Estudos Sociedade e Agricultura
José Luis Petruccelli
Grupos sociais dominantes e estratégias familiares, Vassouras, 1889 - 1929
Estudos Sociedade e Agricultura, 12, abril 1999, 134-147.
Resumo: No trabalho são analisadas as características socioeconômicas das camadas mais favorecidas da sociedade de Vassouras, à época do declínio da produção cafeeira, entre 1889 e 1929. São focalizados tanto os grupos no poder econômico, como os detentores de poder político-administrativo da região. A seguir são estudados dois tipos de estratégias familiares ligadas à reprodução social dos grupos dominantes, tendentes a favorecer a conservação do patrimônio acumulado: a homogamia e as alianças matrimoniais.
Palavras-chave: Estratégias familiares; grupos dominantes; Vassouras, 1889-1929
Abstract: Dominant Groups and Family Strategies: Vassouras, 1889-1929. In this paper the socio-economic characteristics of Vassouras’ dominant groups are analysed, in the period of the decline in coffee production which took place between 1889 and 1929. The analysis covers both the leading economic groups as well as those holding political power and control over the local administration. Two kinds of family strategies are studied, both related to the dominant groups’ patterns of social reproduction, aimed at the maintenance of accumulated patrimony: homogamy and marital alliances.
Key words: Family Strategies; Dominant Groups; Vassouras, 1889-1929.
José Luis Petruccelli é analista especializado da Fundação IBGE.
Introdução
A região de Vassouras, no estado de Rio de Janeiro, proporciona, durante a segunda metade do século XIX, uma oportunidade privilegiada de estudar diversos aspectos da formação e reprodução de uma sociedade, de maneira quase que “experimental”. As particulares condições que promoveram o estabelecimento de uma próspera coletividade agrícola nesse local do Vale do Paraíba se vinculam com as vantagens relativas de solo e clima para o cultivo do mais importante produto de exportação nacional da época. “O café, no Brasil, moldou padrões sociais e econômicos do passado e do presente. A fazenda de café de meados do século XIX era a base da economia nacional: seu núcleo político, econômico e social” (Stein, 1990: 13).
Se o funcionamento da sociedade brasileira na época do império se sustentava no tripé coroa-escravidão-grande propriedade, após o surgimento da República, e apesar da relativa diferenciação estrutural onde categorias sociais diversificadas se multiplicaram fora do antigo eixo senhor-escravo, o instrumento social expressado no tripé poder-relações de trabalho-propriedade se manteve intacto. A concentração da propriedade fundiária era uma característica da região. Um registro de imóveis de início da década de 1850 (Stein, 1990: 41) revela que 28 propriedades detinham a parte mais produtiva dos 1.400 km2 do município de Vassouras. “As famílias dominantes preservavam e ampliavam seus bens através do casamento dentro dos próprios clãs ou entre eles” (Stein, passim).
Este trabalho pretende contribuir com o estudo dos mecanismos de reprodução social num contexto de extrema polarização estrutural, analisando alguns casos de estratégias individuais nos contratos de matrimônio, entendidas como práticas de transmissão da herança “por antecipação” (Burguière, 1986: 59).
A partir das informações levantadas no Registro Civil do cartório da cidade de Vassouras, para o período de 1889 a 1929, e o conjunto de genealogias que puderam ser reconstituídas com as mesmas, são analisadas aqui, em primeiro lugar, as características socioeconômicas das camadas mais favorecidas dessa sociedade à época do declínio da produção cafeeira na região do Vale do Paraíba. Assim, são focalizados, por um lado, os grupos de poder econômico, como fazendeiros, agricultores e industriais, capitalistas e proprietários, e por outro detentores de poder político-administrativo, membros da Câmara Municipal, magistrados e chefes de partidos políticos.
Em segundo lugar, são estudados dois tipos de processos identificados com estratégias de reprodução das famílias dos grupos analisados, ambos tendentes a conservar o patrimônio não só econômico mas também político e social, acumulado na perpetuação das linhagens: a homogamia, freqüentemente ligada à consangüinidade, e à prática de alianças matrimoniais visando à mobilidade social.
Os grupos sociais dominantes
Grupos de poder econômico
Fazendeiros e agricultores
Na região de Vassouras, a denominação fazenda tinha como referência as grandes plantações de café. Em 1890, as 40 maiores propriedades da região tinham um tamanho médio de quase 600 ha (Stein, 1990: 266). Em 1925-26, as propriedades de menos de 100 ha, aproximadamente, eram classificadas geralmente como sítios na lista de propriedades de valor superior a 2 contos de réis (Diretoria de Agricultura, 1927), e somente aquelas de tamanho maior eram tomadas por fazendas. S. Stein atribui o limite de 30 alqueires, equivalentes a 145 ha, a partir do qual as propriedades seriam consideradas como fazendas; áreas menores que este valor seriam denominadas sítios (Stein, 1990: 153). Dessa maneira, para uma certa faixa de tamanho de propriedade rural, provavelmente entre 100 e 145 ha, as categorias de agricultor, lavrador e fazendeiro deveriam se apresentar como equivalentes. A mudança de denominação da atividade econômica do mesmo pai de família em diversos registros de nascimentos, encontrada com bastante freqüência, se explicaria por essa variação da classificação da propriedade.
Do conjunto da amostra de 2.445 registros de nascimentos levantados em Vassouras, encontramos 21 pais de recém-nascidos que se declararam fazendeiros. Entre estes, 3 estão ligados por laços de parentesco e são membros da linhagem Gomes Coelho. Dos 21 nascimentos de fazendeiros, 20 declaram a cor da criança como branca e o único restante, sendo italiana a nacionalidade do pai do recém-nascido, provavelmente também tenha sido da mesma cor. Só foi localizado mais um outro pai estrangeiro entre estes registros de nascimentos, de nacionalidade portuguesa.
O caso de um fazendeiro que mais tarde é classificado como lavrador no registro de nascimento de um filho de cor parda, Joaquim Gonçales de Moraes, chama a atenção. Esta mudança de classificação ocupacional pode ser explicada seja por se tratar a propriedade de Joaquim de tamanho médio, seja devido a uma diminuição do tamanho da mesma entre o começo e o fim de sua história familiar. Desta forma não teria, praticamente, nenhum filho de fazendeiro que não seja branco.
Acompanhando as trajetórias profissionais por gerações sucessivas ou por indivíduos, ao longo de suas histórias familiares, se observa uma modificação progressiva das diferentes atividades econômicas declaradas, que passam de fazendeiro ou agricultor para profissões liberais, empregados públicos ou comerciantes. Isso reflete, de forma geral, as transformações sofridas pela região durante o período de estudo, as que aparecem, a seguir, com algum detalhe no estudo das genealogias.
Em relação à denominação agricultor, esta parece corresponder, mais exatamente, a proprietários ou a arrendatários de terras de tamanho médio entre a fazenda e os sítios, como já foi explicado. Entre os 26 nascimentos de agricultores registrados, se encontram 24 crianças classificadas como brancas e 2 como pardas. Nessa categoria profissional, da mesma forma que na de fazendeiro, se encontram, quase exclusivamente, famílias constituídas por brancos.
Industriais, capitalistas e proprietários
Apesar da falta de referências a atividades econômicas industriais no Almanaque Laemmert de 1885, consultado em relação a Vassouras, I. Raposo fala de duas produções que floresciam na região durante a época de apogeu do café: cerâmica e móveis (Raposo, 1935: 105). A fabricação de móveis de qualidade começou em 1850 e sua importância provocou a necessidade de importação de madeiras nobres. Em relação às cerâmicas, era a produção de telhas e tijolos que se destacava na região. No entanto, a indústria não constituía uma atividade muito relevante em Vassouras, ao menos até 1914, quando foram fundadas duas usinas têxteis.
Entre os registros de nascimentos analisados, foram encontrados 11 filhos de industriais, dos quais um é declarado como pardo e um outro não contém declaração de cor. Com esta única exceção, o grupo de industriais está constituído exclusivamente por brancos.
No estudo da genealogia Mattoso Câmara, as alianças com o poder público e administrativo aparecem de forma privilegiada, assim como as ligações com as camadas médias da sociedade: entre os 6 filhos de um notário, no começo da linhagem reconstituída, se encontram dois irmãos industriais, um jornalista e um empregado público. Por outro lado, uma outra genealogia, a da família Corrêa de Mattos, é representativa da passagem da atividade agrícola à industrial: com um pai agricultor, os 2 filhos se declaram industriais ao nascimento dos seus descendentes.
No que diz respeito à categoria “capitalistas” faz-se necessário relativizar o seu significado nos registros analisados de Vassouras. Entre os 4 nascimentos em que os pais estavam registrados com essa denominação, se encontram 2 que não correspondem a uma atividade econômica de inversão de capitais, como poderia se esperar. Luiz José de Carvalho Mello é registrado como capitalista ao nascimento da sua filha Hylda Carolina, em 1899, mas em 1910, no registro de nascimento de um outro filho, ele aparece como empregado dos correios. O outro caso é o do português Clemente Faria de Queiroz, que é registrado como negociante nos registros de nascimentos de 3 filhos, entre 1891 e 1892, e em 1899 aparece como capitalista ao nascimento do quarto filho. Para os outros 2 casos nenhum laço de parentesco foi encontrado.
Entre os 20 registros de nascimentos de filhos de proprietários encontrados no Registro Civil, são detectados 17 pais de família (3 são pais de 2 crianças), dos quais 7 são de nacionalidade portuguesa e um de origem sírio-libanesa. A denominação “proprietário” se presta também a uma utilização ambígua, o que se reflete nos exemplos analisados, pois ela pode designar tanto um grande como um pequeno proprietário do meio rural como urbano, pertencentes já seja aos grupos mais favorecidos como às capas médias da sociedade. É assim que se encontra o caso de um carpinteiro-marceneiro-proprie-tário, da família Ribeiro Leal; 2 agricultores-camponeses-proprietários, das famílias Mello Affonso e Souza Paiva; um negociante-proprietário, Santos Cunha; e um proprietário que se converte em oficial de justiça, Medeiros da Cunha. Mas deve ser enfatizado, igualmente, que em 1885 figuravam no Almanaque Laemmert, no item “capitalistas e proprietários”, as mais importantes famílias da região, entre as quais 5 “barões do café”, que se achavam, também, entre a lista de fazendeiros do Almanaque. A categoria mencionada dava prestígio a quem pudesse fazer ostentação, mesmo que somente fosse na sombra de um registro cartorial.
Grupo de poder político-administrativo
A esse grupo pertencem os “notáveis” de Vassouras: membros da Câmara Municipal, magistrados, juízes, chefes de partidos políticos, personalidades participantes nas associações de classe. As suas estreitas ligações com o grupo de poder econômico ficam, em evidência, em primeiro lugar, pela aparição repetida de um pequeno número de sobrenomes nas categorias mencionadas, os quais podem ser encontrados também entre os fazendeiros da região e, em segundo lugar, pelas alianças entre famílias e a distribuição de seus membros entre as diferentes categorias da burocracia e do poder local.
Entre os membros desse grupo localizamos o Dr. José de Paiva Magalhães Calvet, nomeado juiz municipal em 1867 (Raposo, 1935: 184) e que é encontrado depois no Almanaque de 1885 com 2 de seus filhos nos itens de capitalistas e proprietários, de fazendeiros e de chefe de polícia.
De acordo com os registros analisados, as 12 pessoas classificadas nas categorias de magistrados, juízes e advogados são todas de cor branca, excetuando o caso de Jerónymo de Carvalho, advogado, morto em 1918 e declarado como pardo no registro de óbito.
Homogamia/consangüinidade: duas clivagens difíceis de separar
Os casamentos dos filhos de famílias do grupo detentor de poder econômico estavam carregados de implicações sociais às quais os noivos não podiam se subtrair. “Cada cônjuge tinha por trás de si uma ampla carga de responsabilidades, sobre as quais devia prestar contas à sua família. Carregava consigo um patrimônio econômico, político e social, herdado dos pais, e que não deveria ser dispersado, mas sim acrescido a outro, pelo matrimônio. Assim, um casamento poderia significar o reforço de uma aliança política ou econômica, ou mesmo a criação de nova aliança” (Bacellar, 1991: 55).
Já desde uma primeira análise, as linhagens reconstituídas das camadas mais favorecidas se mostram formadas, desde o início do período estudado, por um grupo bastante restrito de nomes de família, os quais se associam de maneiras diversas aos membros ascendentes das genealogias e se combinam depois ao longo das gerações. Assim, o grupo relativamente fechado de fazendeiros, proprietários e notáveis da sociedade regional apresenta numerosos laços de parentesco que indicam um comportamento homogâmico ou mesmo de consangüinidade. Todavia, e isto representa uma característica distintiva compartida por outros grupos de poder econômico no Brasil, como os senhores das usinas de açúcar dos séculos XVII e XIX: “A repetição de sobrenomes e locais de residência podia ser uma prova (de ligações de consangüinidade), apesar de, naquele momento, o sobrenome pouco representar em termos de linhagem (Bacellar, 1991: 46). No caso de Vassouras, foi constatado que, por exemplo, entre os 62 matrimônios celebrados entre 1780 e 1900 numa família de antigos proprietários de terras, a família Avelar, se contavam ‘vinte entre primos irmãos, três entre tios e sobrinhas e um entre uma tia e seu sobrinho’” (Stein, 1990: 190).
A homogamia social, por outro lado, constitui um comportamento largamente observado em diferentes sociedades, em épocas diversas e entre variadas categorias sociais. Sejam os vilarejos da Basse-Meuse no século XVII, onde reinava o qui se ressemblent, s’assemblent (Leboute e Helin, 1985), a França da primeira metade do século (entre 1914 e 1959), na qual la proportion des homosociaux, c’est-à-dire des conjoints de même condition sociale, l’emporte très largement, plus de deux fois plus, sur ce que donnerait une répartition au hasard des unions (Girard, 1981: 190), ou os franceses dos anos 1960-1985, para os quais la ‘foudre’ quand elle tombe, ne tombe pas n’importe où: elle frappe avec prédilection la diagonale... (Bozon e Héran, 1987a: 946), (os autores fazem aqui referência à concentração na diagonal nas tabelas cruzadas da profissão dos sogros entre eles, ou com os genros).
No entanto, este consenso em relação à importância da homogamia nas uniões foi submetido à crítica a partir da constatação das variações por época e por país, assim como também pelo reconhecimento da pluridimensionalidade do intercâmbio entre homens e mulheres que se casam e das diferenciais de interesses na constituição das uniões (Singly, 1987).
Casamentos sucessivos na mesma paróquia, endogamia geográfica, ou restrito ao círculo da elite local, homogamia social, (Bozon e Héran, 1987b), favoreceram, certamente, a aparição de casos de consangüinidade nas famílias de fazendeiros. A análise da elite de grandes proprietários de escravos no Oeste do estado de São Paulo, durante o século XVIII, mostra, igualmente, que este comportamento “leva, inexoravelmente, a um aumento do número de uniões consangüíneas e ao estabelecimento de um labirinto de laços de parentesco que terá como conseqüência uma concentração progressiva de terras” (Scott, 1992: 23). Estudos realizados com as solicitações à autoridade eclesiástica de autorização de casamentos nos casos de consangüinidade, interditados pelas regras da Igreja católica, mostram, de maneira mais direta e sólida, a amplitude deste fenômeno, desde que as genealogias deixam de fora um número considerável de laços de parentesco (Agustini, 1992: 277; Ségalen, 1972). Lamentavelmente não se dispõe deste tipo de dados para nossa região de estudo.
No caso de Vassouras, a homogamia de casamentos se encontra, em primeiro lugar, entre os fazendeiros e agricultores, como uma forma de preservação dos seus patrimônios de terras. Entretanto, uma fonte de contradição se apresenta entre o interesse econômico de preservar a unidade de exploração agrícola indivisa no momento da morte do proprietário e o costume da repartição igualitária da herança. Se por testamento se podia, até 1916, dispor de um terço dos bens, e a partir da aprovação do Código Civil desse ano da metade deles, para impedir a divisão da parte restante das terras os herdeiros chegaram a fazer acordos entre eles. Geralmente, aqueles que cediam suas partes o faziam em troca seja de um capital que lhes permitisse se instalar em outro lugar, seja de outras terras da família.
Tabela 1. Vassouras, homogamia entre algumas categorias sociais
Categoria social: dos pais das esposas
Dos homens
Fazendeiro
Lavrador
Capas médias
Total
Fazendeiro
Lavrador
Capas médias
Total
6
3
3
12
-
12
1
13
-
-
6
6
6
15
10
31
Fonte: Genealogias reconstituídas de Vassouras.
A Tabela 1 mostra que 24 de 31 casamentos são realizados de forma homogâmica entre as categorias sociais consideradas. Os casos da nossa amostra, apesar de não serem muito elevados, Tabela 1, confirmam o comportamento descrito das famílias de fazendeiros e camponeses.
Alianças e mobilidade social num contexto de transição
As conclusões de diferentes análises sobre a escolha do cônjuge permitem afirmar que a instituição matrimonial cumpre, além das funções de intercâmbio afetivo e sexual dos indivíduos e da reprodução biológica das famílias, a de perpetuar socialmente as linhagens. Os estudos realizados sobre as elites de São Paulo do século XIX (Bacellar, 1991; Marcílio, 1986) evidenciam os esforços utilizados pelas famílias detentoras de patrimônios de terras, para articular estratégias de alianças matrimoniais visando concentrar suas fortunas.
Pesquisas levadas a cabo em contextos bem diferentes chegaram à mesma constatação sobre a função das alianças: L’interpénétration d’une logique de reproduction économique et d’une logique de parenté dans les stratégies d’alliance des sociétés relativement stables de l’Europe moderne est si présente et si générale qu’on pourrait se demander si elle ne les rende pas indistinctes (Burguière, 1986: 79). É o casamento que garante a reprodução social dos grupos domésticos envolvidos na união, en effet, le niveau d’alliance de chaque groupe domestique lui confère un capital symbolique et matériel qui lui permet de réaffirmer sa position au sein de la hiérarchie sociale (Agustini, 1992: 256).
Entre os 22 fazendeiros encontrados nos registros de nascimentos, 3 estão ligados por relações de parentesco. A descrição desta genealogia, a dos Gomes Coelho, permite mostrar como eram construída um estratégia de alianças num contexto de homogamia matrimonial.
Se trata de uma genealogia composta exclusivamente de brancos, de acordo com os dados disponíveis, e tendo como chefes de família fazendeiros. A figura central, José Gomes Coelho, se encontra no Almanaque Laemmert de 1885 entre os fazendeiros que ali fizeram publicar seus nomes. O comportamento homogâmico deste grupo é indicado pelo fato de encontrar 4 nomes de família combinados de forma diferente, entre os parentes incluídos nesta genealogia. Assim, por exemplo, Gomes, Coelho, d’Avila e Teixeira são os pontos de partida centrais da linhagem de José Gomes Coelho, mas são também encontrados nas famílias colaterais a partir da inclusão de genros e noras. Todavia, se as informações disponíveis não nos permitem demonstrar suas ligações antes de 1889, a presença reiterada dos nomes citados entre os casais do início do período de estudo torna a hipótese de consangüinidade igualmente provável.
Segundo o registro de óbito de José Gomes Coelho, datado de 1910, sabemos que ele tinha 61 anos no momento de sua morte, que estava casado, de nacionalidade brasileira e de profissão fazendeiro. A mesma profissão tinha sido registrada na ocasião do nascimento do seu terceiro filho, Octavio, em 1890, e que se transforma, em 1891 e 1893, na de lavrador, no momento de registrar seus últimos dois filhos, Waldomiro e Malvino. Sendo sua propriedade grande bastante para aparecer no Almanaque Laemmert como fazenda, não o era o suficiente para impedir de ser o seu dono por vezes identificado como lavrador. As terras possuídas por José Gomes Coelho deviam ocupar uma su-perfície próxima do limite de 145 ha, o que possibilitava a dupla denominação.
O filho mais velho de José, Ataliba Gomes Coelho, se casa pela primeira vez em 1890, com 19 anos de idade. Provavelmente, como conseqüência, entre outras coisas, de que “a administração de uma fazenda não exigia dos filhos dos proprietários um aprendizado específico; a adolescência era breve, finalizando, geralmente, em casamento precoce” (Stein, 1990: 189). A mulher de Ataliba, Malvina d’Avila Teixeira, tinha 15 anos no momento do seu casamento e levava, como era freqüente nessa época, o sobrenome de sua mãe (Marcílio, 1974: 39); seu pai se chamava Firmino Teixeira Coelho. O primeiro filho de Malvina, primeiro neto do pai de Ataliba, nasce em 1891 e é chamado José, como seu avô. Neste momento a profissão declarada de Ataliba no registro de nascimentos é de professor. Seu pai tinha 41 anos na data e estava ainda à frente da propriedade familiar. Mas, ao nascimento do seu segundo filho em 1892, Ataliba se declara lavrador pela única vez na sua história familiar. Em 1899, ao nascimento de uma filha, terceira e última criança da união com Malvina, a profissão de Ataliba aparece outra vez como de professor.
Em 1908, à idade registrada de 30 anos (mas que deveria ser de 28 ou 29, se a idade registrada no seu primeiro casamento estava correta), Ataliba se casa em segundas núpcias com Alzira Padilha, de 22 anos, filha de uma família de fazendeiros, os Araújo Padilha, cujo pai, Antonio, e tio, Ezequiel, figuram entre os produtores agrícolas da região (Stein, 1990: 155). Ataliba e Alzira terão 9 filhos, de acordo com os dados encontrados, entre 1909 e 1929, sendo a profissão declarada do pai, em quase todos os casos, de empregado público, salvo nos dois primeiros, nos quais ele aparece como professor. O fato de Ataliba viver como professor e empregado público, sendo o filho mais velho de um fazendeiro e, a partir de 1908, também genro de fazendeiro, casado, por outro lado, com a filha mais velha de 4 irmãs, mostra as transformações sofridas pela região de estudo: passagem de uma economia agrícola, próspera até os anos 1880, ao declínio da produção de café e à crise pós-1888, erosão das terras laboráveis, apropriação do controle das propriedades hipotecadas pelos bancos credores etc. Nas famílias de fazendeiros à época dos avós, os filhos se tornam negociantes ou empregados públicos para se perder depois as pistas dos netos, emigrantes provavelmente da região.
A única filha de José Gomes Coelho, Maria Candida, se casa em 1890 com Flavio José, lavrador, filho de Eloy José D’Avila Gomes. Os sobrenomes da família são assim reencontrados, Gomes como José e Avila como Bellarmina, talvez primos distantes. Finalmente, os 3 filhos de Flavio José e Maria Candida, nascidos entre 1893 e 1899, não são mais localizados entre as atas do Registro Civil da região, nem seus primos.
O irmão de Ataliba e de Maria Candida, Waldomiro, nascido em 1891, se declara como negociante no momento do nascimento do seu filho Amandio, em 1924; os outros 2 irmãos, Octavio e Malvino, nascidos em 1890 e 1893, só são encontrados nos registros de nascimentos. A propriedade familiar deve ter desaparecido desde o início do século.
Os casamentos múltiplos
Os casamentos múltiplos são realizados entre diversos membros de famílias diferentes que se casam entre si. Esta prática pode dar lugar a diversos tipos de casamentos, seja pelo número de indivíduos que intervém de cada família (2 ou mais), seja pelas particularidades do intercâmbio entre os grupos domésticos. Assim, podemos ter casamentos duplos, triplos etc., ou casamentos cruzados, quando, por exemplo, 2 pares de irmão e irmã se casam entre si, ou, ainda, diferentes números e/ou combinações destes casos. Os casamentos múltiplos são geralmente celebrados de maneira simultânea, no mesmo dia ou com um intervalo pequeno de tempo.
Este tipo de casamento mostra a importância das estratégias matrimoniais utilizadas para evitar o desaparecimento de um patrimônio familiar. Estas estratégias, do seu lado, praticadas por diversas capas sociais, num contexto social restrito, levam a concluir freqüentemente uniões consangüíneas.
Um exemplo de aliança múltipla se apresenta com os 4 filhos de Leocadio Gomes Coelho: 3 grupos domésticos, compostos provavelmente por descendentes de famílias com laços de parentesco entre si, dado que os sobrenomes se repetem, Gomes Coelho, para Leocadio, Gomes d’Avila Coelho para Hilário, e d’Avila, para Jacintho José, se unem para a celebração de 4 casamentos.
Primeiro é Marcirio quem se casa em 1889 com Jovina, provavelmente sua prima, às jovens idades de 19 e 15 anos, respectivamente. Não se sabe das causas desta união precoce; seus filhos registrados nascem 2 e 3 anos após a celebração do casamento. Um ano depois se dá o casamento simultâneo de um irmão de Jovina e de 2 irmãos de Marcirio com 3 irmãs, filhas de Jacintho José d’Avila. Deve ser sublinhado que 2 destes 3 casamentos são realizados a idades relativamente jovens. Mas desta vez pode ser avançada uma explicação para este fato, na medida em que os 2 casais unidos de forma precoce tiveram filhos entre 5 e 6 meses após seus casamentos. Uma gravidez confirmada pode ter levado também Marcirio e Jovina a se casarem legalmente, mesmo se depois aquela não chegou a bom término, ou se chegou, não foi encontrado o registro correspondente.
A profissão declarada mais tarde pelos 3 homens, no momento do nascimento dos seus filhos respectivos, é de lavrador, igual à do sogro. Se trata, então, de aliança entre famílias de lavradores, unidas desde esse momento por laços de casamento múltiplos. E, como para reforçar ainda mais esses laços, 20 anos depois se encontra o caso de um reencadeamento de aliança, com o casamento do caçula dos irmãos Gomes Coelho, Edmundo, com Cornelia, sobrinha dos seus irmãos e de suas cunhadas.
Conclusões
As diversas formas de transmissão do patrimônio familiar, visando geralmente à preservação da continuidade do empreendimento, têm sido estudadas em diferentes épocas e contextos. Estes estudos abordam, na sua maioria, no caso brasileiro, regiões ou períodos nos quais é característica a expansão econômica, baseada, por exemplo, num produto de exportação, como o açúcar ou o café.
No nosso caso, entretanto, a pesquisa na qual se insere o presente trabalho focalizou os comportamentos familiares num período de declínio econômico na região do Vale do Paraíba: a fase de desarticulação da produção cafeeira que seguiu em Vassouras à abolição da escravidão e ao esgotamento das terras e cafezais. As práticas matrimoniais estudadas se situaram dentro de um contexto de estratégias que visavam a enfrentar um período de adversidade, atentando para formas que onerassem o menos possível as combalidas fortunas e posses dos produtores da região. As estratégias individuais procuravam salvaguardar os patrimônios restantes ou tentavam alternativas que pudessem reverter os prejuízos e a perda progressiva dos bens familiares. Mais do que nunca é imprescindível levar em conta, na análise, o fato de que práticas similares podem dever-se a causas diferentes e de que práticas diferentes podem estar buscando efeitos similares. O que dá sentido às mesmas é o contexto no qual se localizam e não só a forma do comportamento estudado. Entretanto, é interessante lembrar que certains traits se retrouvent dans des contextes régionaux ou sociaux si différents qu’on serait tenté de les considérer comme des invariants, communs à toutes les formes d’organisation sociale (Burguière, 1986: 79). Regras de parentesco elementares parecem orientar estratégias de aliança de forma independente da transmissão de heranças.
Sem dúvida faltam ainda dados que permitam realizar generalizações mais amplas das práticas encontradas. Este trabalho pode ser considerado como um ponto de partida, válido pela sua contribuição heurística ao estudo das estratégias familiares, a ser inserido numa pesquisa histórica mais abrangente sobre o tema dos casamentos, alianças e transmissão do patrimônio familiar no Brasil.
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