Estudos Sociedade e Agricultura
Rosa Elizabeth Acevedo Marin
O Lago dos Espelhos: antropologia do saber local, da cultura nacional, dos movimentos étnicos
Estudos Sociedade e Agricultura 12, abril 1999: 194-196
Nesse livro, Priscila Faulhaber verticaliza seus estudos sobre etnias na área do Médio Solimões, trabalho iniciado com O Navio Encantado: Etnias e Alianças em Tefé (1987).[1] Ambas as publicações são produto de mais de 18 anos de pesquisa. A continuidade e o aprofundamento refletem-se no capítulo que se torna central n’ O Lago dos Espelhos, no qual analisa as representações sociais relativas à emergência do movimento indígena e à formação etnológica de Tefé. A autora sugere o adensamento desses estudos indicando o propósito de realizar neste novo livro “A operação significativa de narrativas colhidas em Tefé”, entendendo essa narração como produto da ação comunicativa de uma coletividade (p. 35-36). Assim, uma linha de interpretação é afunilada, de um lado, nas trilhas da antropologia histórica e, de outro, ao inserir-se na antropologia brasileira que focaliza a Amazônia como uma fronteira, apontando os caminhos para uma antropologia das relações sociais, do saber local, dos movimentos étnicos e das narrativas nacionais.
Trata-se de um trabalho dominado por uma qualidade importante para a elaboração do conhecimento etnológico: apresentar uma forma de escrita bastante comunicativa, o que torna a leitura empolgante. Esta segue uma estrutura da narrativa em que se perfilam o que a autora denomina os atores e os saberes sobre a fronteira. Quanto à teorização, esta é construída articulando as noções de identidade, situação histórica e fronteira, e ainda introduz outro foco de atenção ao tratar das categorias presentes no discurso dos índios – “cidades assentadas”, “aldeia”, “povoado”, que foram discutidas no campo das relações sociais entre índios e agentes da sociedade nacional, continuamente travadas no interior do processo de ocupação territorial e de formação de fronteiras. Outro nível dessa elaboração cuidadosa é registrado no tocante ao tratamento de fontes documentais que apóiam a interpretação das representações relativas aos movimentos de fronteiras e etnias. A produção etnológica do missionário Tastevin e o conteúdo de documentos históricos lhe permitiram marcar os eventos para a institucionalização das fronteiras e da territorialização dos índios.
O historiador encontra-se dentro deste livro guiado por uma expressa declaração sobre a concepção e a escrita da História. Inicialmente, a autora nega qualquer intenção ou ato de presentificar o passado, pois este não pode ser legitimado por documentos mortos. Importantes são “as práticas destes grupos no que se refere às concepções de fronteira e território... estratégias referentes a uma situação social gestada em um campo de ação e situada historicamente” (33). As categorias dos diferentes discursos passam a ser apreendidas como ‘formações discursivas’ de inspiração Foucaltiana e estas servem ao propósito de colocar em prática procedimentos da “arte de relatar aspectos omitidos pela história oficial de maneira a fazer aparecer as ações das vítimas” (p. 35). Portanto, este olhar passa a construir uma “outra história” moldada pelas representações do movimento dos índios de Tefé. Nas páginas sobre as Fontes Históricas debruça-se a autora sobre o material escrito por cronistas, viajantes, religiosos, homens de Estado, naturalistas, historiadores, diplomatas e homens de ação em diferentes momentos da história da Amazônia (p. 77) apreendidos como saberes sobre a fronteira e, ao mesmo tempo, uma espécie de história do saber, considerando suas rupturas. Aqui, a autora quer abrir uma discussão sobre as diferentes categorias de ocupação que estariam sistematizando as diferentes formações discursivas. Este capítulo é digno de atenção pelo registro cuidadoso e, ao mesmo tempo, leve dos proponentes desse saber, apesar de citar um bom número de autores e demarcar diversos eventos históricos. O é ainda mais pelo exercício analítico das formações discursivas que correspondem ao subtítulo de Mapeamento das descontinuidades históricas, ao meu entender uma etnografia desses saberes para destacar as representações, inclusive atuais, sobre a escravidão indígena na fronteira.
No tocante à formação do campo etnológico contemporâneo, cabe perguntar: que tipo de saber e que volet está organizado no campo de observação etnográfica do breton Tastevin? Há menos de 70 anos, este missionário esteve inserido nesse cenário (1906-1926) em torno das atividades da Congregação do Santo Espírito integrada por padres franceses que atuaram na Missão de Tefé. Destacou-se no grupo de missionários, que chega a produzir um conhecimento social sobre a ocupação. Uma frase o descreve: O etnólogo Tastevin pensava como etnólogo o que via com os olhos de padre, com esta palavra acentuando a sua duplicidade, dela decorrendo seus papéis conflitivos. Atencioso, Tastevin mostrou as condições de trabalho e maus-tratos infligidos pelos caucheiros e igualmente a insubmissão dos indígenas, que conservavam a memória das lutas. Priscila Faulhaber terá outra chave de interpretação e arrematará o seu estudo com as narrativas imaginárias que informam a visão nativa do território. Os relatos, um deles “O Lago dos Espelhos”,[2] são tratados enquanto material de linguagem, permitindo-lhe captar “interpretações históricas” imbricadas nas narrativas míticas que comporiam o reconhecimento pelos índios das relações sociais e que norteiam suas práticas. Expõe a autora que estas servem como elementos ativos na mobilização indígena, visto que expressam tradições históricas e míticas no contexto das reivindicações indígenas. Uma delas, a do reconhecimento dos territórios ocupados e das fronteiras étnicas. No estudo, a dimensão simbólica não se reduz a essa dimensão utilitária.
A bússola que norteou o caminho de pesquisa de Priscila Faulhaber revelou-se afinada, ou melhor, orientadora do processo de produção de conhecimentos dado por uma imersão na história do saber sobre a fronteira, naquilo que é menos fácil de se apreender: as representações e as relações sociais sobre a fronteira e os movimentos étnicos.
Faulhaber, Priscila. O Lago dos Espelhos: Etnografia do Saber sobre a Fronteira em Tefé-Amazonas. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1998, 215p. (Disponível para venda por e-mail: <[email protected]>).
Notas
[1] Faulhaber, Priscila. O Navio Encantado: Etnias e Alianças em Tefé. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi, 1987, 253p.
[2] O relato do Lago dos Espelhos, que inspira o título do livro de Priscila Faulhaber, foi transmitido por um índio Miranha a Augusto Cabrolié de Souza. Foi divulgado originalmente no livro intitulado Síntese da História de Tefé (Manaus, Imprensa Oficial, 1984). Tastevin e Cabrolié foram contemporâneos na missão Tefé.