (século XVII)– de pacificação e de domesticação da aristocracia, que, dominando os seus instintos guerreiros oriundos da Idade Média, forjou com seu comportamento cortesão, baseado numa fina etiqueta, a estrutura da sociabilidade moderna e burguesa, feita de civilidade, cortesia e polidez. Por ser um domínio da afetividade, das paixões rancorosas e amorosas, essa racionalidade cortesã seria, para Elias, a antecessora da racionalidade burguesa (Elias, 1987: 53-90).

Contra a pacificação da aristocracia Le Roy Ladurie argumenta mostrando que os nobres da Corte de Luís XIV estavam intensamente envolvidos nas guerras e campanhas militares. Mas o ponto crítico fundamental é o da transferência dessa etiqueta, orientada pela hierarquia, para a cordialidade burguesa, baseada no intercâmbio igualitário. Assim, o entendimento da fina psicologia do Duque de Saint-Simon como um precursor da sociabilidade burguesa revolta Le Roy Ladurie, para quem o “pequeno duque” seria essencialmente, com seu estilo “enérgico e original”, “um teórico e um prático da desigualdade de direitos do Antigo Regime”, “um representante de uma espécie destinada a desaparecer”, a aristocracia de sangue (Le Roy Ladurie, 1997: 516).

Na esteira do historiador americano Daniel Gordon,[7] Le Roy Ladurie contesta, com veemência algo exagerada, que a sociabilidade burguesa pós-revolucionária tenha tido sua origem na Corte de Versailles, com seu código de etiquetas estreitamente amarrado à hierarquia de sangue e à limitada mobilidade interaristocrática determinada pelos amores e humores do rei. Ao contrário, pensam esses dois historiadores –e nisso coincidem com a posição de Habermas–[8] que a sociabilidade burguesa igualitária teve origem nos salões aristocráticos e burgueses, aquelas cortes alternativas dirigidas pelas mulheres desde o início do século XVII, nas quais, das discussões literárias passou-se à de costumes e à moral, chegando enfim, no século XVIII, à contestação política. Aí o igualitarismo esteve presente, ainda que embrionariamente, no início, pois o que contava era a exposição, pela palavra, de uma idéia, de uma posição, independentemente da hierarquia social. Claro está que a democratização era limitada. Nos salões, além da nobreza, eram admitidos no máximo os membros da grande burguesia e os intelectuais –os hommes de lettres– oriundos da burguesia parlamentar. Os cafés londrinos eram mais democráticos como centro de discussão e de ebulição das novas idéias, pois admitiam comerciantes e artesãos, porém as mulheres estavam deles rigorosamente segregadas, enquanto nos salões parisienses elas e seu modo de sentir e de pensar estavam no comando.

Ainda no âmbito da crítica a Elias, emprestando de Gordon alguns elementos, Le Roy Ladurie introduz o tema, tratado mais em O processo civilizador (1990), da oposição entre a Kultur alemã e a Zivilisation francesa, e intimamente ligado à tese de Sociedade de Corte. Mostram, pois, Le Roy Ladurie e Gordon, que a origem da confrontação destes dois conceitos nacionais em Elias vem de um texto de Thomas Mann,[9] publicado durante a Primeira Guerra Mundial, com um forte tom francófobo.

Com efeito, a sugestiva tese então levantada por Mann é a de que as nações do âmbito latino-católico tinham tido sempre à disposição a palavra, o verbo, materializados na literatura, oriunda da civilização romana. O advogado[10] e o literato eram os porta-vozes do Terceiro Estado e de sua emancipação, das Luzes, da Razão, do progresso e estavam imbuídos do espírito político da revolução burguesa. Ao contrário, a Alemanha não dispunha da palavra, estava voltada mais para a música e para a poesia, nas quais mais do que a palavra e o “espírito”, vale dizer, a inteligência, desempenhavam papel predominante o sentimento: era a Kultur. Observação comum a muitos alemães, Mann, nesses anos de guerra mortal franco-alemã (a segunda em menos de 50 anos), dava lugar então à sua francofobia com a tese do “imperialismo da civilização”, a marcha triunfal da difusão do espírito burguês, francês por excelência, tornado político e literário, colonizando toda a terra (uma espécie do “eurocentrismo” tão caro a muitos teóricos de hoje). Para o Mann desse período –diferentemente do Mann da fase de ascensão do nazismo– a Alemanha protestava contra essa colonização que então se chamava Entente (a frente dos países Aliados contra a Aústria-Hungria e a Alemanha).[11]

Na verdade, a temática, sob formas diferentes, era comum aos teóricos e escritores alemães. Nas condições de atraso econômico relativo da Alemanha durante todo o século XVIII e início do XIX, era usual contraporem, “numa mistura de orgulho e pesar, o romantismo à Ilustração, o Estado de castas à sociedade industrial, a Idade Média à Modernidade, a cultura à civilização, a subjetividade à objetividade”. Durante todo o século XIX e início do XX, mesmo ultrapassado o atraso, os alemães desenvolveram essa idéia de exceção à regra européia, característica da sua essência, com “uma espécie de melancolia orgulhosa e aceitação do papel de marginalizado” (Lepenies, 1996: 203).

Que durante a Primeira Guerra esse sentimento tenha assumido momentaneamente o caráter de fobia contra o suposto imperialismo da civilização, essa entidade essencialmente francesa, não deve nem surpreender, nem indignar. Outras fobias foram desenvolvidas do lado francês contra os alemães, notadamente no caso Dreyfus (1894 -1906) quando ser judeu era ser alemão, e vice-versa, não se sabendo qual das duas condições era mais perniciosa para a pátria francesa. Mas é preciso levar em conta que a temática é mais complexa na trajetória de Thomas Mann.

Simbolizando a exceção alemã acima referida, havia nesse país uma particularidade que em nenhum outro lugar ganhou tanto espaço, que era a oposição entre literatura e poesia. Autores como Stefan George e Rudolf Borchardt defendiam a supremacia da poesia sobre a literatura, esse último chegando a definir o poeta como uma espécie ameaçada –leia-se, ameaçada pelo realismo e pelo racionalismo– o homo sapiens varietas poetica (Lepenies, 1996: 219-221).

É nesta problemática que se irá inserir Mann, porém, inicialmente, ao lado do literato e não do poeta. Entre 1910 e 1913, em seus escritos, ele desqualificava o poeta, ou o artista, como alguém que vive fora da realidade, moralmente indiferente aos destinos da nação, enquanto o literato, ou o escritor, era o intelectual engajado e crítico, uma espécie de philosophe francês do século XVIII, propagador do Iluminismo (Lepenies, 1996: 222-5). É de se notar que com esta opção se colocava contra a corrente, numa Alemanha onde os defensores da poesia consideravam “repugnante” a carreira literária de um Flaubert ou de um Proust (Lepenies, 1996: 222). Na verdade, segundo Lepenies, Mann estava dividido entre a opção intelectual pelo escritor europeu, francês em essência, e o anseio pelo artístico e pelo poético, divisão que se manifesta em seus próprios personagens (Lepenies, 1996: 226). Tal ambigüidade iria desembocar no Considerações de um apolítico, de 1918. Nesse texto confluíram o estado de guerra aberta entre a Alemanha e a França e uma discórdia com seu irmão, Heinrich Mann, o literato da civilização por excelência,[12] para levar Mann a desviar-se de sua rota de defesa do literato europeu engajado, substituindo-a pelo desprezo e pela ironia para com esse que agora via como um instrumento do imperialismo europeu. Mas, apesar de todas as críticas, pessoalmente Mann colocava-se ainda nesse texto como literato e escritor, marcando suas distâncias da poesia, arte alemã por excelência, juntamente com a música. O Iluminismo era visto como um destruidor da cultura, entendida como nacional e não universal, sendo seus veículos não apenas a cientifização como a politização (Lepenies, 1996: 228). 

Depois da guerra Mann viria a considerar este paradoxal texto como apenas “um romance experimental e de formação”. Em escritos posteriores, de 1929 e 1931, sobre Lessing, ele tenderia a reivindicar o fim da contraposição entre poesia e literatura, definindo-a como uma querela alemã ultrapassada. Às vésperas da ascensão de Hitler ao poder, um conflito em torno de um departamento, cuja chefia era ocupada por seu irmão Heinrich, colocou os dois Mann e outros contra os defensores da poesia, que já agora eram também defensores do antigo Reich Imperial, contra a República de Weimar, caminhando para a adesão ao Terceiro Reich. Assim, Thomas Mann entendeu sua posição a favor do literato também como uma defesa da República, do Iluminismo e do engajamento do escritor (Lepenies, 1996: 228-231).

Mas, para Le Roy Ladurie, também a tese de Elias, de que a sociabilidade burguesa nasce na corte aristocrática de Luís XIV, vem de Thomas Mann, que no Considerações de um apolítico considera que o espírito civilizacional, sendo um affaire bourgeois, tem no entanto origem nobre e senhorial. O burguês teria se apropriado dele. Lembra ainda Le Roy Ladurie, a partir de Gordon, que Elias estava perfeitamente familiarizado com essas idéias de Mann, a pedido de seu orientador, Karl Jaspers, que lhe encomendou uma análise do livro para um seminário com intenção crítica (1997: 583).

Há talvez em Le Roy Ladurie um tom excessivamente duro em sua crítica às idéias de Norbert Elias, a quem, de resto, protocolarmente, reconhece o estatuto de clássico, “grande autor”, “espírito considerável e de envergadura européia”. A crítica mordaz concerne, de um lado, a uma questão de fundo teórico, a saber, se pode haver empréstimos culturais interclassistas, se é possível à burguesia, em sua luta de morte contra o Antigo Regime, ter se apropriado de costumes, delicadezas, etiquetas, sentimentos, idéias próprios da aristocracia hierarquizante. Mas concerne também a uma questão mais política, a saber, se é justo aceitar que a “civilização”, um conjunto de idéias essencialmente francesas oriundo do combate ideológico dos enciclopedistas e vitorioso com a Revolução Francesa, seja uma planta concebida na estufa sufocante de Versailles, e mais, que essa origem tenha marcado definitivamente o modo de ser dos franceses. Com efeito, para Elias (1987: 83), na sociedade de corte e na “sociedade francesa em geral”, o “como” é mais importante do que “o porquê”, daí o formalismo.

Quanto à primeira questão, a de saber se a burguesia se apropriou do modo de ser aristocrático constituído sobretudo na corte de Luís XIV, é bom lembrar que embora Elias defina a racionalidade cortesã como a antecessora da racionalidade burguesa, em uma outra passagem, apontando para o fato de que na Corte não havia separação entre o espaço público e o privado, o sociólogo alemão indica que os hábitos e sentimentos cortesãos transferiram-se para o espaço privado no mundo burguês. Essa menção deve fazer-nos refletir sobre o quanto a sua análise é devedora da psicologia, entendendo ele a civilização como o domínio das pulsões, da afetividade, das paixões amorosas e rancorosas (Elias, 1987:67 e 89).

É óbvio que, se teoricamente a primeira questão é de maior transcendência teórica, é a segunda que é capaz de suscitar indignação. Resta saber se ela se justifica para além da crítica serena. Pois por trás dessas polêmicas encontram-se ênfases e idiossincrasias que são o próprio espelho de diferenças nacionais constituídas sobre uma estrutura de classes sociais historicamente formadas.

Tais polêmicas ilustram a existência de estilos de ser nacionais ou classistas, senão nacionais e classistas. São estilos de pensar, de conduzir o raciocínio, de privilegiar aspectos em detrimento de outros; são estilos de sentir, de escolher obras artísticas e literárias, mesmo estrangeiras, que se coadunam com o optante; são estilos de comportar-se e de valorizar certos modos de comportamento como pertinentes a determinada situação. Tais estilos são adotados pelos seus optantes, ou são-lhes atribuídos por outros como defeitos e idiossincrasias a evitar.

Esses estilos, ou melhor dito, essas visões de mundo, são ao mesmo tempo nacionais e classistas. Em uma interessante análise marxista Lucien Goldmann procurava associar esses estilos à história objetiva do desenvolvimento social (1967: 19-40). Enquanto a literatura francesa estava coalhada de exemplos de realismo psicológico, histórico e sociológico, uma literatura que descrevia o que o homem sentia ou fazia, a literatura alemã esteve sempre mais do lado daquilo que o homem deve fazer, do ideal, portanto, dos problemas morais. Por isso mesmo os escritores racionalistas e humanistas sempre tiveram mais dificuldade de relacionar-se com a sociedade, o que as correntes místicas e afetivas realizaram amplamente. Os grandes racionalistas viveram em solidão, alguns partiram para o estrangeiro, como Marx, outros sucumbiram aos distúrbios mentais, como Hölderlin, outros ainda isolaram-se, como Lessing. Neste ponto, Göethe teria sido uma exceção. Já escritores místicos e afetivos, em suma, românticos, como Shelling, George e Rilke, sempre mantiveram estreitos contatos com a sociedade. Por essa razão também a Alemanha quase não teve escritores cômicos e satíricos, já que o rir é muito mais uma atitude intelectual que sentimental.

Nesta ótica, a melancolia alemã e sua recusa do mundo moderno e industrializado na primeira metade do século XIX estava intrinsecamente ligada ao atraso material e político da burguesia alemã, materializado inclusive em sua incapacidade de promover a unificação. Esse atraso deu margem ao surgimento das “ciências da cultura”, por oposição primeiro ao universalismo enciclopedista, depois à sociologia que, sob a batuta de Comte, de Durkheim e de Spencer, se queria uma ciência objetiva, baseada em dados, em fatos sociais que são coisas. Por isso os alemães depositaram mais peso nos sentimentos e no romantismo, na cultura que é nacional por excelência. É também por isso, como mostra Michel Löwy (1987: 61-92), que tendo a Alemanha se industrializado, no fim do século XIX, mais intensa e rapidamente que a Inglaterra, os teóricos de estudos sociais estavam mais predispostos a duvidar das maravilhas do progresso e a relativizar as benesses do capitalismo. Tendo apostado na “cultura”, que era nacional e vinha das raízes históricas, puderam assistir à completa transformação material e social da sociedade alemã nas últimas décadas do século XIX, ao seu pujante avanço e ao crescimento da força da classe operária. O “nacional” e a “cultura” tinham se transformado e poderiam, portanto, vir a transformar-se outra vez. Assim um Dilthey, ou um Simmel, para não falar de Mannheim, puderam ter bem presente o caráter histórico e efêmero do capitalismo e de suas instituições, ao invés de senti-los como dados imutáveis da natureza, como coisas.

 

Referências bibliográficas

Elias, Norbert. La société de cour. Paris: Flammarion/Champs, 1985, (Prefácio de Roger Chartier).

Elias, Norbert. A sociedade de corte. Lisboa: Estampa, 1987.

Elias, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.

Goldmann, Lucien. Origem da dialética – A comunidade humana e o universo em Kant. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

Habermas, Jürguen. Mudança estrutural da esfera pública – Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

Le Roy Ladurie, Emmanuel, L'Ancien Régime (1610-1715). Paris: Hachette (Pluriel), 1991.

Le Roy Ladurie, Emmanuel. Saint-Simon ou le système de la Cour. (Com a colaboração de Jean-François Fitou). Paris: Fayard, 1997.

Lepenies, Wolf. As três culturas. São Paulo: Edusp, 1996.

Löwy, Michael. As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Munchhausen. São Paulo: Busca Vida, 1987.

Saint-Simon. Mémoires I. Paris: Gallimard, 1993, (Notas e apresentação de Yves Coirault), p. 13 e 509.

Tallement Des Reaux. Historiettes. Paris: Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1960.

 

Notas

[1] Burke é um historiador inglês com laços familiares com o Brasil, que tem se dedicado a temas de história cultural européia dos séculos XVI e XVII (Folha de S. Paulo, 27/9/98).

[2] Traduzido pela Companhia das Letras sob o nome de Montaillou, povoado occitânico (1997).

[3] Publicou Histoire de France (tomos II e III) abrangendo o período de 1460 a 1789 (Paris, Hachette, 1987 e 1991).

[4] O livro foi escrito em 1933 – sendo, portanto, um texto de juventude do autor - mas publicado apenas em 1969 (1987).

[5] Endosso manifesto, entre outros, em La Distinction. Paris, Éd. de Minuit, 1979 e La Noblesse d'Etat. Paris, Éd. de Minuit, 1989.

[6] Autor de extenso Prefácio para a edição francesa de La société de cour (1985) .

[7] Citizens without sovereignty - Equality and sociability in French Though (1670-1789), Princeton University Press, 1994, livro amplamente citado por Le Roy Ladurie.

[8] Jürguen Habermas analisa a origem da opinião pública burguesa no segundo capítulo de sua obra (1984).

[9] Trata-se do Considerátions d'un apolitique (Betrachtugen eines Unpolistische) Paris, Grasset, 1975.

[10] Referia-se aqui Mann às gens de robe - a “nobreza de toga”, ou burguesia parlamentar - setor social que havia monopolizado os cargos no aparelho de Estado monárquico francês desde o século XVI e tido uma imensa influência sobre a vida intelectual francesa, sobretudo através da literatura.

[11] Conforme o resumo de Le Roy Ladurie (1997: 583-584).

[12] Discórdia citada tanto por Lepenies (1996: 227) quanto por Le Roy Ladurie (1997: 586).