Estudos Sociedade e Agricultura

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Georges Gerard Flexor

A modernização forçada da agricultura brasileira


Estudos Sociedade e Agricultura, 12, abril 1999: 189-193.


Les Transformations de lAgriculture Brésilienne, editado pela École de Hautes Études en Sciences Sociales, apresenta a tese de doutorado que Maria Beatriz de Albuquerque David realizou no Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain, de Paris. A perspectiva “histórico-estrutural” do livro desde logo mostra a influência de Ignacy Sachs, o seu diretor de tese. Como afirma o título, o seu objetivo é analisar as principais transformações ocorridas no setor agrícola brasileiro durante o período 1965-95, que, segundo a autora, corresponde a um processo de modernização forçada da agricultura brasileira. Para isso, o estudo analisa o setor agrícola enquanto segmento integrado ao modelo de desenvolvimento econômico e privilegia uma visão crítica que integra os aspectos tecnológicos, as relações com o quadro macroeconômico e a economia internacional, dando ênfase aos problemas distributivos e sociais.

Na primeira parte do livro, Albuquerque David examina o desenvolvimento do setor agrário brasileiro durante o período estudado. Primeiro, a autora expõe os fundamentos teóricos que sustentam sua análise e oferece uma revisão bibliográfica da literatura especializada sobre o desenvolvimento, o crescimento e o progresso técnico. Em seguida, ela apresenta os pontos essenciais dos debates que agitaram os anos 60, com ênfase no tema da natureza do modelo de desenvolvimento agrário.

Essa é, também, a seção mais “frágil” da tese, pois, sem problematizar, ela exibe uma vasta literatura. Com efeito, se o que ela quer é “entender a natureza dos impactos das inovações sobre o sistema produtivo” (p. 48), seria interessante argumentar de maneira um pouco mais convincente o que cada abordagem pode trazer de positivo para sua argumentação. Por exemplo, aprendemos que as abordagens evolucionista e neoschumpetariana representam interpretações bastante interessantes e importantes para se entender as transformações ocorridas no setor rural brasileiro, mas Maria Beatriz de Albuquerque David não nos explica especificamente porque tais abordagens oferecem um instrumento de análise capaz de interpretar o processo de modernização forçada da agricultura brasileira entre 1965 e 1995.

Essa parte significa mais uma revisão bibliográfica do que uma verdadeira argumentação com base numa intercomunicação entre diferentes abordagens. Temos, por isso, dificuldades em cercar os principais pontos de conflito que organizam o debate sobre as mudanças ocorridas no setor agrícola, as quais poderiam nos ajudar a entender melhor, histórica e teoricamente, o processo da modernização forçada.

O segundo capítulo desta primeira parte apresenta as controvérsias que agitaram os debates em torno dos modelos de desenvolvimento agrícola no Brasil. Partindo da constatação de que durante as últimas três décadas o sistema produtivo agrícola no Brasil sofreu significativas transformações, a autora afirma que é importante retomar a discussão sobre a reforma agrária e a modernização. E espera  que, desta maneira, sua contribuição possa ajudar a esclarecer o quanto esta discussão é atual. A hipótese inicial de Maria Beatriz de Albuquerque David é a de que o modelo de desenvolvimento agrícola privilegiou o aumento da produtividade e a diversificação da produção, deixando de lado os problemas distributivos e de eqüidade social. Para isso, ela apresenta as duas principais vertentes que marcaram profundamente a controvérsia sobre o modelo de desenvolvimento rural brasileiro, isto é, as perspectivas que a autora chama de reformista e produtivista.

 A argumentação se organiza a partir do confronto entre as teses dos principais economistas reformistas (Alberto Passos Guimarães, Caio Prado Júnior, Celso Furtado e Ignácio Rangel) e produtivistas (Gudin, Delfim Netto, Nicholls e Schuh). Para os primeiros, a grande propriedade fundiária representaria um entrave ao desenvolvimento rural e era vista como uma marca do subdesenvolvimento. Nesta ótica, a reforma agrária se tornava a questão central do desenvolvimento (rural). Para a abordagem produtivista, ao contrário, as políticas fundiárias distributivistas não têm quaisquer efeitos; o problema da pobreza rural não sendo mais que uma mera questão de baixa produtividade. Por esta razão, a perspectiva produtivista centrava a sua argumentação nos fatores endógenos capazes de impulsionar a modernização, pois a terra e o trabalho eram abundantes e o capital, escasso.

Observamos que Maria Beatriz confere ênfase aos argumentos reformistas, revelando, com isso, o seu desejo de atualizar a problemática social do modelo de desenvolvimento rural brasileiro. Ao contrário do primeiro, esse capítulo se mostra bem mais preciso e claro quanto à definição do objeto de estudo. A argumentação teórica e histórica aqui aparece servindo à análise de maneira eficaz. Além disso, se lembrarmos os debates políticos correntes sobre a reforma agrária e o MST, esse capítulo tem o mérito de nos alertar para o fato de que os problemas atuais estão enraizados numa “velha” história que até hoje não encontrou soluções. Assim, podemos afirmar, com Maria Beatriz de Albuquerque David, que a questão do modelo de desenvolvimento rural ainda representa um debate da maior importância para a agenda política desses nossos dias.

A segunda seção do livro contém um vasto trabalho empírico no qual a autora procura estabelecer as relações técnicas, e faz as suas matrizes de correlações, procurando relevar os significados mais importantes das transformações estruturais do setor agrícola entre 1970 e 1985. Ela trata, por fim, dos principais instrumentos das políticas setoriais e dos seus efeitos, sem deixar de lado as considerações macroeconômicas gerais.

O primeiro capítulo dessa parte vai procurar estatisticamente: 1) analisar as relações técnicas que permitem acompanhar a evolução da produtividade total de cada fator e de seus graus de usos; 2) analisar a evolução do uso da terra (dando ênfase às dinâmicas espaciais e às superfícies exploradas); 3) comparar a superfície total com a superfície efetivamente usada, construindo, assim, uma série de indicadores sobre o desempenho do setor; 4) criar indicadores de modernização; 5) realizar uma tipologia das diferentes maneiras de produzir. Os principais dados usados para avaliar as mudanças estruturais são os seguintes: produto, produção e produtividade, crédito agrícola, taxa de juros, taxa de câmbio, preços internos e internacionais e a composição da pauta das exportações.

A riqueza estatística desse capítulo, fundada numa metodologia simples e clara, enfatiza, de modo bastante convincente, a dinâmica do processo de modernização agrícola no Brasil. Com ela, o leitor pode observar a intensidade e a forma do impulso tecnológico experimentado pela agricultura brasileira a partir de 1970. O foco espacial e o bom corte cronológico da autora refinam a análise e permitem tanto localizar a dinâmica do processo de modernização, como ainda apreciar com maior ênfase a intensidade deste processo durante a década de 70. Com efeito, a análise empírica mostra que, durante os anos 1970-75, aumentou de maneira considerável a produtividade, em particular a do trabalho, tal crescimento localizando-se no estado de São Paulo. Por outro lado, os diferentes cortes espaciais permitem visualizar as características produtivas de cada região e a dinâmica da modernização da agricultura segundo o eixo São Paulo-Centro-oeste. Contudo, sentimos falta de comentários sobre os resultados desses processos, ou que a autora os relacionasse com a discussão teórica. Em todo caso, a autora usa uma metodologia cuja principal vantagem é ser clara e relativamente independente das hipóteses restritivas que em geral caracterizam os grandes modelos econométricos.

O segundo capítulo dessa seção empírica procura articular as mudanças ocorridas na agricultura com as políticas setoriais e macroeconômicas a partir da análise do crédito rural, dos investimentos, das políticas de preços garantidos, dos programas especiais (Pro-Álcool), das políticas comerciais e, em particular, da taxa de câmbio e da evolução da estrutura fundiária entre 1970 e 1980. Aqui, o tratamento estatístico continua claro e abundante, destacando as implicações dos programas de apoio à agricultura como impulso ao processo de modernização agrícola, especialmente a política de crédito à agricultura que, como se sabe, foi, durante os anos 70, o principal instrumento de apoio à modernização agrícola.

A autora chega ao resultado de que as maiores alterações da agricultura brasileira ocorreram entre 1970 e 1975, com a concentração do processo de modernização agrícola nos estados de São Paulo e na região Sul. Segundo ela, o eixo dessa dinâmica modernizante foi a transformação na maneira de produzir. O aumento da produtividade do trabalho e da terra concentrou-se no estado de São Paulo e a produtividade da terra, no Sul. Houve, ainda, uma subordinação do modelo de desenvolvimento da agricultura à lógica da inserção internacional da economia brasileira. Este aspecto é evidenciado pelo aumento de produtividade da produção de commodities (algodão, arroz, milho, trigo, soja, laranja, uva, tomate, feijão, recentemente, e frango) e a concentração do financiamento na produção de soja, laranja e cana-de-açúcar. A autora conclui, então, que o modelo de desenvolvimento agrícola padronizou uma modernização socialmente excludente, e aponta o esgotamento da dinâmica desse modelo. Este capítulo tem as mesmas limitações que caracterizam o precedente, ou seja, a falta de articulação entre os resultados empíricos e a visão mais geral do processo de modernização forçada.

Para concluir, a autora constata que suas quatro hipóteses iniciais se verificam, ou seja: 1) ocorre, no período, um processo de modernização forçada; 2) a agricultura brasileira tem uma forte capacidade de incorporar tecnologia; 3) processa-se uma maior integração do setor agrário ao resto da economia; e 4) o modelo de modernização forçada dá mostras evidentes de esgotamento. A verificação de suas hipóteses permite a Maria Beatriz de Albuquerque criticar o modelo de modernização agrícola que, segundo ela, é importado de países onde a mão-de-obra é escassa. Dessa forma, a forte integração da agricultura brasileira ao conjunto da economia limita suas possibilidades de desenvolvimento autônomo. Contudo, a capacidade de organização dos trabalhadores sem-terra, a estagnação da superfície plantada e a ausência atual de um modelo de financiamento para o setor agrário fazem com que reapareça a questão fundiária como tema importante da agenda política nacional.

Não há dúvida de que Les Transformations de lAgriculture Brésilienne representa uma rigorosa análise do processo de modernização agrícola brasileira durante o período 1965-95. A sua rica documentação estatística serve de maneira eficaz às proposições da autora, em particular à do modelo de modernização forçada e do esgotamento do seu dinamismo. Além disso, o foco espacial presente no livro garante ao leitor uma boa visualização da geografia desse processo de modernização, cujo centro é São Paulo, tendo os amplos espaços no Centro-oeste, com sua fronteira dinâmica. Porém, uma melhor articulação entre as seções teórica e empírica teria facilitado a argumentação da autora e lhe teria permitido evidenciar com maior clareza as suas hipóteses.

Maria Beatriz de Albuquerque David. Les Transformations de l’Agriculture Brésilienne. École de Hautes Études en Sciences Sociales, Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain, 1997 , 485p.