Estudos Sociedade e Agricultura

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Judith Carney & Rosa Acevedo Marin

Aportes dos escravos na história do cultivo do arroz africano nas Américas


Estudos Sociedade e Agricultura, 12, abril 1999: 113-133.

Resumo: Este artigo apresenta evidências botânicas e históricas sobre o papel do arroz africano (O. Glaberrima) e dos escravos na introdução desses cultivos durante o séculos XVI e XVII. Num enfoque sobre a cultura, tecnologia e meio ambiente desafia a perspectiva do Intercâmbio de Columbia que enfatiza a difusão de cultivos, já então desde a África, pelos europeus. A evidência apresentada neste artigo sugere um papel crucial da espécie arroz glaberrima e do escravo na introdução do cultivo africano para as Américas.

Palavras-chave: Arroz; escravo; transferência de tecnologia; intercâmbios de Columbia.

Abstract: The Slave Contribution to the Cultivation of African Rice in the Americas. This paper presents the botanical and historical evidence for the role of African rice (O. glaberrima) and slaves in the crop’s introduction to the Americas during the sixteenth and seventeenth centuries. By focusing on culture, technology and the environment the research challenges the notion of the "Columbian Exchange" which emphasizes the diffusion of crops to, rather than from Africa, by Europeans. The evidence presented in this paper points to the crucial role for glaberrima rice and slaves in the introduction of the African crops to the Americas

Key words: Rice; Slaves; Technology Transfer; Columbian Exchange.

Judith Carney é professora da Universidade de Califórnia.

Rosa Acevedo Marin é professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da UFPA.


Se a África parece ter contribuído pouco para outros continentes é porque a África apenas começa a ser conhecida (Portères, 1970: 43).

 

Introdução

Uma revisão da literatura botânica, histórica e geográfica sobre a história do cultivo do arroz nas Américas sugere que o arroz africano domesticado, Oryza glaberrima,1 pode ter servido como o arroz inicial cultivado em muitas regiões ao longo da margem oeste da costa do Atlântico; e que os escravos africanos do oeste, conhecedores das técnicas inerentes a seu cultivo, tiveram um papel crucial na adaptação dessa espécie nos diversificados ambientes do Novo Mundo.

Uma análise da história do arroz nas Américas levanta diversos assuntos que têm como característica a prevalência do conceito de “Intercâmbio de Columbia”, o período do intercâmbio de cultivos do século XVI ao XVIII. O conhecimento sobre tal intercâmbio tem dado ênfase aos cultivos que possuem algum valor econômico de origens americana, asiática e européia; o papel dos europeus na sua dispersão global; e, conseqüentemente, a difusão dos cultivos para além da África (Jones, 1959; Ribeiro, 1962; Miracle, 1966; Crosby, 1972; Kloppenburg, 1990). A ínfima atenção dada aos cultivos africanos relaciona-se a dois fatores: i) o pequeno papel de espécies africanas domesticáveis, como o inhame, feijão caupi, milheto e sorgho nas economias de plantation; ii) a antiga crença de que o arroz é somente originário da Ásia. [1]

Pesquisa histórica recente sobre o início do cultivo do arroz no Sul dos Estados Unidos, entretanto, contesta a visão na qual a África contribuiu tão-somente com o trabalho na história da agricultura nas Américas (Wood, 1974a; Littlefield, 1981; Hall, 1992; Rosengarten, 1997). Estendendo-se tal enfoque para a história do arroz na América Latina, através de uma integração preliminar das fontes botânica e histórica, o presente artigo fornece informações adicionais para o argumento de que a espécie Oryza glaberrima e os escravos tiveram papel crucial na expansão do cultivo do arroz nas Américas, durante o início do comércio de escravos pelo Atlântico. Assim, este trabalho diretamente relaciona temas variados sobre transferência tecnológica, conhecimento indígena e o papel dos escravos na sua adaptação como produto básico no regime alimentício dos diversos ambientes do Novo Mundo.

O artigo está dividido em quatro partes. A primeira seção trata do conhecimento botânico sobre a origem do arroz, enfatizando-se a descoberta, durante o século XX, de que a domesticação do arroz ocorreu no oeste da África, independentemente da Ásia. Esta última, durante muito tempo, foi vista como o único centro de domesticação dessa espécie. A parte seguinte trata dos Estados Unidos, onde as pesquisas histórica e histórico-geográfica dos anos 70 pela primeira vez chamaram a atenção para a contribuição africana na adaptação do cultivo do arroz na Carolina do Sul, o cultivo que sustentou a mais lucrativa economia de “plantation” do Sul. O papel das Ilhas do Cabo Verde, como uma estação agrícola pioneira, de caráter experimental para as plantações africanas e como uma espécie de entreposto para a difusão do arroz para o Brasil, é o enfoque da terceira parte. A última parte apresenta evidências botânicas e históricas da presença “precoce” do arroz glaberrima nas Américas.

 

Conhecimento botânico sobre o arroz africano

A domesticação do arroz africano (Oryza glaberrima) ocorreu há mais de três mil anos em uma região que vai do Senegal à Costa do Marfim, muito antes que algum navegador de Java ou Arábia tivesse introduzido o arroz em Madagascar ou na costa leste africana (Portères, 1976; NRC, 1996: 23)[2]. Do século VIII ao XVI, árabes e europeus mencionam o cultivo do arroz ao longo do interior do delta do Rio Niger e na costa oeste africana, bem como freqüentes compras dos excedentes pelos navegadores portugueses (Ribeiro 1962; Lewicki, 1974; Littlefield, 1981; Brooks, 1993). Durante o tráfico de escravos pelo Atlântico, os excedentes de arroz abasteceram os navios de escravos com destino às Américas (Carney, 1996a, b). Ademais, apesar dos numerosos estudos sobre o arroz do oeste africano, mesmo no século XX, estudiosos rotineiramente atribuem ao arroz origem asiática, sendo sua difusão para a África dita decorrente dos comerciantes árabes e portugueses (Reznik, 1932; Ribeiro, 1962; Grimé, 1976). Em conseqüência desse conhecimento de certa forma tendencioso, pesquisadores falharam ao não considerar a base nativa do conhecimento sobre os sistemas de produção de arroz africano e sua intensa relação com o aparecimento deste cereal nas Américas.

Assim, Linnaeus (1707-78) registrou apenas o arroz asiático Oryza sativa na sua classificação botânica da espécie Oryza, posição esta seguida, em 1866, por De Candolle (1964) em seu compêndio sobre a origem das plantas cultiváveis. A origem asiática do arroz permanece inquestionável, mesmo com as recentes coleções botânicas de arroz no oeste da África durante o século XIX. Leprieur, botânico francês, classificou os gêneros de arroz encontrados no Senegal entre 1824 e 1829 como da espécie sativa, e da mesma forma procedeu Edelstan Jardin, que coletou arroz nas ilhas próximas à costa de Guiné-Bissau no período de 1845 a 1848 (Chevalier, 1937a; Portères, 1955a). Porém, uma análise da coletânea de Jardin feita por Steudel, botânico da Morávia, levou-o a concluir, em 1855, que as amostras representavam espécies distintas da Oryza sativa asiática, as quais ele denominou Oryza glaberrima devido à sua casca macia. A sua pesquisa, entretanto, somente se ateve a afirmar que a O. glaberrima era de origem africana. Foi somente na virada do século que botânicos, que trabalhavam nas colônias do oeste africano, suspeitaram da origem africana pela grande expansão do cultivo do arroz de casca vermelha com características próprias. Essa suspeita levou à descoberta da pesquisa de Steudel realizada aproximadamente meio século mais cedo e a uma segunda análise da coletânea de plantas secas de Leprieur, na qual também detectou a presença de O. glaberrima (Portères, 1955a).

À medida que os franceses começavam a aprofundar as hipóteses de existência de uma espécie de arroz do oeste da África em 1914, o interesse em pesquisar a O. glaberrima passou a estar presente na comunidade científica internacional (Chevalier e Roehrich, 1914; Rochevicz, 1932; Chevalier, 1936, 1937a, b; Viguier, 1939). O renomado geneticista russo, Vavilov (1951), cuja linha de pesquisa nos centros indígenas de domesticação da planta recebeu enorme atenção nos anos 20, não fez nenhuma menção à Oryza glaberrima, atribuindo ao arroz somente a origem asiática.

Entretanto, durante as décadas seguintes, botânicos franceses intensificaram a pesquisa sobre a O. glaberrima. Eles demonstraram que o arroz asiático ainda não havia alcançado o Nilo e o Egito durante o tempo do geógrafo Strabo (em torno do século I, d. C.), o que tornou altamente contestável que a difusão do arroz asiático pelo Saara pudesse explicar a enorme presença de arroz nos distintos ecossistemas do Sudão francês no século VIII, quando foi comentado tal fenômeno pelos estudiosos árabes (Chevalier, 1932). Intensificando-se as hipóteses de uma origem africana, coletâneas de botânicos revelaram várias espécies relacionadas à O. glaberrima no oeste da África, sem, contudo, encontrar indícios de sativa selvagens (Rochevicz, 1932: 950).

Como os estudiosos franceses observaram o papel dos portugueses na introdução das variedades de O. sativa asiática no oeste da África durante o século XVI, eles ressaltaram a contínua predominância da O. glaberrima nas primeiras décadas do colonialismo (Chevalier, 1937a, b; Viguier, 1939; Pélissier, 1966; Portères, 1976). A pesquisa botânica sobre o arroz, por eles empreendida, ganhou importância como uma inquietação da metrópole, em especial nas épocas de escassez e fome que estiveram acompanhadas do interesse colonial em exportar seus cultivos. O arroz, cultivado em solos pantanosos impróprios para o cultivo de amendoim ou algodão, recebeu enorme atenção visto que era tido como produção que amenizaria as crises de alimentos (Carney, 1986). Durante os anos 30, o potencial do arroz como um produto para exportação teve um crescimento significativo com estabelecimento de zonas de pesquisa na região de arroz do oeste da África (Chevalier, 1936; Baldwin, 1957; Cowen, 1984). As estações de pesquisa deram maior importância às variedades de O. sativa de mais curta duração, mais prontas à irrigação, com dupla safra e moenda mecanizada. As variedades de O. sativa produziram mais lucro com as mudanças de ecossistemas, os grãos quebraram menos do que a glaberrima ao se utilizar a moenda mecanizada, e eram mais alvas. Dessa forma, elas atenderam aos interesses comerciais e preferências dos consumidores que formam os mercados de exportação europeus. (Chevalier, 1936, 1937b; Grist, 1968).

Nos anos 50, como o cultivo da sativa estava uniformemente substituindo a O. glaberrima, Portères (1976), botânico francês, identificou o centro de domesticação do arroz na África. Seguindo os métodos do pioneiro Vavilov, ele localizou o delta interior do rio Niger como o primeiro centro de domesticação da glaberrima, com centros secundários de cultivo desenvolvidos em pântanos na Senegâmbia e nas montanhas da capital da Guiné.

Nos anos 70, a pesquisa botânica francesa pioneira foi bastante conhecida pela comunidade científica internacional, a qual aceitou a conclusão de que o O. glaberrima era efetivamente uma espécie de arroz independente, de origem africana. O legado dessa conclusão está na publicação de dois livros, em 1974, por historiadores. Trabalhando com referências em árabe sobre o sistema alimentar do oeste africano durante a Idade Média, o historiador Lewickin (1974) registrou o remoto cultivo do arroz pelos povos indígenas do oeste africano. Durante o mesmo ano, o historiador americano Wood (1974a) argüiu que a história do cultivo do arroz nas plantations da Carolina do Sul é provavelmente de origem africana.

 

Contribuição africana para o estabelecimento do cultivo do arroz na Carolina do Sul

Até a pesquisa do historiador Peter Wood (1974a) sobre a evolução do sistema de cultivo do arroz na Carolina do Sul da época colonial, não havia nenhuma alusão que sugerisse que o cultivo do arroz nos Estados Unidos pudesse ter sua gênese nos escravos africanos. Observando o aparecimento do cultivo do arroz em relação à escravidão desde o início do período de colonização (1670-1730), a falta de conhecimento sobre as técnicas de cultivo pelos agricultores huguenotes da colônia e a domesticação da O. glaberrima no oeste da África, Wood atribuiu aos escravos provenientes do oeste da África o conhecimento do sistema de cultivo do arroz, uma vez que já estavam familiarizados com esse tipo de plantação.[3] O arroz tornou-se a base da dieta alimentar de milhões de pessoas envolvidas no comércio de escravos africanos, e a região africana do arroz contribuiu com mais de 40% dos escravos levados à Carolina do Sul (Wood, 1974a; Richardson, 1991).

Littlefield aprofundou a hipótese de Wood chamando a atenção para a remota produção do arroz no oeste da África, o interesse europeu nas técnicas de seu cultivo durante o comércio de escravos pelo Atlântico e a preferência dos agricultores pelos escravos que tinham alguma experiência com o cultivo do arroz. Ele identificou como de origem africana o sistema de cultivo do arroz em pântanos encontrado ao longo da parte superior da costa da Guiné, onde grupos como os Baga aprimoraram métodos de dessalinização de solos férteis para o cultivo do arroz. Através do fechamento de lotes com estacas ou diques e construindo pequenos canais, os Baga puderam reter água nos seus campos e removê-la de acordo com a gravidade das marés baixas (Littlefield, 1981: 80-98). Com técnica análoga desenvolvida nos pântanos da Carolina do Sul, Littlefield demonstrou que o sistema de cultivo do arroz, atribuído à ingenuidade do agricultor, era de fato uma parte importante da herança agronômica dos escravos vindos da região do arroz no oeste da África. Porém, posterior elaboração de estudo sobre a hipótese de Wood e Littlefield sofreu pela rara documentação sobre o história do arroz durante o início do período colonial e pelo fato dos relatos terem sido escritos por aqueles que foram escravizados. Assim, os proprietários das plantações alegaram ter sido eles os que experimentaram o cultivo do arroz em vários ecossistemas, trabalho certamente realizado pelos seus escravos.

Utilizando-se de uma perspectiva focalizada no ecossistema e no aspecto cultural, Carney (1993, 1996a, b) modificou a atenção da pesquisa do arroz visto como um cereal, para o arroz visto como um modo de cultivo, uma perspectiva que requer pensar-se no arroz como um conjunto de sistemas de produção distintos com técnicas específicas de manipulação de paisagens. O arroz, mais do que qualquer outro cereal, requer seres humanos para agir como agentes geomorfológicos da natureza, transformando pântanos em campos produtivos. Registros históricos afirmam que no oeste africano, quando se iniciava o comércio de escravos, existiam três grandes sistemas de cultivo de arroz, que podem ser diferenciados pelo microecossistema, práticas agronômicas, técnicas de solo e manejo do recurso hídrico (Carney, 1993, 1996a). A existência desses três sistemas de plantação do arroz – de terra firme, pântano interior (mais conhecido como igapó) e várzeas de maré – está registrada na Carolina do Sul pelos anos de 1730, durante as décadas de introdução do cultivo na colônia (Carney, 1993, 1996a).[4]

Típica do cultivo do arroz africano, e não do asiático, foi a ausência de sua transferência de um local para outro nas várzeas da Carolina do Sul. Também evidentes foram as técnicas semelhantes de produção, como o controle da água por eclusas (construídas a partir de buracos profundos), o conhecimento sobre a maré baixa e o curso d’água para prevenir a enchente excessiva dos campos já que se tornava possível o cultivo em áreas ocasionalmente ameaçadas pela invasão da água salobre, e o difundido uso das enxadas para capinar (ainda utilizado na agricultura do arroz na África).[5]

Mas o arroz poderia tornar-se um cultivo de exportação valorizado somente quando ele fosse processado de forma a remover sua casca.[6] Até o advento dos moinhos movidos a força da água, durante a metade do século XVIII, a moagem do arroz era feita com as mãos, da maneira africana, em um pilão de madeira (Wood, 1974b; Carney, 1996b). As cascas eram removidas através da separação do cereal em uma cesta, trançadas da mesma maneira, e para propósito análogo, ao da região do arroz na Senegâmbia do oeste da África (Rosengarten, 1997).[7]

Dessa forma, um enfoque sobre os aspectos ambientais do cultivo do arroz e a cultura material da infra-estrutura e moagem trazem novos entendimentos sobre a importante narrativa da diáspora africana. A próxima parte deste trabalho explora o papel crucial das ilhas do Cabo Verde, como lugares de intercâmbio de escravos e sistemas de cultivo entre o oeste da África e as Américas.

 

As ilhas do Cabo Verde e o arroz africano

Há algumas razões que sugerem o relevante papel do arroz africano no estabelecimento de tal cultivo nas Américas. A primeira está relacionada à história do arroz nas ilhas do Cabo Verde, enquanto a segunda, tratada na próxima parte deste trabalho, analisa a presença da O. glaberrima, conforme documentos, nas regiões de colonização africana nas Américas, onde as cozinhas que utilizavam o arroz ainda mantêm sua importância.

A partir de meados do século XV, a colonização das Ilhas do Cabo Verde, em especial de Santiago, desenvolveu um ativo comércio com os povos da costa oeste africana de cera, peles, índigo, alimentos, sal e escravos (Brooks, 1993: 130, 129). Desde o século IX o litoral e ilhas distantes da costa da Guiné, da Guiné-Bissau e Serra Leoa foram importantes entrepostos para o comércio de sal a longa distância (Brooks, 1993: 80). O cultivo do arroz em áreas alagadas sustentou esta vasta rede de comércio, mas esse cultivo somente emergiu como um importante bem de comércio com a chegada dos portugueses. Em torno de 1479, os principais grupos étnicos da região –Baga, Diola, Balanta, Bullom/Sherbro e Temni– já estavam comercializando sua base alimentar com os portugueses (Rodney, 1970: 21; Carreira, 1984: 27-28; Brooks 1993: 276-96).[8] A predominância desses grupos no início da rede de comércio entre africanos e portugueses, entretanto, não perdurou; pelo final do século XVIII centenas de agricultores de arroz haviam se tornado dependentes do comércio de escravos pelo Atlântico (Brooks, 1993: 174, 292-96).

No princípio do século XVI, Valentim Fernandes, segundo avaliações prévias de marinheiros, atribuiu a introdução do cultivo do arroz e do algodão na ilha de Santiago à área pantanosa de cultivo de arroz na costa da Guiné (Ribeiro, 1962: 147). O aparecimento das economias da cana-de-açúcar e pecuária na ilha durante este período ocorreu na mesma época do cultivo de espécies domesticadas como inhame, sorgho, milheto e arroz (Brook, 1993: 139-147; Ribeiro, 1961: 143-45; Duncan, 1972: 168; Blake, 1977: 91-92).

Desse modo, no século XVI, período inicial do “Intercâmbio de Columbia”, as ilhas do Cabo Verde já estavam servindo como uma estação de pesquisa agrícola ex-officio para a experimentação da espécie. Os navios europeus regularmente lá se abasteciam nas suas viagens para as Américas (Ribeiro, 1962; Duncan, 1972; Brooks, 1993), viagens estas que também contribuiram para a introdução do cultivo do milho e da mandioca no oeste da África. Mas os cultivos americanos foram substituídos por um ativo comércio de arroz em 1514 (Blake, 1977: 91-92). O arroz aparece em listagem de cargas dos navios que partiam de Cabo Verde em 1513-1515 (Ribeiro, 1961: 146-47). Em 1530, apenas 30 anos após Cabral reivindicar Brasil para Portugal, um navio deixou Santiago rumo ao Brasil, carregando sementes de arroz em sua carga (Brooks, 1993: 149).

Essa viagem foi seguida nas décadas subseqüentes por outras embarcações que entregavam sementes de arroz ao Estado da Bahia, um destacado lugar para o sistema de plantação da cana-de-açúcar no Nordeste do Brasil (Ribeiro, 1962: 143-44; Duncan, 1972: 167). Em 1587, o agricultor baiano, Gabriel Soares de Sousa, observou o importante papel das ilhas de Cabo Verde para a introdução de animais e cultivos no Brasil. Ele atribuiu a expansão do cultivo do arroz às sementes trazidas de Cabo Verde, e ainda a preferência dos escravos por inhame e comidas de origem africana, a argamassa e o pilão para o processamento do alimento, e o triunfo da dieta alimentar africana entre a população de escravos (Ribeiro, 1962: 152-56).

Assim, alguns fatos do século XIX levantam perguntas que contestam a duradoura visão de que a origem do arroz nas Américas somente deriva-se das variedades asiáticas. Essas incluem o antigo cultivo do arroz ao longo da costa da Guiné, a colonização portuguesa em ilhas africanas e a costa que era dependente dos alimentos excedentes da África; a grande expansão do comércio do arroz entre o oeste da África e as ilhas do arquipélago de Cabo Verde, e seu precoce cultivo em Santiago (Rodney, 1970: 74-88; Carreira, 1972: 47-62; Brooks, 1993: 137). Esse comércio ativo do arroz resultou, durante o século XVI, em repetidas entregas de sementes de arroz para o setor agrícola brasileiro. Enquanto contato comercial com a Ásia começava a se desenvolver nesse período, as viagens mais freqüentes entre a costa africana e Cabo Verde, bem como sua proximidade geográfica com as Américas, sugerem um importante papel do arroz africano em sua difusão pelo Atlântico.

O conhecimento português refletiu a visão geral de que a África pouco contribuiu para a “despensa” global de alimentos (Figueiredo, 1926; Ribeiro, 1962). Um renomado estudioso português atribuiu ao cultivo precoce no Cabo Verde, de “bases alimentícias inferiores e miseráveis”, sorgo e findo (Digitaria exilis), uma origem do oeste da África; entretanto, o mais significativo cultivo de arroz no arquipélago e ao longo da costa do oeste africano, ele atribuiu aos marinheiros portugueses que trouxeram a cultura do arroz da Índia[9] (Ribeiro, 1962: 27, 49). Aparentemente sem saber do conhecimento de botânicos franceses sobre as espécies independentes de arroz africano, a pesquisa de Ribeiro divulgou a mais generalizada visão de que o arroz asiático liderou a difusão desse cultivo pela bacia do Atlântico.

Porém, como revela a pesquisa sobre a Carolina do Sul, o cultivo do arroz depende do conhecimento de como descascar o grão sem quebrá-lo. Ao não atribuir ao arroz uma origem africana, Ribeiro perdeu uma importante relação. Confuso pela difusão primeira da argamassa e pilão africanos antes do processamento manual português em Santiago e Brasil, Ribeiro ressaltou a apropriada função da argamassa e do pilão para moer o sorgo, uma espécie africana (1962: 23). O instrumento português permitiria a moagem do sorgo, mas não do arroz. A difusão da cultura do arroz pela bacia do Atlântico dependeu principalmente de um instrumento apropriado para o seu processamento. Até a segunda metade do século XVIII, este instrumento foi a argamassa e o pilão, instrumentos que demandam habilidade ao manipular o arroz para que não se quebrem os grãos (Carney, 1996b).[10] Sem considerar a origem africana do arroz, Ribeiro não pode observar a importância dos escravos na difusão das técnicas de processamento com a argamassa e o pilão nas Américas.[11]

 

Difusão do arroz para as Américas

Os botânicos lideraram o interesse sobre a história do cultivo do arroz no Brasil. A presença precoce de tal cultivo nos locais de colonização do país de fato levou o botânico brasileiro, Hoehne (1937), a alegar que o cultivo do arroz antecedeu a chegada dos europeus em 1500. Relatórios interpretados do século XVI sobre as oferendas de arroz por ameríndios aos portugueses é uma evidência da sua domesticação. Pesquisas posteriores mostraram que esta era uma espécie selvagem e não a espécie sativa como o botânico havia argüído (Oliveira, 1993).[12] Se a visão de Hoehne sobre o cultivo do arroz antes de Colombo mostrou-se incorreta, seu trabalho forneceu confirmação independente de que houve cultivo do arroz no Brasil já no século XVI.

Documentos históricos sobre o Brasil, de meados do século XVIII, fazem freqüentes referências ao arroz, especialmente a uma espécie de casca vermelha, em uma grande área do nordeste da Amazônia (Primeiro, 1818; Marques, 1870; Chermont, 1885; Alden, 1959; Nunes Dias, 1970; Barata, 1973; Hemming, 1987; Oliveira, 1993; Acevedo, 1998). O arroz vermelho novamente torna-se bastante comentado durante a segunda metade do século XVIII, quando um sistema de plantação do arroz desenvolveu-se no leste da Amazônia com o apoio da metrópole. O objetivo era o de desenvolver mercados amazônidas de exportação para Portugal e adjacências, reduzir a dependência do arroz da Carolina do Sul, já que as colônias americanas haviam começado a Guerra Revolucionária (Nunes Dias, 1970; Acevedo, 1998). Isso levou à implementação nos anos de 1760 de plantações de arroz de maré irrigada em regiões amazônidas do Amapá, Maranhão e Pará, à introdução da semente do arroz “Branco da Carolina” de alta produtividade (uma variedade Oryza sativa), moinhos movidos à água para o processamento do arroz, e a importação de mais de 25 mil escravos (muitos da região de cultivo do arroz da Guiné-Bissau), e em 1767 ocorreu a primeira exportação de arroz moído para Portugal (Primeiro, 1818: 192; Klein, 1982).

Mas o contínuo cultivo do arroz vermelho passou a ser uma preocupação oficial. Em um decreto de 1772, Portugal ordenou a condenação de 1 (um) ano de prisão e multa para brancos que plantassem o arroz vermelho, e 2 (dois) anos de prisão para escravos e índios que fizessem o mesmo (Marques, 1870: 435-36; Barata; 1915, Acevedo, 1998). Enquanto as razões para essa medida legal permanecem não esclarecidas, ela pode sugerir que a variedade “vermelha” era a O. glaberrima, a qual quebra mais facilmente ao ser descascada (NCR, 1996), e se misturada a uma variedade melhor, teria como resultado uma maior porcentagem de grãos quebradiços, o que diminuiria os preços nos mercados europeus.

O arroz africano também pode aparecer em debates sobre as primeiras variedades cultivadas no Sul dos Estados Unidos. O “arroz guiniense” está listado entre as primeiras variedades cultivadas por escravos nas suas roças de subsistência na Carolina do Sul; o topônimo sugere a origem oeste-africana (Drayton, 1802; Allston, 1846). O arroz vermelho fora cultivado por Lawson em 1709 (1967ii: 729) e em 1731 (Salley, 1919: 10-11). Em outra área agrícola de trabalho escravo, o Suriname, o governador holandês em 1750 observou as vantagens de variedades de arroz lá cultivadas quando comparadas ao tipo encontrado na Carolina do Sul: “O arroz em Essequibo não tem RED RUSK que causou tantos problemas para crescer na Carolina do Sul” (Okra, 1961: 21). Isso pode indicar as vantagens da O. sativa sobre a O. glaberrima quando descascada. Certamente, durante o século XVIII os mercadores de exportação do arroz preferiam as variedades asiáticas. As variedades “branca” e “dourada”, altamente produtivas da Carolina do Sul, fizeram a produção desta colônia mundialmente famosa, e foram estas variedades de O. sativa (Salley, 1919) as introduzidas na Amazônia.

O. glaberrima foi certamente introduzida na Geórgia em 1790 por Thomas Jefferson, cujo pedido de mercadores de escravos para que se cultivasse o arroz de terra firme resultou no transporte de arroz da Guiné. Jefferson solicitou as variedades de arroz de terra firme na esperança de estimular o cultivo do arroz em terra firme, o qual reduziria a quantidade de casos de malária entre os escravos no cultivo realizado nas várzeas (Betts, 1944; Peterson, 1984).[13] As descrições dos mercadores sobre os sistemas de cultivo do arroz de terra firme africano repercutiram nos estudos do geógrafo holandês, Olfert Dapper, que observou, 150 anos mais cedo, aspectos semelhantes e ciclo curto, características que distinguiam o arroz glaberrima (Richards, 1996: 214-22).

Evidências de arquivos da Carolina do Sul confirmam o cultivo de múltiplas variedades de arroz nos anos de 1690, alguns sem dúvida de proveniência asiática, outros possivelmente da África (Salley, 1919). A predominância das variedades de sativa, altamente produtivas ao serem cultivadas, em meados do século XVIII, sem dúvida contribuiu para o desaparecimento de variedades que incluiriam a glaberrima. A partir do momento em que o arroz de terra firme não foi mais cultivado por ocasião da Revolução Americana, Jefferson teve que reintroduzir variedades do oeste da África. Porém, o fato de ele ter dado maior importância às variedades da terra firme levou ao fracasso a tentativa de alterar o curso da expansão do arroz de várzea e este, também, desapareceu.[14] O deslocamento da glaberrima dos lugares iniciais de cultivo nas Américas, a ignorância até este século sobre a existência de uma espécie diversa na África e a conseqüente ênfase do conhecimento sobre a exportação dos cultivos e as variedades sativa contribuíram para o fracasso de uma pesquisa mais extensa que relacionasse a introdução do arroz com a África e os escravos. Que a glaberrima cruzou o Atlântico durante o tráfico de escravos não há dúvidas, já que botânicos franceses observaram as variedades de O. glaberrima (a casca macia e a cor vermelha escura) em Caiena (Guiana Francesa) durante os anos 30, e em uma área de cultivo de cana-de-açúcar e índigo em El Salvador nos anos 50 (Vaillant, 1948; Portères, 1955b, c, 1960; Richards, 1996: 218). Porém, poucos estudiosos de outros ramos que não a botânica tomaram conhecimento de suas descobertas.

A glaberrima analisada em Caiena foi coletada de áreas de remanescentes de quilombos (maroons), que se rebelaram nos anos de 1660; muitos fugiram das plantações de cana-de-açúcar para serem livres na floresta tropical (Price, 1983). A variedade de arroz de terra firme de Caiena encontrada por Vaillant (1948), foi examinada por Portères (1955b, c, 1960) e ditas idênticas a outras colhidas por franceses na Guiné, Libéria e Costa do Marfim, onde elas eram conhecidas por “gbaga”, “baga”, ou “bagaye” depois dos Baga, com os quais estas variedades permanecem indelevelmente associadas. Apesar dos Baga aos poucos desaparecerem de muitas áreas, no oeste da África, onde estas variedades eram plantadas, seu papel de uma plantação de nível sobreviveu como o nome de uma variedade de arroz. Suas práticas de cultivo também resistiram na descrição detalhada e esboço do sistema de cultivo do arroz Baga (Circa, 1973), feita por um capitão de navios de escravos que observou o cultivo na Guiné. Talvez a descoberta das variedades Baga do arroz glaberrima em Caiena conduza ao testemunho do seu papel durante a escravidão, como um cultivo pioneiro nas Guianas.[15]

A importância do arroz como base da alimentação das comunidades de quilombolas (maroons) da Guiana já era evidente no século XVIII, quando mercenários europeus foram mandados para recapturá-los; e os quilombolas freqüentemente cultivavam o arroz em áreas descampadas e em pântanos interiores (Price e Price, 1992). O significado do cereal na história dos maroons está presente em lendas de seus remanescentes (Hurault, 1965; Price, 1983). Na área de Caiena, onde Vaillant encontrou as variedades Baga, escravos aquilombados alegaram que o arroz era originariamente proveniente da África, trazido por escravas que contrabandeavam os grãos em seus cabelos (Vaillant, 1948: 522).

Ademais, apesar da associação do cultivo com os escravos e maroons nas Guianas, pouco se sabe da história inicial deste cultivo na região. Alguns livros mencionam que o arroz foi sendo plantado por ex-escravos antes da chegada dos trabalhadores javaneses e indianos que estabeleceram este cultivo visando ao seu aspecto econômico entre os anos de 1870 e 1930 (Panday, 1959; Lunig, 1969), mas pouco mais que isso é dito. Ainda se faz necessária muita pesquisa sobre os sistemas das economias de plantation.

Coletâneas de botânicos sobre a O. glaberrima documentaram sua presença em dois lugares das Américas, enquanto materiais de arquivos sugerem que a glaberrima foi cultivada em outras partes. Se a glaberrima foi a espécie de arroz inicial trazida pelo Atlântico, isso nunca será provado. Entretanto, as evidências desta revisão de fontes botânicas e de arquivo indicam que a glaberrima foi de fato introduzida nas Américas durante o período de comércio de escravos pelo Atlântico.

 

Conclusões

Em 1637 os holandeses fizeram uma expedição para o Nordeste do Brasil com o intuito de desenvolver sua colônia em Pernambuco. Entre os eruditos que acompanhavam o governador designado, o Conde Maurits/Maurício de Nassau, estava o cientista holandês, Willem Piso, cuja permanência de sete anos no Brasil resultou no primeiro estudo verdadeiramente científico da geografia e da botânica do Brasil. Como o arroz interessou Piso por suas prováveis propriedades médicas, as avaliações dele indicavam que o cultivo do arroz já era feito quando se deu a colonização holandesa de 1630. O compêndio de Piso também menciona a plantação de alguns outros cultivos, como vagem e gengibre, os quais ele alega terem vindo da Angola para o Brasil (Piso, 1957).

Com a consolidação da escravidão ocorrida nos séculos seguintes, o papel dos cultivos africanos e dos escravos na adaptação desses nas Américas desvaneceu-se de comentários. Tentar recapturar elementos dessa história séculos mais tarde, como o presente trabalho ilustra, é trabalho árduo, retirado de registros fragmentados. A rara documentação escrita, entretanto, não impede o resgate histórico. Tomando-se uma perspectiva multidisciplinar, focalizada sobre a cultura, a tecnologia e o ambiente, outros tipos de evidências podem ser aduzidas.

Porém, uma melhor compreensão do papel do arroz africano nas Américas demanda pesquisa adicional. A primeira é a botânica, isto é, a importância de se examinar as coleções existentes para se detectar a possível presença da O. glaberrima em relevantes áreas de cultivo do arroz, como no Brasil e no Suriname. Há ainda a necessidade de se examinar materiais de arquivo da perspectiva do arroz como um cultivo complexo que pode ser plantado em diversos microambientes/ecossistemas perante princípios específicos quanto ao manejo do solo e da água. Um fator relacionado está em se situar o cultivo do arroz dentro de demandas próprias da sua moagem; deve-se relacionar a transferência de um sistema baseado em conhecimento indígena para a tecnologia e as exigências de processamento desse cultivo. O valor de tal aproximação serve para iluminar as origens e a difusão de complexos de lavoura. Finalmente, há a necessidade de um melhor entendimento histórico das redes transatlânticas que facilitaram a chegada de alimentos às Américas.

Estudiosos do século XVIII sobre economias de plantation atribuem o cultivo e subseqüente difusão do sorgo (Sorghum vulgare) e do óleo de palmeira africano (Elaeis guineensis) nas Américas à introdução dos navios de escravos (Grimé, 1976), desse modo esboçando a importância do papel do comércio e das sociedades científicas para a transferência de espécies economicamente úteis. Entretanto, menos explorado é o número de análises que afirmam que escravos africanos de forma direta introduziram nas Américas cultivos como vagem (Abelmoschus esculentus), inhame (Dioscorea cayenensis) e feijão caupi (Vigna unguiculata) (Grimé, 1976). Esses cultivos, inicialmente estabelecidos nas culturas de subsistência dos escravos, proveram os loci para a sobrevivência de muitos cultivos africanos dentre as populações negras das Américas.[16]

Vimos, pois, que além do seu potencial produtivo, há outras razões que levam a um estudo etno-histórico sobre a O. glaberrima. O aprofundamento de pesquisa cujo enfoque esteja colocado nas redes que proporcionavam aos escravos a obtenção das sementes de sua base da dieta alimentar poderia sem dúvida aumentar nosso entendimento sobre o papel desses cultivos africanos e seus povos no estabelecimento de suas bases alimentares nas Américas.

 

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Notas

[1] Uma das somente duas espécies do gênero Oryza, a glaberrima é pouco conhecida fora da África e, mesmo lá, tem-se presenciado uma constante substituição neste século pelas variedades asiáticas sativa, altamente rentáveis. Comparando-se às espécies asiáticas, a glaberrima é caracterizada pela sua casca de cor avermelhada, tamanho pequeno, macios(as) Glumes e tendência para quebrar-se em moenda mecanizada. Como a O. glaberrima dificilmente cruza com a O. sativa, a resistência maior do arroz africano em relação à salinidade, seca/aridez e enchente, tem-se dado maior atenção à produção da planta africana.

[2] Uma recente obra do Conselho Nacional de Pesquisa (National Research Council – NRC), Plantações Perdidas da África, chama a atenção para o potencial das pequenas plantações indígenas do continente para o aumento da provisão global e regional de alimentos. Destacando-se bastante, entre os 2.000 mil grãos, raízes e frutas nativas utilizadas como alimentos básicos, está o arroz africano (Oryza Glaberrima) “o grande arroz vermelho da curva do Niger” (1996: 17).

[3] Comentários constantes em arquivos sobre o cultivo do arroz na Carolina do Sul são evidentes nos anos de 1690 (Wood, 1974a). Nada sugere o conhecimento dos sistemas de arroz asiático pelos agricultores.

[4] A introdução do arroz na Carolina do Sul ocorreu durante os anos de 1690 (Salley, 1919).

[5] O sistema de tarefas, outro aspecto do cultivo do arroz na Carolina do Sul, também pode fornecer evidências indiretas do papel de africanos no estabelecimento do cultivo. Este sistema de tarefas, somente encontrado em plantations de arroz, demandava um trabalho diário do campo para sua concretização, o qual poderia significar para os robustos e saudáveis trabalhadores escravos um dia de trabalho reduzido. No mais penetrante sistema de trabalho da escravidão, estes trabalhavam do amanhecer ao pôr-do-sol. Uma aparência não usual do sistema de tarefas distintos nos cultivos de arroz talvez represente o resíduo de uma complexa negociação para se estabelecer cultivos de arroz na Carolina do Sul, nos quais os escravos forneciam o conhecimento necessário para o cultivo em troca de circunscritas exigências no seu cotidiano de trabalho (Carney, 1993a).

[6] O consumo de arroz depende da retirada da casca que cobre o grão, sem quebrá-lo durante o processamento. Burkhill (1935ii: 1601) resumiu o problema sobre a moagem do arroz comparando o seu processamento ao de outros cereais: “As máquinas de moagem de arroz européias não poderiam ser adaptadas simplesmente daquelas usadas na moagem do trigo, cujo objetivo é conseguir o mais fino pó; já na moagem do arroz o objetivo está em manter o grão tão inteiro quanto possível”.

[7] Rosengarten (1997: 273-311) alega que as cestas dos americanos nativos eram trançadas, não do tipo espiral posteriormente usado para a separação do arroz, o qual foi e permanece idêntico ao encontrado na região da Senegâmbia.

[8] A língua comercial falada na rede de comércio Biafada-Sapi formou-se de línguas oriundas dos grupos lingüísticos do oeste do Atlântico. Os grupos mencionados no texto são caracterizados pelo cultivo do arroz de várzea, sociedades tribais com pouca estratificação social, animista, e padrões de descendência matriarcais. Referências a eles aparecem em avaliações de Eustache de la Fosse (c. 1479), Valentim Fernandes (c.1506-10), André Alvares de Almada (c. 1594) e André Donelha (c. 1625) (Rodney, 1970: 6-45, 112; Brooks, 1993: 80, 275-79).

[9] Curtin (1984: 143), por exemplo, alega que durante o período de 1500-1634 somente 470 navios portugueses retornaram das viagens ao oceano Índico, menos de quatro navios por ano.

[10] Apesar do reconhecimento das espécies de arroz africano, a concepção de que as variedades asiáticas substituíram as africanas ao longo da costa oeste africana, durante meados do século XV, ainda é muito aceita. Entretanto, Richards (1996: 211-2) alega que a documentação sobre esta substituição da O. glaberrima pela O. sativa somente é evidente no final do século XIX, período colonial.

[11] Durante este período as sociedades asiáticas que cultivavam arroz usavam alguns tipos de instrumentos para processar o arroz. Esses incluíam a argamassa e o pilão bem como um instrumento para processar o grão com os pés, ao qual um pilão era anexado. O ato mecânico de baixar e levantar este instrumento, ou o pilão, retirava a casca dos grãos. Este instrumento foi muito utilizado na Índia, Sri Lanka, Tailândia e Japão (Grist 1968: 216a) mas não seria útil para o processamento da O . glaberrima a qual, como discute o estudo do NRC (1996), quebra com mais facilidade se utilizada o moinho mecânico. A importância das populações que migraram e a tecnologia para a moagem do arroz para a difusão do seu cultivo é evidente em outras comunidades de migrantes das Américas. Na região de cultivo do arroz em Belize, onde trabalhadores indianos cultivaram arroz ao lado de seus vizinhos afro-belizeanos, as diferenças na moagem são óbvias. A argamassa e o pilão são usados pelos últimos, enquanto os primeiros utilizam o método de processar o grão com os pés, o qual eles conhecem desde o século XIX (Carney, trabalho de campo).

[12] Este foi provavelmente O. glumaepatula (Oliveira, 1993).

[13] De fato, a famosa declaração de Jefferson, “O maior serviço que pode ser retribuído a qualquer país é o de adicionar uma planta útil a sua cultura”, foi feita de certa forma ao arroz. Ele dizia respeito à árvore de azeitonas e a introdução do cultivo do arroz de terra firme na Carolina do Sul, dando a mesma importância ao ato de escrever a declaração de independência e a liberdade de religião (Betts 1944: vii). Esse arroz de terra firme não se expandiu porque “não havia... os instrumentos para descascá-lo”, esta talvez seja uma referência indireta aos sistemas mecanizados de moagem que substituíram a argamassa e o pilão, mais apropriados para a moagem da O. glaberrima.

[14] Nenhuma variedade da O. glaberrima apareceu nas primeiras coletâneas dos Estados Unidos (Richards, 1986).

[15] No século XVI os holandeses começaram a estabelecer postos comerciais nas áreas dos Baga, formalmente sob o domínio dos navegadores portugueses (Carreira, 1984: 27-28; Brooks, 1993: 276). As frotas dos mercadores holandeses passaram a dominar as redes de comércio com o Brasil e assumiram o tal comércio em 1584. Por volta de 1621, de metade a dois terços do comércio entre a Europa e o Brasil eram transportados em navios holandeses (Boxer, 1965: 23). A economia holandesa de plantation do Suriname, por volta de 1630, tanto surpreendeu que se pensou na tentativa de estabelecer uma cultura semelhante no Brasil (Boxer, 1965). Sobre a exportação de escravos da região do arroz de Guiné-Bissau para o Brasil, especialmente para a Amazônia, no século XIX, vide Boxer, (1969: 192-3), Vergolino e Figueiredo (1990: 49-51).

[16] Em 1753, por exemplo, Sloane (I: 333) registra as tentativas de se manter o cultivo do arroz nas roças de subsistência pelos escravos que trabalhavam nas plantations de cana-de-açúcar da Jamaica: “Esse grão é espalhado pelos negros em suas roças e pequenos cultivos na Jamaica, e desenvolve-se muito bem naqueles de solo alagado, mas por causa da dificuldade em separar o grão da casca, ele é muito mais negligenciado, vendo-se que o seu uso pode ser suprido por outros grãos, mais fáceis de serem cultivados e de se utilizar com menos trabalho” (Grimé, 1976: 154).