Estudos Sociedade e Agricultura

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Antonádia Monteiro Borges

O olhar estrangeiro sobre o processo de consolidação do MST


Estudos Sociedade e Agricultura, 12, abril 1999: 46-55.


O presente livro reedita de modo peculiar os saudosos estudos que em décadas passadas tornaram-se verdadeiros clássicos por oferecerem um amplo painel da história da luta agrária no Brasil, necessárias bússolas para quem navega no mar de minúcias dos estudos de caso.

Silvio Andrae realiza uma espécie de arqueologia teórico-bibliográfica em que coteja o processo de formação do MST com a sua experiência empírica em assentamentos de reforma agrária. Para compreendermos melhor o grande valor dessa investigação socioeconômica faz-se indispensável o resgate prévio do percurso do próprio pesquisador. Vindo da Alemanha, Andrae, livre de pré-noções próprias do conhecimento espontâneo dos que se encontram imersos na realidade que investigam, pôde dividir seu olhar, lançando-o para o processo de gênese histórica e teórica desse movimento social, sem jamais deixar de considerar o frêmito do tempo presente.

O autor constrói sua tese (apresentada em 1996, na Universidade Livre de Berlim, como trabalho de conclusão em Economia) a partir da identificação de elementos, na longa duração histórica, que apontam para a vinculação do desenvolvimento estrutural do setor agrário às mudanças nas relações de produção e ocupação de terras no Brasil – com especial atenção para o caso do Rio Grande do Sul, tendo por fim último a análise do papel do MST nesse processo.

A recuperação das raízes históricas do padrão de ocupação do solo e estrutura produtiva brasileiros compõe a parte introdutória do livro. Sem o compromisso ideológico que norteia muitas das tentativas de fazer-se um apanhado geral dos primórdios da colonização brasileira (recordemo-nos das teses feudalistas, capitalistas ou dualistas), o autor lança mão da própria “sociodicéia” nacional (exemplarmente simbolizada pelos chamados “ciclos produtivos”) para destacar elementos estruturais, com os quais construirá seu argumento. Para Andrae, a história da ocupação de terras no Brasil foi marcada desde sua gênese pelo nepotismo nobiliário (capitanias hereditárias, sesmarias) e pelo uso ininterrupto de violência pública e privada (expropriação de terras, trabalho escravo) e, através dessa arbitrariedade generalizada, cons-tituiu-se e “naturalizou-se” o poder perene da classe dominante latifundiária.

Ao recordar alguns episódios de nossa história com relação à reforma agrária, o autor disseca o intrincado jogo de poder que a traspassa, apontando para alguns fatores ilustrativos da ampla gama de interesses, das mais variadas ordens, que permeiam essa questão. Para ele, as pressões advindas da desigualdade gerada pelo avanço da industrialização (com a “modernização conservadora” ou o boom da produção voltada à agroindústria), somadas ao trabalho perseverante dos movimentos sociais calados durante o período da ditadura militar (emblemados pela mediação das igrejas Católica e Luterana, e pela ação sindical da Contag e CUT) e as raízes deixadas na memória coletiva por episódios paradigmáticos de luta (Canudos, as Ligas Camponesas e o Master, por exemplo) sustentaram o avanço na legislação presente já no Estatuto da Terra, com o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária, e a própria possibilidade de eclosão da luta pela terra, como se deu em meados dos anos 80. Entretanto, para cada ganho no sentido de estabelecer a questão agrária como ponto fundamental da agenda política nacional, o autor aponta também os limites e represálias expressos tanto pela poderosa oligarquia latifundiária (donde se tem o paradigma institucional da União Democrática Ruralista), quanto pela estrutura autoritária do Estado, refratária à alteração do padrão fundiário do país.

Nessa busca de um enfoque empírico e analítico para a interdependência entre desenvolvimento rural e estrutura agrária, o autor passa a examinar com maior acuidade o processo de ocupação de terras no Rio Grande do Sul. O Sul do Brasil, no século passado, basicamente ocupado por estâncias de criação de gado e fabrico de charque na zona da campanha pampeana, passou por uma profunda mudança em sua estrutura de ocupação e produção com a chegada das levas de imigrantes (açorianos e, posteriormente europeus). Essas “colônias” formadas por pequenas propriedades construíram-se a partir de um referencial étnico, condensado na sua missão de “branquear o sangue nativo”. Andrae tem o cuidado de analisar a formação da nação brasileira a partir das “três raças”, enquanto mito orientador das práticas e lógicas hegemônicas, e não como uma verdade absoluta. A ênfase dada à imigração advém, em parte, de seu interesse em esclarecer a peculiaridade da noção de “camponês” (tão arraigada à cultura alemã) para o caso brasileiro, tendo em vista que uma parcela significativa da base e principalmente da coordenação do MST é formada por autodenominados “colonos de origem”.

O padrão produtivo que emergiu com a imigração - distinto tanto da agricultura de subsistência, quanto da produção latifundiária – ficou identificado a esta “cultura do imigrante” (p. 27). Andrae enfatiza esse ponto, por considerar que a organização comunitária hoje orientadora das práticas políticas do MST, talvez encontre neste período ao menos sua origem mítica. Para o autor, as concepções e as conformações estruturais do MST vinculam-se diretamente às configurações socioculturais moldadas ao longo desse processo. Esse diferencial histórico fez do Rio Grande do Sul o berço do MST, exatamente pela distinta visão de mundo acerca dos valores da terra e do trabalho próprios do universo das “colônias”.

Andrae formula, então, a questão básica que orientará em grande parte o desenvolvimento de seu argumento: por que motivos, diante do processo, iniciado ritualmente no final do anos 70 (com as primeiras ocupações), o MST tem atingido resultados tão díspares em suas experiências de assentamento?

O MST, em sua luta pela reforma agrária, teria realizado uma espécie de antropofagia política, tomando as cooperativas de granjeiros como “modelo” a ser destruído ideologicamente, mantendo-as, no entanto, como referencial para a gestão sociopolítica dos recursos econômicos. Essa apropriação revelaria o que sempre pontuou o envolvimento do MST com o “cooperativismo”, expandindo seu significado para além do princípio de identidade do movimento. Andrae procura desvelar o processo de construção do essencialismo do “colono”, mostrando-nos o quanto seus significados e atributos estão relacionados à posição dominante dos “de origem” na organização do MST. O autor aponta para uma cisão entre o topo do movimento e sua base (bem mais heterogênea) que se atualizaria nos conflitos internos aos assentamentos, em torno do uso “individual” (os independentes) ou “coletivo” (os cooperativados) da terra – advertindo-nos, porém, do amplo espectro de relações que preenchem o espaço entre esses pontos extremos e antagônicos (p. 151). Essa composição plural da base do MST deveria ser suplantada pelo “sem terra em abstrato”, construído para causar empatia universal, a fim de poder ser aplicado em toda a nação (p. 106). Para Andrae, essas disputas internas correspondem a um mal-estar maior, em torno da aceitação, ou não, da crescente “proximidade com o Estado”: os que se manifestam contrariamente acreditam que os direitos oferecidos em forma de regalias acabam obscurecendo a distância entre as oportunidades legais existentes e a pauta de reivindicação camponesa; já os que apóiam esta “parceria” pensam que esse é o modo mais eficaz de avançar em direção à reforma agrária (p. 127).

A princípio, a produção cooperativada, defendida com unhas e dentes frente ao efeito negativo que traria o esfacelamento dos assentamentos, era extremamente informada por um ideal socialista de comunidade. O cooperativismo foi, no entanto, tão incentivado oficialmente (sistemas e centrais, formas criadas ao longo dos anos 90), que a tendência da organização produtiva afastou-se do modelo da pequena produção (subsistência e excedente para troca, “tradicional” da colônia), a partir de então tido como “anacrônico”, indo em direção à monocultura mecanizada em grandes extensões de terra – considerada mais “competitiva” (produção em escala). Essa guinada acabou por colocar em cheque o próprio modelo da cooperação, o qual jamais deixou de ser contestado, por assentados que não se sentiam contemplados com as divisas políticas obtidas com essa estratégia produtiva (p. 132). Como nos adverte o autor, a “modernização como fim” acabou não se restringindo ao âmbito da produção mas orientou a organização completa do cotidiano dos assentados (p. 136). Além das querelas em torno do modelo produtivo (rendimento do trabalho, motivação, divisão da produção, tomadas de decisões, engajamento político), problemas “pedestres” foram surgindo nos assentamentos, como as partilhas, as evasões e a exclusão dos não-colonos, os chamados “caboclos”.

A grande e definitiva contribuição de Andrae nesse trabalho está no exame crítico e inovador que faz da relação entre a Ong Iattermund e o MST. Essa organização não-governamental é responsável, há mais de uma década, pelo programa de capacitação massiva, levado a cabo nos laboratórios de campo e de centro, cujos respectivos objetivos são a superação da “racionalidade econômica alienada dos camponeses e a reprodução dos quadros dirigentes para o avanço do movimento”. Esse aparato é apontado por Andrae como o sustentáculo da organização e gestão das cooperativas do MST, onde uma orientação assente ao “marxismo vulgar” (apropriação de Leontiev) atribui aos camponeses “não engajados” o sinal derrogatório da “subideologia”, sendo a propriedade privada dos meios de produção a causa maior desses “vícios”, próprios do “atraso social” (p. 139 et passim).

Andrae avança e inova em sua análise ao buscar elementos que ajudem a pensar a distância entre o Conceito e a Realidade dos assentamentos de reforma agrária no Rio Grande do Sul. Embora sem questionar os fundamentos de uma avaliação econômica em si, o autor consegue mostrar que, por exemplo, os dados da primeira pesquisa socioeconômica sobre assentamentos de reforma agrária (FAO-PNUD-Mara, 1991) sugerem, para além da possível “inviabilidade econômica” da produção dos assentados, uma dinamização dos espaços sociais, onde essas novas experiências são fundadas, que não pode ser menosprezada, tendo em vista apenas os critérios de exclusão ditados pela hierarquia do “mercado”.

Sem dúvida são pessoas de carne e osso que conduzem Andrae a essas conclusões. Em uma “visita” de três meses à Cooperativa de Produção Agropecuária dos Assentados de Charquedas e Cascata, ele pôde armazenar dados que o permitiram reconstituir o processo de construção desses assentamentos como “modelo”, levando-nos concomitantemente a conhecer experiências que se afastam desse “ideal” (sempre desconstruindo um modelo corriqueiro), reconhecendo nas experiências dessas famílias fontes privilegiadas para a compreensão dos interstícios obscurecidos pelos dados oficiais e estatísticos.

Ao fim e ao cabo, o autor conclui que, atualmente, a maioria dos assentados tende a produzir individualmente, basicamente com trabalho familiar, não necessariamente pela eficácia econômica dessa organização produtiva, mas por recusarem a dominação arbitrária das cooperativas. Para Andrae, essas pessoas constroem-se dentro do MST, nas caminhadas e acampamentos, como sujeitos que almejam a liberdade e que, portanto, não conseguem aceitar o jugo, seja do próprio MST ou de quem for, quando alcançam a vitória, emblemada pelo assentamento.

Andrae, Silvio. Land in Sicht? Ländliche Entwicklung und Agrarstrukturen unter dem Einfluss der “Landlosenbewegung” in Rio Grande do Sul (Terra à Vista? Desenvolvimento e Estrutura agrária sob a Influência do Movimento dos Sem Terra no Rio Grande do Sul/ Brasil)./ Brasilien. Mettingen: Brasilienkunde-Verlag, vol. 17, 1998.