Estudos Sociedade e Agricultura

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Berthold Zilly

Sertão e nacionalidade: formação étnica e civilizatória do Brasil segundo Euclides da Cunha


Estudos Sociedade e Agricultura, 12, abril 1999: 5-45.

Resumo: Euclides da Cunha, preocupado em contribuir para a construção de um Estado nacional civilizado, teve, com respeito à inserção do sertanejo, atitudes contraditórias. Como autor científico, adepto das teorias raciais da época, considerou-o um tipo inferior e pouco idôneo para ser cidadão. Porém como patriota e admirador do seu desempenho militar na guerra de Canudos (1897) procurou resgatar esse mestiço da condenação pela ciência, apresentando-o como tipo étnico definido que, devido à contínua mestiçagem e ao insulamento de 300 anos no sertão, se teria tornado homogêneo e maduro, pronto para constituir a base étnica da futura nação civilizada. As aporias políticas, científicas, éticas da guerra e da sua interpretação encontram uma solução duradoura e exemplar no plano estético em Os Sertões.

Palavras-chave: Estado nacional; civilização; mestiçagem; sertão; guerra de Canudos; Os Sertões.

Abstract: Nationality and Brazil's Northeastern Backlands: The Civilising of Brazil and its Ethnic Formation According to Euclides da Cunha. Wishing to contribute to the building of a civilized national state, Euclides da Cunha had contradictory positions on the integration of the "sertanejo", the inhabitant of the northeastern backlands. As a scientific author, attached to contemporary racial theories, he considered him inferior and little prepared for becoming a citizen. As a patriot and admirer of the "sertanejo's" performance in the civil war of Canudos (1897), however, Euclides da Cunha tried to exempt this "mestizo" from condemnation by science, presenting him as a consolidated ethnic type who, as a result of continuous miscigenation and 300 years isolation in the "sertão", achieved homogeneity and maturity, becoming ready to constitute the ethnic base of the future civilized nation. The political, scientific and ethical uncertainties find a durable and exemplary solution on the aesthetic level in Os Sertões.

Key-words: National State; Civilization; Miscigenation; Sertão (backlands); Canudos War; Os Sertões.

Berthold Zilly é professor do Instituto Latino Americano da Universidade Livre de Berlim.

O artigo se baseia em aulas dadas no CPDA da UFRRJ em setembro de 1998, e nas seguintes palestras: no simpósio Cem Anos de Canudos: a visão de Euclides da Cunha e outras visões, promovido pelo Instituto Latino-americano da Universidade Livre de Berlim (LAI/FU) junto com o Instituto Cultural Brasileiro na Alemanha (ICBRA) em Berlim, maio de 1997; na UFC em Fortaleza em setembro de 1997; no IFCS da UFRJ em dezembro de 1998; e na FGV do Rio de Janeiro em abril de 1999. Parte das idéias já foi publicada em alemão (Zilly, 1996). Agradeço a Isabel Lustrosa pelas perguntas e sugestões.


Não há mais revolução

Antônio Conselheiro morreu

Por causa da Nação.1

Os intelectuais brasileiros do século XIX se viram diante de uma importante missão histórica: ajudar a construir uma nação civilizada.

Diferentemente da Alemanha, onde a nação precedeu o Estado, ou da França, onde a nação e o Estado se constituíram aproximadamente ao mesmo tempo, no Brasil, o Estado criou-se antes da nação, em 1822, ao passo que o processo formador da nação, no fundo, até hoje não se concluiu, como demonstra a discussão em torno da cidadania. Pois sem esta não há nação no sentido republicano do termo, formada por cidadãos livres e iguais, com sentimento de identidade coletiva e um certo padrão de participação. O Brasil, depois da Independência, ainda não existia plenamente; ele havia de se formar, era mais projeto do que realidade, um país do futuro, e competia a todos os letrados darem a sua contribuição. Isso talvez explique o freqüente uso do conceito de “formação” em estudos históricos sobre o Brasil.[2]

Essa missão histórica tinha, portanto, dois ou, de certa forma, três aspectos, abrangendo três missões parciais: construir a nação, a civilização e o Estado. Este, se já existia como herança colonial, tinha que ser aprimorado, para tornar-se nacional e civilizado. Estavam interligados indissoluvelmente esses três aspectos, pois erguer uma nação que visasse ao bem-estar dos seus cidadãos e que garantisse a sua independência contra outras nações era inconcebível sem se lançar mão da civilização, da tecnologia, da ciência, da arte e da administração modernas da Europa; e era igualmente inconcebível fora dos moldes do Estado, sem o seu aparelho burocrático, planejador e repressivo. A Civilização, em cujos benefícios pela humanidade os letrados dos países recém-emancipados do Novo Mundo acreditavam mais fervorosamente ainda do que os da Europa, era inviável sem o Estado nacional como principal agente, diante da vastidão e do atraso do subcontinente. Fazia parte dessa missão civilizadora do Estado promover a difusão de relações de troca em todo o país e integrá-lo ao capitalismo que estava conquistando o mundo inteiro, tarefa que, no entanto, se chocava até certo ponto com o instituto da escravidão.

Estado nacional e civilização transnacional

Há uma tensão inevitável entre o Estado nacional, que procura realizar um projeto particular, limitado a um país, e a civilização que, em última análise, está a serviço de um projeto transnacional, universal, tensão essa que quase necessariamente gera conflitos.

Em nome do real ou suposto interesse da nação ou até da própria civilização, muitas vezes se sacrificaram os valores civilizatórios no mundo inteiro, antes e depois de Canudos. As guerras por questões nacionais, como qualquer guerra no fundo, por mais civilizadas que sejam, violam os códigos da civilização, pelo que se criou a Cruz Vermelha, como panacéia. Já no século XIX, alguns pensadores, principalmente dentre os conservadores e os socialistas, intuíram o aspecto (auto)destrutivo da civilização vinculada ao Estado nacional. Parece de uma atualidade perene o bon mot sarcástico do dramaturgo austríaco Franz Grillparzer (1791-1872), monarquista, apreciador da transnacionalidade do Império austro-húngaro, a respeito da perigosa mutabilidade dos nacionalismos da época, todos inicialmente inofensivos e bem-intencionados mas que estariam, segundo ele, passando “da humanidade pela nacionalidade para a bestialidade”. É natural esse tipo de crítica ao acoplamento da Civilização com os interesses da nação e do Estado nacional ter emergido em países não baseados no princípio da nacionalidade e da República, e se tal opinião era rara na Europa, nas Américas quase não existia. O século XIX viu o auge dos nacionalismos, que só na segunda metade do século XX suscitam maior ceticismo, sem, no entanto, perder a sua periculosidade.

O próprio conceito de civilização abrange pelo menos duas vertentes distintas que podem divergir e até entrar em choque: civilização, por um lado, num sentido instrumental, como processo e resultado de um crescente domínio da natureza e divisão de trabalho, como elevação da prosperidade, ou seja, como incremento principalmente da cultura material e, de modo menos acentuado, também da cultura intelectual.[3] Por outro, o termo “civilização” conserva sua antiga dimensão de ética política, significando o polimento dos costumes, disciplinamento dos instintos, domação da rudeza e violência no trato entre as pessoas, melhoramento da civilidade e da urbanidade, um uso da palavra que não se pode dissociar da idéia dos valores universais e do progresso humanitário.[4] Na Encyclopédie des gens du monde, de 1836, pode-se ler a bela fórmula: La civilisation est le développement et le perfectionnement plus ou moins absolu des facultés intellectuelles et morales de l’homme réuni en société (Fisch, 1992: 737). A civilização, junto com um importante atributo seu, o progresso, é censurada duplamente, de dentro e de fora, por correntes conservadoras ligadas à monarquia e à Igreja, mas também por si mesma. Pode-se perfeitamente criticar a civilização como progresso tecnológico-científico-administrativo em nome da civilização como progresso moral e político, rumo a uma convivência pacífica de homens e povos. Essa autocrítica da civilização se manifesta logo depois do surgimento do próprio termo, no século XVIII, por exemplo em Rousseau, sendo-lhe, portanto, inerente quase desde o início.

É sobretudo na época do Imperialismo clássico, nas margens do mundo civilizado, em contraste e conflito com grupos ou etnias não ou mal integradas, que a palavra civilização se tornou uma palavra de ordem usada polemicamente contra uma chamada barbárie, atribuída exclusivamente aos não-europeus e não-brancos cuja exploração e opressão em nome de uma catequização civilizatória parecia tão oportunamente justificar.

A “civilização” missionária, presunçosa, intolerante foi, portanto, substituindo o cristianismo no papel de legitimar a sujeição de culturas e povos “selvagens”. Por outro lado, a “barbárie”, vista como uma espécie de paganismo diante da nova doutrina da fé e redenção universal, tem, do mesmo modo que a sua antítese, dois componentes principais, um instrumental e outro moral. Significa, por um lado, o baixo nível da cultura material e intelectual, e, por outro, numa dimensão ética, brutalidade e crueldade, o uso corriqueiro da violência no trato entre as pessoas, o contrário de civilidade e humanitarismo. As duas atribuições se prestam à maravilha para justificar o combate a tal primitivismo, até para o bem dos próprios primitivos.

Qual a base étnica da nação?

Qualquer Estado precisava de uma base demográfica, de um povo-Estado que normalmente seria ou se tornaria uma nação. A questão era saber quem pertenceria a essa nacionalidade em vias de formação, quais os critérios de admissão, e se estes deveriam ser mais abrangentes ou mais excludentes.

Havia sempre duas tendências básicas, embora na realidade freqüentemente misturadas: o povo-nação, caracterizado por sua cultura e em geral, mas não necessariamente por uma língua comum, constituído por cidadãos com certa consciência de unidade, conforme um ideário republicano, igualitário, integrador. Estava na base dessa concepção, herdada da Revolução Francesa, a idéia, embora nem sempre explícita, de que a nação seria uma comunidade de proprietários, homens livres e teoricamente iguais, sendo o cidadão no fundo também um homo oeconomicus. Questionava-se, portanto, a cidadania dos sem eira nem beira. E só no nosso século generalizou-se a idéia de que eles também deveriam ser cidadãos, até por uma lógica de economia política: os pobres têm, sim, uma propriedade privada, ou seja, a sua força de trabalho, de modo que cada cidadão é vendedor e comprador de mercadorias ou serviços, um sujeito econômico. E essa igualdade e liberdade teria que ser garantida pelo Estado, pelo Estado de direito (cf. Mármora, 1983: 118-121; cf. Koselleck, 1992, especialmente p. 347 e segs.; e Nitsch, 1977). Os interesses mais bem práticos, no entanto, não seriam suficientes para constituir uma nação, segundo outros. Como disse Ernest Renan, na sua famosa conferência de 1882, Qu’est-ce qu’une nation?, uma nação se constitui principalmente por laços imateriais, pela consciência de uma história comum, de sacrifícios comuns, pela vontade de continuar a viver essa vida comum, com solidadariede. A nação seria um plebiscito que se repete todo dia.[5] A função integrativa de arrependimentos coletivos de que fala Renan pode-se perceber também no grande mea culpa que o Brasil vem proferindo há décadas, por ter sacrificado uma cidade recém-fundada para salvar e consolidar a fundação do Estado Republicano, um crime de origem, um “delito fundacional”, portanto (cf. Andermann, 1996; Cardoso, 1996).

E do outro lado, haveria, cada vez mais influente na segunda metade do século XIX, a idéia de povo-nação no sentido de uma ascendência comum, parentesco biológico, homogeneidade física, conceito típico de ideologias conservadoras, hierarquizantes, excludentes. Nação enquanto comunidade cultural e política versus nação enquanto comunidade de ascendência e sangue. A homogeneidade, valor comum das duas vertentes, era requisito mais importante na última, que rejeitava aquilo que mais tarde se apreciaria como mestiçagem e multiculturalismo (sobre a história do conceito de raça, cf. Conze, 1984). Na prática, prevalecia no Brasil a idéia de que um Estado precisava de um povo-Estado, que se tornaria nação um dia, constituído de cidadãos livres, com alguma posse, com certos requisitos culturais e biológicos, preferencialmente alfabetizados, de língua portuguesa e de pele clara.

A esse ideário crescentemente biologista e ao reformismo positivista se acrescentou, no pensamento dos “jacobinos” brasileiros, o ideal centralizador da République une et indivisible herdado da Revolução Francesa. Até os oficiais nas trincheiras diante de Canudos se tratavam de “cidadãos”, assim como os seus colegas franceses no século anterior. Comemoravam, em pleno sertão baiano, com uma salva de 21 tiros, o assalto à Bastilha em 14 de julho, feriado nacional não só na França, mas também no Brasil da Primeira República, símbolo das pretensões iluministas e cosmopolitas dos republicanos de 1889, da sua sincera identificação, por mais ilusória que fosse, com os revolucionários de 1789. Os republicanos radicais que tinham perdido a sua influência com o fim do governo Floriano Peixoto, em 1894, pretendiam voltar ao poder mediante a luta contra essa suposta Vendéia brasileira, contra uma comunidade de “fanáticos”, movimento sócio-religioso de camponeses, de gente humilde, portanto. É uma ironia da História que justamente os amigos autonomeados do povo e do progresso tenham, na realidade, restabelecido e fortalecido o coronelismo nos sertões, ameaçado pela comunidade de Canudos que nele não se enquadrava (cf. Leal, 1986).

As elites à procura de outro povo

O caráter multiétnico da população parecia às elites um empecilho, quase uma vergonha no seu afã pela assimilação e aperfeiçoamento da civilização no Brasil.

A partir de meados do século passado, generalizou-se mundialmente, conforme os preceitos do evolucionismo, a idéia de que as faculdades civilizatórias mais elevadas estariam vinculadas à raça branca, ou, no caso de outras raças, pelo menos à homogeneidade racial. Não ser caucásico já não era bom, mas ser mestiço era péssimo. O conceito de raça ia ganhando um valor explicativo quase inimaginável hoje em dia, na vida política, na historiografia e nas ciências sociais. O evolucionismo, na sua vertente social-darwinista, estabelecia uma relação direta entre determinadas qualidades genéticas, ou seja, a ascendência racial de indivíduos, grupos e povos, por um lado, e os diversos estágios culturais da humanidade, supondo-se um condicionamento da evolução cultural pela evolução biológica, por outro, ambas atingindo na civilização “branca” o seu mais elevado grau. Como resolver a óbvia contradição entre o universalismo da civilização e a sua vinculação a qualidades biológicas, restritas a uma minoria da humanidade e também da população brasileira?

Era questionável se os escravos emancipados e os índios podiam ou deviam ser cidadãos, se podiam ser brasileiros, pertencer à Nação. Mas como era problemático ter uma população em grande parte não-brasileira no próprio território brasileiro, a maioria dos letrados que estudaram o assunto, principalmente os de orientação liberal, chegaram cedo à opinião de que era preciso emancipar os escravos e civilizar os índios, estabelecendo uma certa homogeneidade sócio-cultural e ampliando a base populacional do Estado.[6] Porém, até os preconizadores da Abolição, por mais esclarecidos que fossem, não apenas se envergonhavam da escravidão mas muitas vezes também dos próprios escravos, com todos os não-brancos em território brasileiro. Assim, os patriotas se viam num dilema: para prosseguir a edificação da nação, era preciso transformar todas as pessoas residentes no Brasil em cidadãos. Mas, por outro lado, as elites consideravam os conterrâneos não-brancos, que eram mais da metade no século XIX, incapazes de participarem plenamente de um Estado nacional moderno. Com esses compatriotas, acreditava-se, não se podia construir uma pátria.

Como se acentuou, no Brasil, nomeadamente a partir de meados do século XIX, diferentemente da tradição iluminista e também comtista, a opinião de que uma nação se definia notadamente pela sua ascendência, preferivelmente branca e homogênea, pela igualdade jurídica de todos os habitantes, a equiparação formal dos não-brancos e pobres aos brasileiros letrados e da elite, não podia ser uma solução satisfatória. A heterogeneidade étnica e a mestiçagem pareciam um estorvo rumo a uma nação moderna, um estigma, motivo de pessimismo e autodesprezo. Se fosse possível, as elites teriam eleito outro povo. Parece paradoxo mas é lógico: de acordo com as posições “científicas” da antropologia do fim do século XIX, um patriota moderno devia encarar com ceticismo os seus conterrâneos e futuros concidadãos de cor e desejar a sua exclusão da cidadania. A falta de coerência e unidade étnica da nação-Estado parecia pôr em perigo a jovem República. Foi só no nosso século, no Modernismo paulista e no Regionalismo nordestino, que surgiu, de forma explícita, a valorização da mestiçagem, da variedade regional, étnica, cultural do Brasil, base ideológica e sentimental para um modelo mais integrador de nação.

Se a História era, como dizia o influente sociólogo polonês-austríaco Ludwig Gumplowicz (1839-1909), filho de um rabino de Cracóvia e professor na Universidade de Graz, uma luta de raças, certamente conceito inspirado, ainda que polemicamente, pela visão marxiana da história como luta de classes, então os povos não-brancos e mestiços não tinham muitos trunfos. Pois a industrialização e a expansão européia pareciam provar definitivamente, cientificamente, a superioridade dos brancos no plano mundial, concepção da história invocada por Euclides logo na Nota preliminar de Os Sertões.[7] O racismo, aquela arma ideológica dos europeus e norte-americanos contra o resto do mundo e, dentro deste, dos brancos contra os não-brancos, para justificar a vigente correlação de forças, herdada pelo colonialismo, também no Brasil ofuscou muitas inteligências (cf. Skidmore, 1976; Schwarcz, 1995). Com a Abolição, de 1888, e com a República, de 1889, a situação “piorou”, pois a partir daí em princípio todos os habitantes do país teriam direito à cidadania, agravando-se, portanto, o racismo, como reação. As elites da Belle époque não sentiam nenhuma ligação, nenhuma solidariedade com as populações não-brancas do seu próprio país, das quais se envergonhavam. “Ao contrário do período da Independência, em que as elites buscavam uma identificação com os grupos nativos, particularmente índios e mamelucos, era esse o tema do indianismo, e manifestavam ‘um desejo de ser brasileiros’, no período estudado, essa relação se torna de oposição, e o que é manifestado podemos dizer que é ‘um desejo de ser estrangeiros’. O advento da República proclama sonoramente a vitória do cosmopolitismo no Rio de Janeiro” (Sevcenko, 1983: 36).

Não era possível, no Brasil, diferentemente da África do Sul, transformar o racismo numa legislação discriminatória. Mas, de fato, a grande maioria da população de cor se viu excluída do usufruto de importantes direitos civis, por exemplo, do direito de voto ativo e passivo, em função de um critério cultural, ou seja, do conhecimento da escrita que na prática afetava principalmente a população de cor. Naturalmente as mulheres, como também na Europa da época, não podiam votar, independentemente da sua instrução, de modo que não havia cidadãs. As elites não reconheciam os nativos pobres e incultos como concidadãos, discriminando-os duplamente, recusando-lhes a chance de alfabetizar-se, e vetando-lhes, por isso mesmo, o acesso a um atributo importante da cidadania. Restrição essa que só seria abolida recentemente, depois da ditadura militar, quer dizer, com cem anos de atraso, uma abolição gradual, em prestações, visto que a quase totalidade dos discriminados eram não-brancos, descendentes de escravos (cf. Rodrigues, 1965: 135-179).

E mesmo aquele direito de voto truncado não se aplicava corretamente, pois o sufrágio não era secreto, sendo controlado pelos mandões locais mediante violências ou favores, um escândalo, volta e meia, denunciado pelos críticos da Velha República (1889-1930), inclusive pelo tenentismo dos anos 20 e pelo movimento de Getúlio Vargas, que justificava em parte com isso a tomada do poder em 1930. Esse tipo de crítica ao não-funcionamento das instituições democráticas e às oligarquias pseudoliberais responsáveis por isso podia transformar-se num ceticismo genérico em relação à democracia, tendência já detectável em Euclides da Cunha.[8] Quer dizer que essa contestação implícita do Estado nacional oligárquico e excludente não levava a nenhuma proposta alternativa no sentido de um modelo mais participante e mais justo.

Muitos autores e políticos formadores da opinião, descontentes com a composição multicor do seu próprio povo, desejavam no fundo mudar a base demográfica do Estado nacional, vendo a solução no branqueamento, mediante imigração européia, fomentada a todo preço pelo governo brasileiro, sem que se pudesse, naturalmente, mandar embora os compatriotas indesejados.

Os imigrantes, graças à sua origem civilizada e branca, eram considerados pelos letrados do litoral, elementos mais importantes do que os nativos da hinterlândia para a formação da nação, de modo que eles, estrangeiros recém-vindos, eram de certa forma mais brasileiros do que os caipiras e sertanejos do próprio Brasil. Essa política do branqueamento lembra um pouco a “nordificação” nazista, ou seja, o almejado aprimoramento racial dos alemães no sentido de um tipo germânico superior, representado de modo mais puro pelos povos nórdicos. É que as duas categorias provêm, não obstante as diferenças fundamentais, das mesmas fontes turvas, entre as quais os escritos de um escritor francês que foi ao Brasil em 1869 como embaixador de seu país, e que já em 1855 publicara um ensaio que seria amplamente difundido, sobretudo na Alemanha, o Essai sur l’inégalité des races humaines, do conde Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882).

Um projeto social alternativo

Em Canudos, uma parcela marginalizada, menosprezada do povo, caluniada como retardatária, bárbara e fanática, tomou o destino em suas próprias mãos, entrando no palco da história com um projeto social alternativo viável, embora implícito, não intelectualmente elaborado, incompreensível para os letrados. Esse Estado em miniatura dentro do Estado, situado no interior inóspito da Bahia, pode ser considerado uma iniciativa de auto-ajuda relativamente bem-sucedida de vítimas da civilização e da modernização, um movimento transformado em organização que conseguia satisfazer sofrivelmente as necessidades básicas dos seus moradores e os libertava da habitual opressão por parte de fazendeiros e de autoridades. Se as condições de vida em Canudos não fossem pelo menos um pouco melhor do que em outros povoados e vilas da região, não seria possível explicar o forte movimento migratório rumo ao arraial, com talvez uma centena de habitantes em 1893, crescendo vertiginosamente para 10 ou talvez 20 mil até meados de 1897, oscilando nos relatos o número de casas entre dois e cinco mil (Villa, 1995: 219-220; Cunha, 1939: 150; Cunha, 1985: 571).[9]

Apenas três anos depois da sua (re)fundação pelo Conselheiro, o arraial, não obstante o seu caráter predominantemente defensivo, começou a ser atacado pelos governos estadual e federal, numa verdadeira guerra de extermínio, até ser morto o último defensor e destruído o último casebre. Os instigadores dessa invasão foram os mandões locais, receando perder o seu poderio na região e o seu domínio sobre a força de trabalho rural, assim como a própria Igreja, que também via a sua autoridade ameaçada (Marciano, 1987). Os intelectuais, com poucas e louváveis exceções como Machado de Assis, aderiram a essa campanha, caluniando os canudenses como atrasados, mentecaptos ou monarquistas subversivos (Bastos, 1995; Hermann, 1996; Hermann, 1997: 81-105; Rouanet, 1996; Dias, 1996; Menezes, 1993: 41-53; Galvão, 1974). O discurso civilizado, apoiado pela ciência, tinha que condenar os sertanejos à marginalidade e submissão, e que se rendessem à perseguição e ao extermínio. Entre as broncas populações rurais e os letrados citadinos não havia a mínima comunicação. Porém, após o último tiro, muitos propagandistas dessa cruzada pela República e pela Civilização ficaram horrorizados diante da carnificina. Como também Euclides da Cunha.

Sem dúvida, a comunidade de Canudos lesava o monopólio do Estado no uso da violência, que em princípio é uma conquista civilizatória. Mas lesavam-no igualmente naquela época, no auge do mandonismo rural, inúmeros pequenos ou grandes mandões no interior do país, sem que isso tivesse abalado a segurança do Estado, já que era uma violência institucionalizada, quase oficialmente aceita pelos poderes constituídos, apesar dos freqüentes conflitos armados entre exércitos particulares de fazendeiros e forças repressivas legais. Canudos, porém, não se enquadrou na hierarquia clientelista dos potentados rurais, constituindo uma ameaça ao coronelismo, que era um esteio da Velha República (Leal, 1986; Queiroz, 1977).

Como esses vaqueiros, jornaleiros, meeiros e lavradores ágrafos não dispunham de nenhuma prática e consciência política fora da cultura e religiosidade rural e tradicional, esse experimento sociopolítico só se pôde traduzir em instituições, aspirações, concepções voltadas para o passado, expressas em rituais e discursos religiosos, que tinham uma nota exaltada e messiânica, sem que Antônio Conselheiro se tivesse por um messias, ou sequer por um santo ou “taumaturgo” (p. 330). Essa idéia, certamente não o vocábulo erudito, Euclides da Cunha a atribuiu menos ao “venerado” do que aos que o veneravam, vacilando entre uma intenção desmistificadora em relação às crenças populares e o fascínio com elas.

Enquanto correspondente de guerra ele tinha anotado as informações de um prisioneiro canudense, um jovem de 14 anos, que desmentia os boatos sobre heresias e superstições incomuns:

Terminamos o longo interrogatorio inquirindo acerca dos milagres do Conselheiro. Não os conhece, não os viu nunca, nunca ouviu dizer que elle fazia milagres. E ao replicar um dos circunstantes, que aquelle declarava que o jagunço morto em combate ressuscitava negou ainda. ‘Mas o que promette afinal elle aos que morrem?’ A resposta foi absolutamente inesperada: ‘Salvar a alma’” (Cunha, 1939: 41).

Em Os Sertões, Euclides, no entanto, em parte negaria essas informações, enfatizando as superstições do povo e a atividade milagreira do Conselheiro, apelidando-o de “messias de feira” (p. 372) e usando o termo “messianismo” (p. 223) para caracterizar a religiosidade dos sertanejos de um modo geral, insinuando, sem base em documentos, que o líder espiritual de Canudos se considerava mesmo messias, profeta, santo.

Nada indica, porém, que o termo “messias”, nem a sua idéia, tenha sido aplicado ao Conselheiro pelos próprios canudenses ou por ele mesmo; era antes uma atribuição de jornalistas e outros letrados que tentavam, assim, recorrendo à história do cristianismo que conheciam pelos livros de Ernest Renan, enquadrar aquela religiosidade desconhecida, espantosa e perturbadora, em conceitos mais familiares, reduzindo a sua incompreensibilidade, integrando o estranho no arcabouço interpretativo do mundo civilizado, familiar aos intelectuais europeizados do litoral. Na verdade, a doutrina do Conselheiro não era mais messiânica do que o cristianismo ortodoxo da época; nem sequer uma testemunha hostil, o Frei João Evangelista, que visitou Canudos em 1895, falou em heresias messiânicas (Marciano, 1987).[10] Tudo porém era estranho para os brasileiros do litoral naquela “terra ignota”; aí uns termos familiares para designar movimentos religiosos insubmissos “fanáticos”, “rebeldes”, “jagunços”, adeptos de um “messias”, de um “profeta”, um “paranóico”, “vesânico” eram mais do que bem-vindos. Diante da religiosidade popular, os republicanos esclarecidos e ateus ficaram sem instrumental hermenêutico, considerando os conselheiristas como inimigos do Estado, criminosos, sectários ou loucos. “O desconhecido nos cerca, está em toda a parte”, escrevia perplexo o engenheiro militar e jornalista Siqueira de Meneses, um primo espiritual de Euclides, e diferentemente dele, um republicano fervoroso e cego para a cultura e mentalidade dos canudenses.[11] Faltava em Canudos um modelo democrático de comunidade ou de sociedade inteligível aos intelectuais, ainda que houvesse práticas democráticas como o uso comum do solo e o mutirão. Havia escola e um rudimentar serviço de saúde (Levine, 1992: 167; Cunha, 1939: 38; Cunha, 1985: 246; Benício, 1997: 89-93). Havia até uma “rua da Professora” (Benício, 1997: 195). Os conselheiristas, todavia, não tiveram nenhuma influência sobre a imagem que deles fazia a opinião pública, eles não puderam ou não souberam se explicar ao mundo fora deles.

Euclides, sempre à procura da alma do sertanejo e do canudense, é cauteloso quanto a uma consciência étnica, espécie de sertanidade, pois esta, se existiu, então foi de maneira muito difusa, não como sentimento de identidade regional ou grupal, e muito menos como valor consciente e positivo. Deixa transparecer uma certa insegurança de categorização, pois, devido à escassez de documentos, era difícil reconstituir a autoconsciência coletiva dos canudenses; além do mais, o autor deixou de ler documentos aos quais poderia ter tido acesso, como as prédicas do Conselheiro que mesmo assim comenta (p. 249; ver Nogueira, 1997). Parece que para os canudenses a uniformidade étnica não era importante, assim como não havia ou quase não havia preconceitos raciais.[12] Como intérprete, crítico e arauto dos sertões e do seu papel na história nacional, Euclides ficou um pouco frustrado, pois a identidade sertaneja permanecia implícita nos próprios conselheiristas que se definiam basicamente pela sua religiosidade, e pela experiência comum da perseguição. A lealdade era dedicada ao Conselheiro, a Deus e, de modo mais abstrato, ao monarca destronado, ao passo que a sua consciência nacional parece ter sido pouco desenvolvida. Hostilizavam a República, não por ser civilizada, mas por ser ímpia e injusta, pois ela, através dos seus órgãos repressivos arbitrários, não só havia expulsado o imperador entronizado pela graça de Deus, mas aumentava constantemente impostos e taxas e ampliava o poder dos mandões regionais.[13]

Não fica muito claro de que modo o sertanejo se distinguiria dos caboclos de outras partes do interior do Brasil, pois o autor não explica se “o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o caipira simplório” (p. 85) são três tipos etnicamente diferentes ou se correspondem a um só, com pequenas diferenças culturais. O sertanejo, a não ser que seja expressamente chamado de “sertanejo do Norte”, se dilui um pouco na população mestiça interiorana, sendo o termo tão pouco unívoco quanto o do próprio sertão. A única clara diferenciação feita entre duas populações rurais do Brasil é aquela entre o sertanejo e o gaúcho, que é um tipo não só brasileiro. É interessante observar que Euclides usa inúmeras vezes o adjetivo “étnico”, mas nenhuma vez o substantivo “etnia”, justamente porque, à procura de indícios de uma etnia sertaneja claramente delimitada, com identidade coletiva, não consegue achá-la, embora houvesse, segundo ele, uma população com grande homogeneidade étnica física e culturalmente falando, uma “sub-raça” sertaneja. Se a palavra “raça” é freqüente em Os Sertões, o adjetivo “racial” não aparece ali, nem nos dicionários da época, sendo a função que hoje tem desempenhada na época justamente por “étnico”. Tanto “raça” como “étnico” são usados num sentido biológico, mas com fortes conotações sociais e culturais, podendo “raça”, em Euclides, também significar genericamente “povo”.

O autor na verdade não dá indícios de que os canudenses se tenham considerado envolvidos numa luta contra a civilização. Esta, por exemplo, como produção de mercadorias sofisticadas e cultura urbana, era menos hostilizada do que admirada e temida, e imitada, quando possível. É interessante ver a distribuição do espaço no imaginário dos sertanejos, segundo o depoimento euclidiano, pois eles só distinguiriam sertão e civilização, omitindo a dimensão de país e nação cujo espaço ficaria dividido entre as duas categorias principais.[14] Essa bipartição do mundo, com que os sertanejos radicalizavam a visão dualista do próprio Euclides, é atenuada e ao mesmo tempo confirmada no plano econômico, uma vez que entre Canudos e a civilização havia relações comerciais, nomeadamente com Salvador e até com a Europa, via a exportação de peles de cabra, ao passo que as relações com o próprio Brasil, representado pela capital, tinham pouca importância (Nogueira: p. 199-216; Levine, 1992: 161).

A comunidade não devia nada à nação que marcou presença no sertão só através do exército que invadiu o arraial, provocando a legítima defesa dos seus moradores:

Insulado no espaço e no tempo, o jagunço [...] só podia fazer o que fez bater, bater terrivelmente a nacionalidade que, depois de o enjeitar cerca de três séculos, procurava levá-lo para os deslumbramentos da nossa idade dentro de um quadrado de baionetas, mostrando-lhe o brilho da civilização através do clarão de descargas (p. 374).

A condenação e o resgate da mestiçagem em Os Sertões

O engenheiro de cultura enciclopédica Euclides da Cunha também era adepto das teorias raciais contemporâneas, anteriormente esboçadas, às quais poucos pensadores latino-americanos souberam resistir, como o cubano José Martí e o brasileiro Manuel Bonfim. Os mestiços, sobretudo os mulatos, eram julgados de modo particularmente pessimista por Euclides, porque neles, na sua opinião, os aspectos negativos dos povos formadores do Brasil se acumulavam. Parecem-nos, hoje em dia, deveras inaturáveis e disparatadas as suas tiradas racistas, por exemplo, num trecho chamado por ele mesmo de “divagar pouco atraente” (p. 177). Eis algumas citações, quase que escolhidas à-toa:

E o mestiço mulato, mamaluco ou cafuz menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores. [...] E quando avulta, não são raros os casos, capaz das grandes generalizações ou de associar as mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa [...] sobre uma moralidade rudimentar, em que se pressente o automatismo impulsivo das raças inferiores. [...] É que são invioláveis as leis do desenvolvimento das espécies; e se toda a sutileza dos missionários tem sido impotente para afeiçoar o espírito do selvagem às mais simples concepções de um estado mental superior; se não há esforços que consigam do africano, entregue à solicitude dos melhores mestres, o aproximar-se sequer do nível intelectual médio do indo-europeu porque todo o homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro uma herança como compreender-se a normalidade do tipo antropológico que aparece, de improviso, enfeixando tendências tão opostas? (p. 175-176).

Assim vai perorando o autor científico Euclides da Cunha, considerando-se pensador à altura do seu tempo, fascinado com a miragem da pureza e da homogeneidade étnica das nações européias, sendo mulatos algumas das maiores inteligências do Brasil, como Machado de Assis ou André Rebouças. Mas a ciência se pronunciara, não havia como civilizar o mestiço nem com ele fazer do Brasil uma nação moderna.

Inconformado com essa visão pessimista, Euclides, num salto mortal científico, procurou resgatar “esses nossos patrícios do sertão” que tinha considerado em 1897 “de typo ethnologicamente indefinido ainda” (Cunha, 1939: 166), mas que viu, cinco anos mais tarde, bem mais definido. Valeu-se de uma estratégia tomada do arsenal do próprio evolucionismo, para proporcionar pelo menos uma semi-reabilitação ao sertanejo, a esse mestiço especial, bem diferente dos outros, a quem não caberia, ou quando muito de maneira muito reduzida, a anterior condenação do cruzamento étnico.

É que o “narrador sincero” não se sente à vontade com a condenação da mestiçagem porque ela contradiz a surpreendente eficiência militar dos defensores de Canudos, e destoa da visão ora idílica ora heróica que tem do sertanejo. O escritor está aguardando ansiosamente o seu turno para apresentar o protagonista do seu livro que contempla há muito tempo com admiração e empatia, embora não necessariamente com simpatia. Já seis meses antes de chegar ao sertão, Euclides, juntando uma visão romântica, quase alencariana, com um interesse etnográfico, esboçava o sertanejo como tipo imponente, em perfeita harmonia com a natureza, antecipando frases de Os Sertões:

É sobre estes taboleiros, recortados por innumeros valles de erosão, que se agitam nos tempos de paz e durante as estações das aguas, na azafama ruidosa e alacre das vaqueijadas os rudes sertanejos completamente vestidos de couro curtido das amplas perneiras ao chapéu de abas largas tendo a tiracollo o laço ligeiro a que não escapa o garrote mais arisco ou rez alevantada e pendente, á cinta, a comprida faca-de-arrasto, com que investe e rompe intrincados cipoaes (Cunha, 1939: 166; cf. Cunha, 1985: 182 e segs.).

Procurava no povo do sertão a contrapartida do revoltoso da Vendéia, valorização do camponês semibárbaro que conhecia de Victor Hugo:

 A mesma coragem barbara e singular e o mesmo terreno impraticavel alliam-se e completam-se. O chouan fervorosamente crente ou o tabaréo fanatico, precipitando-se impavido á bocca dos canhões que tomam a pulso, patenteam o mesmo heroismo morbido difundido numa agitação desordenada e impulsiva de hypnotisados.[15]

Poucos anos mais tarde, o autor apresentou o caboclo do sertão como bem mais homogêneo, tentando justificar a admiração que sentia por ele já antes de chegar no sertão, preparando essa revalorização com recursos tão científicos quanto poéticos, pela descrição da flora no primeiro capítulo, A Terra, vendo nela, com toda a diversidade das espécies, uma quase homogeneidade de formas, condicionada pelo meio:

Embora esta [a flora] não tenha as espécies reduzidas dos desertos mimosas tolhiças ou eufórbias ásperas sobre o tapete das gramíneas murchas e se afigure farta de vegetais distintos, as suas árvores, vistas em conjunto, semelham uma só família de poucos gêneros, quase reduzida a uma espécie invariável, divergindo apenas no tamanho, tendo todas a mesma conformação, a mesma aparência de vegetais morrendo, quase sem troncos, em esgalhos logo ao irromper do chão. É que por um efeito explicável de adaptação às condições estreitas do meio ingrato, evolvendo penosamente em círculos estreitos, aquelas mesmo que tanto se diversificam nas matas ali se talham por um molde único. Transmudam-se, e em lenta metamorfose vão tendendo para limitadíssimo número de tipos caracterizados pelos atributos dos que possuem maior capacidade de resistência. Esta impõe-se, tenaz e inflexível (p. 119).

 O que vale para as plantas, vale mais tarde para os homens, evidenciando-se analogias entre a população vegetal e a população humana do sertão que é um espaço isolador para fora e unificador para dentro. A exposição científica, algumas vezes, em oposição com a vertente poética do livro, aqui, como em tantos outros trechos também, está a serviço de intenções historiográficas e poéticas, prefigurando a narração da guerra propriamente dita.

O que, portanto, salva o sertanejo, aquele mestiço de três povos, da condenação pela ciência? Justamente a sua homogeneidade como tipo étnico, condicionada pela segregação e pela homogeneidade do meio. Graças ao seu “insulamento” durante três séculos, a população inicialmente heterogênea do sertão, de três raças de origem, fundiu-se, através de um processo de múltiplos cruzamentos, para formar um povo relativamente unido, sem ser perturbado, diferentemente das populações litorâneas, por sucessivas levas de imigrantes e por influências civilizatórias extemporâneas.

 Ora, os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraram-se a esta última [à civilização]. O abandono em que jazeram teve função benéfica. Libertou-os da adaptação penosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou que descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados. [...] A fusão entre eles operou-se em circunstâncias mais compatíveis com os elementos inferiores. O fator étnico preeminente [a raça branca] transmitindo-lhes as tendências civilizadoras não lhes impôs a civilização (p. 177).

A civilização é apresentada como ambígua, benfazeja, além de necessária, porém com aspectos perigosos e decadentes, podendo, com suas “aberrações e vícios”, atropelar o mestiço despreparado. É como uma droga, entre alimento, remédio e veneno, que os não habituados só podem tomar em quantidade muito reduzida, aumentando aos poucos a dosagem. A valorização do homem pré-moderno e a visão crítica da civilização, possivelmente induzida por leituras românticas, devem ter contribuído para valorizar o sertanejo que, por viver longe das grandes cidades litorâneas, pôde absorver a civilização em porções homeopáticas e saudáveis.

 No fundo, o longo abandono do sertanejo, durante três séculos, foi benéfico:

A sua evolução psíquica, por mais demorada que esteja destinada a ser, tem, agora, a garantia de um tipo fisicamente constituído e forte. Aquela raça cruzada surge autônoma e, de algum modo, original, transfigurando, pela própria combinação, todos os atributos herdados; de sorte que, despeada afinal da existência selvagem, pode alcançar a vida civilizada por isto mesmo que não a atingiu de repente (p. 177).

Algo misto, derivado, secundário se teria transformado, ao longo de 300 anos de reclusão e abandono nos fundões do sertão, em algo puro, fundamental, original. O produto final de longa miscigenação se torna algo primordial, como diversas pedras se fundem durante a geohistória numa rocha viva, matéria elementar e sólida, que se presta a ser fundamento de casas ou material de construção. O sertão aparece como cadinho das raças, viveiro de um tipo genuinamente brasileiro, possível matriz da nação, cujo futuro é sugerido que virá talvez do interior. Isto pode surpreender, pois o autor havia constatado que a homogeneidade almejada não existe nem existirá no Brasil: “Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca” (p. 145). E algumas páginas mais adiante (p. 158), ele se desilude com a multiplicidade de tipos, com a “mestiçagem dissímil” no país. Uma sub-raça brasileira seria “miragem”, coisa “efêmera talvez”.[16]

A procura por uma base antropológica da nação pelo país afora se havia verificado vã. Por isso o autor tivera que concentrar a sua atenção no sertão: “Inaptos para discriminar as nossas raças nascentes, acolhamo-nos ao nosso assunto. Definamos, rapidamente, os antecedentes históricos do jagunço” (p. 158). Assim como Euclides, partindo de São Paulo, tinha esboçado a geomorfologia e a geoistória do Brasil e, principalmente, do sertão, agora ele vai esboçando o perfil atual e a formação histórica da população sertaneja, desde os tempos primordiais da colonização, com uma retrospectiva até para o passado pré-colombiano. A Terra e O Homem são livros de gênese. Gênese da terra e do homem do sertão, compreendendo também os antecedentes remotos da guerra. A terceira parte desse esquema interpretativo da História herdado de Taine, mas de alguma forma já encontrável no Facundo de Sarmiento, milieu, race, moment, compreende seis capítulos, a começar com A Luta - preliminares, e narra a história da guerra. Pode-se perguntar se esses seis capítulos não formam também um livro de gênese, a gênese de um Brasil possível, fracassado na realidade, mas bem-sucedido como mito. De modo que teríamos a seguinte seqüência narrativa: a gênese da terra, a do homem, a do país através da luta no sertão, sua parte nuclear, luta ao mesmo tempo parteira e assassina de um Brasil mais autêntico. Na era do imperialismo e do social-darwinismo era normal encarar a vida social como luta, não necessariamente vista como algo negativo, até pelo contrário, pois nessa concepção a luta pela sobrevivência funcionaria como seleção do mais forte, do mais bem adaptado ao meio, do vencedor, o que vale tanto para indivíduos como para grupos, raças e nações; lembremo-nos do livro de Gumplowicz, expressão do Zeitgeist internacional. A ênfase dada por Euclides ao conceito de luta nas duas primeiras partes prepara teórica e poeticamente a parte mais importante, a narração da Campanha de Canudos. Na guerra é que se verifica o valor, a força, a adaptabilidade, a perseverança de grupos e indivíduos; a guerra é o cadinho de onde nasce a raça do futuro, ela mesma é um processo de gênese. Para ela, o sertanejo estava eximiamente preparado, pois toda a sua vida era luta, a qual, junto com o isolamento e a mestiçagem, criou um novo tipo de homem, genuinamente brasileiro, inexistente nas outras populações do Brasil: “O sertanejo do Norte é, inegavelmente, o tipo de uma subcategoria étnica já constituída” (p. 174).

Em termos étnicos, o sertão, atrasado, bárbaro, marginalizado, de repente se apresenta como avantajado em relação ao resto do Brasil, porque produziu uma raça forte, intacta, sadia, desenvolvível. Os últimos serão os primeiros. A região problemática, imatura, carente, carecendo de ser civilizada, auxiliada, castigada até, ela se presta melhor do que qualquer outra para o encontro com o progresso, para a assimilação das influências modernas, para a criação de uma civilização autóctone, nacional. A região marginal se transfigura –transfigurar é um dos verbos prediletos de Euclides– em região modelar. À centralidade geográfica corresponde uma centralidade histórica. O que, em termos de Brasil, parecia uma vaga e remota possibilidade, um tipo antropológico brasileiro homogêneo se revela realidade no passado e no presente do sertão, no âmago do Brasil: um portador possível de uma civilização que não seja “de empréstimo” (p. 241), que não seja “fora do lugar” (Schwarz, 1988), mas que seja autenticamente brasileira. Graças a um cruzamento amplo e profundo das três raças originais teria nascido e amadurecido uma nova sub-raça, que, por sua vez, teria acabado sendo original, bastante uniforme, uma raça de verdade, “sólida base física do desenvolvimento moral ulterior” (p. 177), fundamento para uma futura nação civilizada. Esse tipo altamente promissor, arquibrasileiro, vive no interior, no semideserto, nos confins e ao mesmo tempo no coração do país, pronto para o contato com o litoral.

O sertanejo parecia capaz de superar um dilema, diante do qual se viram muitos intelectuais patriotas, preocupados com a formação da nacionalidade: a parte civilizada do país, a metrópole moderna, era internacional demais. Porém a parte do Brasil que o diferenciava da Europa e afirmava a sua particularidade, o sertão, era pouco civilizada. “O dualismo sertão/litoral apresenta duas faces. Numa delas, o pólo negativo é representado pelo sertão, identificado com a resistência à modernidade e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação” (Lima, 1998, especialmente p. 167; Souza, 1997, especialmente p. 88-109).[17] Vários escritores patriotas, de José de Alencar a Guimarães Rosa, tenderam a mediar essa oposição dando ênfase ao interior, concebendo o Brasil basicamente a partir da hinterlândia e das suas classes subalternas, mais autenticamente brasileiras, mas com abertura às influências de fora, valorizando as populações mestiças, suas formas de convívio e organização social, inspirando-se nelas para fazer uma literatura nacional em diálogo com a literatura universal. O sertanejo euclidiano se insere nessa linha da superação do dilema sertão=autenticidade=atraso versus litoral=civiliza-ção=imitação. Desde a Independência existe a idéia de que o verdadeiro Brasil seria moderno sim, mas teria que se construir a partir do interior, tendência que teve o efeito prático da interiorização da capital em 1960, prevista já na primeira constituição, de 1824. Euclides é um marco nessa tradição do pensamento social brasileiro, especialmente pela valorização do sertanejo como mestiço, como conhecedor de uma região central do Brasil. Se o sertanejo deve aprender algo com a civilização, esta pode aprender algo com ele, não o usando apenas como matéria-prima, não apenas como árvore a que se enxertaria um ramalho frutífero, mas considerando-o ele mesmo uma árvore fruteira. Devaneia-se uma relação de aprendizagem mútua entre o povo e os letrados, que, no entanto, não se torna real.

O sertanejo por excelência, todavia, o conselheirista, o “jagunço” de Canudos, está combatendo o Brasil, embora em legítima defesa: “O sertanejo defendia o lar invadido, nada mais” (p. 457). E na hora em que ele poderia dar a sua contribuição para a nação, quando, graças à luta armada, ele se revela como herói, quase como possível redentor, ele some do cenário nacional, massacrado pela coligação de militares, elites e letrados, “mercenários inconscientes” da civilização européia (p. 86).

Mesmo valorizando a raça mestiça, o autor mantém o preconceito contra a mestiçagem, combatendo com argumentos racistas os preconceitos contra o sertanejo, pois atribui à nova raça mestiça uma homogeneidade e, portanto, uma nova pureza, uma originalidade adquirida, ponto provisoriamente final de um processo evolutivo, de miscigenação e ao mesmo tempo sua superação, ponto de partida de um novo processo de formação civilizatória do Brasil. O autor fica fascinado com a miragem da unidade e da pureza, cuja realização ele vislumbra no sertão. Em A Terra, ainda tinha criticado essa busca de um tipo homogêneo:

O assunto assim vai derivando multiforme e dúbio. Acreditamos que isto sucede porque o escopo essencial destas investigações se tem reduzido à pesquisa de um tipo étnico único, quando há, certo, muitos. Não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca. Predestinamo-nos à formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir o dilatado tempo de vida nacional autônoma. Invertemos, sob este aspecto, a ordem natural dos fatos. A nossa evolução biológica reclama a garantia da evolução social (p. 144-145; ver também p. 86).

Surpreendentemente, Euclides relativiza ou quase inverte a relação de causalidade entre biologia e sociedade: com boas condições sociais e institucionais, ou seja, uma política favorecendo a mestiçagem, será viável a gênese de um tipo étnico brasileiro. Vacila entre o reconhecimento de que a procura essencialista de um tipo étnico brasileiro é não só ilusória mas desimportante e a teimosa continuação dessa mesma procura. A contradição é atenuada pela observação de que essa unidade étnica inexistente em outras partes do país existe, sim, no sertão, região privilegiada que deste modo se anteciparia ao Brasil como um todo. O sertanejo, atrasado sob muitos aspectos, seria o protótipo do brasileiro do futuro. De certa forma, os brasileiros teriam que se tornar sertanejos.

Também no plano ideológico-religioso o sertão e a sua quintessência, Canudos, são apresentados como espaço rico em potencialidades, foco de irradiação religiosa, alvo de migrações concêntricas, berço de tendências no entanto ambíguas, com aspectos tão atávicos quanto utópicos. Depois de uma escaramuça vitoriosa com a polícia, perto de Masseté, em 1893, o Conselheiro resolve caminhar com o seu séquito para uma região isolada e pouco povoada, retirar-se de certa forma para o sertão dos sertões, êxodo equiparado por Euclides à fuga de Maomé a Medina: “Realizada a façanha, os crentes acompanharam, reatando a marcha, a hégira do profeta. Não procuravam mais os povoados, como dantes. Demandavam o deserto” (p. 229-230). Em muitas religiões as paisagens ermas e flageladas pela natureza instigam a sensibilidade pelo sobrenatural, fomentam o misticismo, aprofundam a fé. Volta e meia Canudos, mas também outros lugares de romaria, Monte Santo, Bom Jesus da Lapa, são chamados de Meca, de Jerusalém, de terras sagradas. Lembremo-nos de que no mesmo ano que Os Sertões saiu outro romance com utopia rural e alusões bíblicas, Canaã, de Graça Aranha. Euclides gosta de falar da Iduméia, dos beduínos, dos profetas, evocando o Oriente Próximo, onde nasceram três grandes religiões. No embate com a missão liderada pelo capuchinho Frei Monte Marciano, o Conselheiro se revela, segundo Euclides, bem mais apostólico e cristão do que os emissários da Igreja oficial (p. 251-255). O fim de Canudos e do seu líder é encenado de tal modo que lembra a morte de Cristo (Zilly, 1998: 29). A distância em relação à sociedade permite a proximidade de Deus. O vazio pode vir a ser o lugar da plenitude. Os grandes fundadores das religiões, aos quais o Conselheiro é comparado, passaram todos por uma fase decisiva nos desertos. A redenção vem dali. Quem sabe, a do Brasil também. São sugestões, alusões, fantasias com um sem-número de reticências, nos dois sentidos do termo. Claro que se trata, parcialmente pelo menos, de hipérboles, pois na realidade o sertão nem é vazio, nem deserto, nem pode redimir o Brasil.

De um modo geral, Euclides tende a diminuir a diversidade e as oposições na natureza e na sociedade do sertão. Quanto à tese da homogeneidade étnica, ela não pode satisfazer plenamente o autor que a “esquece” em seguida, embora a retome volta e meia. Pois ela contradiz uma obviedade, visível até nas entrelinhas de Os Sertões e, principalmente, em outros relatos, ou seja, o fato de que a população sertaneja é bem menos homogênea e singular do que afirma o autor, pois ela apresenta, por um lado, diferentes fenótipos que, por outro, também se encontram em outras partes do Brasil. O próprio autor documenta a variedade física dos moradores de Canudos nos trechos mais narrativos de seu livro, em que aparecem bom número de negros, especialmente mais perto do fim, como eles aparecem também nas fotos de Flávio de Barros, o fotógrafo da guerra (ver Almeida, 1997, por exemplo, p. 73). O herói de uma das últimas cenas de Os Sertões é um negro anônimo, e justamente por isso, por ser um indivíduo no mais baixo degrau da pirâmide social, a sua transfiguração em herói é sobremaneira notável (p. 535-536). Mesmo assim Euclides procura diminuir a presença de negros em Canudos, assim como escamoteia a de índios “puros”, apesar de apreciá-los mais do que os africanos, mas esses dois elementos da comunidade canudense não se adequam à sua tese da fundição dos três elementos étnicos originais numa raça sertaneja homogênea.

Havia certa homogeneidade, sim, no plano social, cultural e religioso, indo da cultura material, moradia, vestuário, comida, passando pelo folclore até a mentalidade e a religiosidade, um catolicismo tradicional, eivado de superstições. Retomando a analogia entre flora e população, podemos concluir que há, nos dois âmbitos, certa uniformidade na aparência física, mas, sobretudo, no modo de existir, sem necessariamente haver uniformidade biológica, que fica implicitamente relativizada até certo ponto, o que contrasta com a ênfase dada ao aspecto da miscigenação biológica. Fica claro que a uniformidade cultural não precisa da uniformidade racial. Mas em Euclides perspectivas de antropologia física e de antropologia cultural se combinam por vezes de modo inextricável e contraditório.

Até no plano sociopolítico Euclides exagera a uniformidade dos chamados jagunços de Canudos. Quase não menciona a diferenciação econômica dentro da comunidade, onde havia ricos e pobres, uma gente morando em precárias cabanas de taipa e outra em casas de alvenaria, cobertas de telha. Pelo contrário, ele apresenta Canudos como organismo coeso, sem diferenciação socioeconomica, política, ideológica, sem brigas internas, quase como organização animal, um “polipeiro” (p. 237), pré-cultural, pré-humano, sem divisão do trabalho, e por outro lado como tribo, como clã de nômades iguais na sua pobreza, com um único chefe, o Conselheiro, um único subchefe, João Abade, quase sem diferenciações de mando. Tudo isso é, pelo menos, um extremo exagero.

De sorte que ao fim de algum tempo a população constituída dos mais díspares elementos [...] se fez a comunidade homogênea e uniforme, massa inconsciente e bruta, crescendo sem evolver, sem órgãos e sem funções especializadas [...]. [...] Canudos era o cosmos. E este mesmo transitório e breve: um ponto de passagem, uma escala terminal, de onde decampariam sem demora; o último pouso na travessia de um deserto, a Terra. Os jagunços errantes ali armavam pela derradeira vez as tendas, na romaria miraculosa para os céus... Nada queriam desta vida. Por isto a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota parte, revertendo o resto para a companhia. Os recém-vindos entregavam ao Conselheiro noventa e nove por cento do que traziam, incluindo os santos destinados ao santuário comum (p. 237 e seg.).

Em outro trecho que é a encenação e semificcionalização de um parágrafo do relatório que frei João Evangelista de Monte Marciano, capuchinho italiano, incumbido em 1895 pelo arcebispo da Bahia de persuadir a comunidade de Canudos a se dissolver, escreveu sobre a sua missão frustrada, Euclides omite um detalhe importante: na disputa entre os três padres, chefiados pelo missionário italiano, por um lado, e Antônio Conselheiro com os seus seguidores, de outro, grande parte dos fiéis, notadamente os que não moram dentro do arraial e não dependem política e economicamente do seu chefe, se inclinam para o lado dos representantes oficiais da Igreja (p. 251-255; Marciano, 1987). Em outras palavras: espiritualmente também, a comunidade de Canudos está longe da coesão sugerida por Euclides, pelo menos antes da guerra.

Pois lá havia concorrência, brigas, crimes internos. É curioso o escritor Euclides eliminar um incidente cruento dentro de Canudos que o jornalista do mesmo nome tinha referido: o assassinato da família Mota a mando ou com o consentimento de Antônio Conselheiro, logo depois do combate em Uauá, durante a primeira expedição, por suposta traição, nunca provada (Cunha, 1939: 39). Esse episódio atrapalharia a imagem de unidade que o escritor pretendeu criar de Canudos cinco anos mais tarde. Ele enfatiza, no tratamento das fontes históricas sobre o arraial, todos os traços da coesão e uniformidade, negligenciando ou suprimindo os da diferenciação. É com o mesmo intuito que acentua e exagera o isolamento da população sertaneja em relação ao resto do Brasil. Será que o sertanejo, no plano étnico, é muito diferente do caipira de outras regiões? Na verdade tanto a coesão da população sertaneja como a sua diferenciação dos mestiços de outras partes do Brasil, principalmente do interior, são em grande parte fantasias do autor. A homogenização tanto quanto a polarização de elementos da realidade, todavia, são técnicas retóricas de dramatização da história, estratégias narrativas que afastam o relato do discurso científico-acadêmico e o aproximam da criação literária.

O sertão: berço da nacionalidade?

No decorrer da narrativa, a reabilitação do mestiço pela ciência cede lugar à sua elevação a herói e mito nacional, à sua transfiguração pela literatura, em cujo plano a origem multiétnica do povo e a mestiçagem definitivamente deixam de ser estigma para se converter em qualidade positiva da nação que se está formando.

Insatisfeito com as elucubrações abstratas do antropólogo amador Euclides da Cunha sobre os mestiços em geral, vistos de modo negativo, e sobre os mestiços do sertão, vistos de modo relativamente positivo, entra, portanto, em cena o escritor Euclides da Cunha, sensível, atento para a realidade empírica e palpável, dotado de empatia e fantasia, interrompendo rudemente todas aquelas reflexões que hoje em dia nos parecem pseudocientíficas: “Deixemos, porém, este divagar pouco atraente” (p. 177). O ceticismo em relação ao valor cognitivo da ciência o leva a uma escrita cada vez mais literária, intuitiva, admitindo incoerências teóricas e uma multiplicidade de perspectivas. O autor deixa de ser dono da verdade. Se o método e a sistemática acadêmica fracassaram, que vivam o impressionismo e o subjetivismo. Daqui para frente, com recursos retóricos e poéticos, apesar de algumas recaídas cientifizantes, o autor propõe-se a retratar pictorialmente e a encenar teatralmente a realidade visual, auditiva, sensorial de modo direto, sem a mediação de categorias científicas (Zilly, 1998).[18] Encerra, programaticamente, o segundo subcapítulo de O Homem:

 Prossigamos considerando diretamente a figura original dos nossos patrícios retardatários. Isto sem método, despretensiosamente, evitando os garbosos neologismos etnológicos. Faltaram-nos, do mesmo passo, tempo e competência para nos enredarmos em fantasias psíquico-geométricas, que hoje se exageram num quase materialismo filosófico, medindo o ângulo facial, ou traçando a norma verticalis dos jagunços. Se nos embaraçássemos nas imaginosas linhas dessa espécie de topografia psíquica, de que tanto se tem abusado, talvez não os compreendêssemos melhor. Sejamos simples copistas. Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras ou ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a celeridade de uma marcha militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali estão abandonados há três séculos (p. 177-178).

Essa observação quase metodológica e metaliterária é localizada estrategicamente: antecede o famoso cântico dos cânticos do sertanejo, iniciando o terceiro subcapítulo de O Homem: “O sertanejo, antes de tudo, é um forte” (p. 179). O autor admira a sua perseverança e habilidade, seu jeito inteligente de lidar com a natureza adversa, que sabe ganhar como aliado, sua inventividade e astúcia como guerrilheiro, mas, também, algumas das suas qualidades morais como a honestidade e a confiabilidade. Gosta de pintá-lo em cenas idílicas ou, de preferência, dramatizá-lo em cenas heróicas, cheias de lutas e perigos, que desmentem a primeira impressão de preguiça e frouxidão:

 O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias (p. 180).

E um pouco mais adiante: Vimo-lo neste steeple chase bárbaro [...] Colado ao dorso deste [do seu cavalo], confundindo-se com ele, graças à pressão dos jarretes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando nas macegas altas; saltando valos e ipueiras; vingando cômoros alçados; rompendo, célere, pelos espinheirais mordentes; precipitando-se, a toda brida, no largo dos tabuleiros... (p. 180-181).

O soldado gaúcho, também valente, é só um “centauro apeado” (p. 417), um centauro incompleto, portanto. Claro que o sertanejo continua sendo um “bárbaro”, caracterização freqüente no livro, mas um bárbaro muito especial, equiparado aos deuses primordiais, pré-olímpicos, aos semideuses, aos heróis da Antigüidade, elevado a “titã”, “centauro”, “Anteu”, “Proteu”, “gladiador”, “Hércules”, antonomásia logo relativizada mas não desmentida pelo acréscimo “Quasímodo”. É o herói que, em momentos de maior perigo, de quase derrota, realiza façanhas “épicas” e inflige “hecatombes” ao exército, que derrota tal qual os guerrilheiros germanos derrotaram as legiões do estrategista romano Varus no ano 9 antes de Cristo (p. 378). Ou ele surge como “campeador medieval desgarrado em nosso tempo” (p. 182). Durante a seca, como sempre em lances críticos, ele passa por uma transformação, de sub-homem para super-homem:

Então se transfigura. [...] Transcende a sua situação rudimentar. Resignado e tenaz, com a placabilidade superior dos fortes, encara de fito a fatalidade incoercível; e reage. O heroísmo tem nos sertões, para todo o sempre perdidas, tragédias espantosas (p. 195).

A missão de Euclides é ser justamente o cronista desses episódios para os quais ele utiliza a metáfora da tragédia, gênero literário nobre, que dignifica os personagens e os seus feitos, enfatiza o caráter conflituoso e fatal da sua vida, enobrece as suas derrotas com uma auréola heróica. O “narrador sincero” pretende testemunhar esses episódios que são rica matéria-prima para a literatura, que já são literatura de certa forma, sem que ninguém antes do nosso autor tivesse notado isso, um típico exagero euclidiano. O ocaso de Canudos, volta e meia equiparado ao de Tróia, é o maior exemplo de tais tragédias, enaltecimento e apoteose definitiva do sertanejo. Essa tragédia não é perdida para a posteridade, graças justamente à arte narrativa de Euclides que evoca repetidamente o perigo do esquecimento, para ele mesmo esconjurá-lo de uma vez por todas em seu livro martelado e esculpido como uma pedra monumental.

De certa forma a narração da guerra, predominantemente épica e dramática, se é de inspiração literária, sendo a guerra um dos temas mais importantes de toda a literatura universal de Homero a Victor Hugo, também corresponde à filosofia social de Gumplowicz: a História é luta, luta de raças, luta de povos, luta de grupos, luta. O sertão e o sertanejo são resgatados menos através de uma argumentação etnológica do que através da narração romanceada de lutas, de conflitos e colisões dentro da natureza, entre a natureza e o homem, entre o homem e o homem. É principalmente na luta armada, no duelo, na guerra, suprema manifestação dessa “força motriz da História” (p. 86) que se revela o valor de um homem, de uma comunidade, de uma civilização. É através da guerra que uma comunidade, uma nação se forma quando não sucum-be. A guerra é a prova dos nove da vitalidade de um grupo e de uma pessoa.

A questão é saber se Canudos morreu de verdade. O enredo, que obedece à sucessão dos fatos históricos, mostra que Canudos foi aniquilada. Mas a encenação desses fatos garante a vitória moral aos canudenses. Mesmo militarmente o exército fracassou, ficando vitorioso só graças ao armamento estrangeiro, graças à superioridade tecnológica e à artilharia estrangeira e também devido às armas covardes da dinamite e do querosene. É essa superioridade moral que torna e mantém Canudos viva no imaginário coletivo, que faz parte da realidade e pode vir a ter efeitos práticos. Mas o que está vivo no pla-no real é a nação brasileira, unida e edificada também pela memória de Canudos.

A recorrência ao elemento pré-moderno, a valorização, embora ambígua, do homem ligado estreitamente à natureza, vivendo em pequenas comunidades, com “belas qualidades morais, longamente apuradas na existência patriarcal dos sertões” (p. 238), contém aspectos de crítica à civilização, de inspiração romântica. O narrador encontra, por exemplo, no chefe do “clã” de Cansanção, vilarejo a meio-caminho entre Queimadas e Monte Santo, “esta nobreza orgânica completada por uma alma sem refolhos, tão característica dos matutos, quando os não derrancam o fanatismo e o crime” (p. 501).

Nessa arqueologia antropológica empreendida pelo autor, à procura dos fundamentos da sociedade sertaneja e até brasileira, é de origem romântica também, mais precisamente indianista, a acentuação exagerada do elemento indígena na população sertaneja, ao detrimento do africano, cuja presença se deseja escamotear ou minimizar. Não menos romântica é a estilização do sertanejo como vaqueiro encourado, a cavalo, associado ao escudeiro ou até cavaleiro medieval, visão aristocrática herdada de José de Alencar e ainda detectável em Guimarães Rosa. O duplo sentido de “cavaleiro” sugere que todo homem montado é de certo modo fidalgo, e como todo sertanejo é vaqueiro, também tem algo de fidalgo. “Assim todo sertanejo é vaqueiro” (p. 184) é porém uma generalização desmesurada, pois os vaqueiros eram uma minoria, embora típica, no sertão, sendo o cavalo e o traje de couro objetos bastante caros, em geral propriedade do patrão fazendeiro, para não falar da eliminação do elemento feminino, naquela definição, que naturalmente não podia ser vaqueiro. E mais especificamente em Canudos praticamente não havia vacas nem cavalos, pois lá, como em quase todo o sertão, o bode era a vaca do pobre. Mas essa estilização do sertanejo e do canudense como vaqueiro tem sua lógica, pois cuidar de gado vacum, montado a cavalo, era considerado trabalho mais nobre e mais macho do que lidar com cabras ou trabalhar na roça.

Através de um sem-número de metáforas, metonímias, antonomásias, alusões, comparações, incluindo muitos paradoxos, antíteses, oxímoros que traduzem a sua imagem cambiante e até contraditória do sertanejo, Euclides eleva esse mestiço atávico, inferior, desprezado, à altura dos heróis da história e da literatura universais. Toda a narrativa da guerra de Canudos relembra, com sua retórica sublime e grandiosa, com suas imagens plásticas e cenas dramáticas, as grandes epopéias e tragédias assim como os romances inspirados por elas, de Homero e Dante até Victor Hugo. Ela também se filia à historiografia clássica e moderna, de Heródoto e Tucídides a Michelet, Taine e Renan. Com a valorização do sertanejo, por mais hesitante e ambígua que seja, sobretudo nos capítulos iniciais, Euclides, antes das reflexões sociológicas de um Gilberto Freyre e dos manifestos e obras dos Modernistas, transforma atributos considerados até então vergonhosos –a origem multiétnica, a mestiçagem, a rápida absorção do alheio– em qualidades positivas da nação.

Quando a República, no seu fanatismo civilizador, aniquila o sertanejo numa guerra de assédio, cuja sombria grandiosidade recorda a canção dos Nibelungen, epopéia medieval alemã, em que uma tribo germânica é aniquilada pelos hunos, ela pratica um ato de automutilação nacional, pois o inimigo massacrado era o “cerne de uma nacionalidade”, “a rocha viva da nossa raça” (p. 559; ver também p. 580). Aquele povo que parecia estranho, quase estrangeiro (“outros hábitos, outros quadros, outra gente, outra língua”, cf. p. 496) se revela no ocaso como superiormente brasileiro. O sertão, que só como “ficção geográfica” (p. 497) era nacional, passa a ser visto, momentaneamente, quando é tarde demais, como possível berço de um futuro Estado brasileiro modelar, já não excludente como o era o projeto nacional das elites, mas, ao contrário, incorporador e participante, embora não igualitário nem formalmente democrático. Nele não só as raças e culturas estariam reconciliadas, mas também a civilização e a selvageria, a orientação para a Europa e para a hinterlândia, a cultura e a natureza, a modernidade e a tradição. Sem que se usasse o termo, o que se estava construindo em Canudos era a cidadania dos que tinham sido mantidos não-cidadãos, uma comunidade com relativa justiça social, a cidadania do povo de Deus.

E na medida em que esse projeto tinha traços transnacionais, era uma implícita superação dos nacionalismos. Pois o que entrava em choque no sertão, não era só a civilização mundial contra uma sociedade local, mas principalmente o último estágio da civilização com um seu estágio anterior, ambos transnacionais. Com respeito à religião, aos costumes, ao artesanato, até à linguagem, a cultura sertaneja era em grande parte ibérica, portanto, européia. O pouco caso que os conselheiristas faziam da nação não significava hostilidade, era simplesmente conseqüência do abandono e da perseguição.

O Brasil tinha, quase palpável, a chance de renascer a partir do povo do sertão de Canudos, mas não a aproveitou. Na extinção dessa comunidade dos “fortes” acaba se verificando um crime e ao mesmo tempo uma tragédia real, cuja expressão adequada é o consórcio de discurso fúnebre e de requisitório irado (Galvão, 1990). Curiosamente, Euclides dá a impressão de que em Canudos todos os sertanejos de todos os sertões teriam sucumbido, e a sua arte de presentificação imagética é de uma força tão empolgante, sugestiva, mágica que o leitor no primeiro momento o acredita, profundamente comovido. Na verdade, em Canudos foram mortos “apenas” alguns milhares de sertanejos, não se dispondo de cifras exatas. Milhões, naturalmente, continuaram vivos, muitos sem possibilidades de sobrevivência em sua terra, de modo que seriam obrigados ao êxodo para a Amazônia ou para as cidades litorâneas.

O escritor, com toda a sua tendência ao hiperbolismo e sua visão apocalíptica, não estava errado, ao vislumbrar um trágico ocaso histórico. Pois o que se extinguiu em Canudos foi mais do que uma comunidade de alguns milhares de pessoas; o que se extinguiu ali foi uma visão, um modelo social autônomo construído a partir do espírito da cultura sertaneja e do catolicismo popular, tão incipiente e promissor quanto a flora e a própria terra daquela “região incipiente” que “ainda está preparando-se para a Vida: o líquen ainda ataca a pedra, fecundando a terra” (p. 104). Esse modelo, politicamente tradicional e inacabado, velho e embrionário ao mesmo tempo, se revelou econômica e espiritualmente viável, atraente para os pobres de outros sertões, seminal, promissor, pronto a desenvolver-se, não fosse abortado pela fúria repressiva do Estado. Foi a primeira vez que o sertanejo deixou de ser mero objeto, surgiu como sujeito histórico na cena política nacional. Antônio Conselheiro e seus seguidores tinham, de fato, algo dos heróis antigos: eram durante poucos anos fundadores bem-sucedidos de uma cidade autônoma, a maior das redondezas, um mini-Estado alternativo, onde os humildes gozavam de mais respeito e dignidade do que em outras partes da hinterlândia brasileira. Fossem as elites menos arrogantes, menos bárbaras, mais respeituosas da legalidade, mais dispostas ao diálogo, os canudenses poderiam ter sido co-fundadores de um Estado diferente, menos injusto, menos excludente, mais moralizado, mais civilizado, cuja configuração exata, porém, é impossível imaginar, não se podendo descartar o perigo de aberrações fundamentalistas.[19] Obviamente uma Canudos como seara de um Brasil mais popular é uma perspectiva ilusória diante da correlação real das forças no interior, caracterizada pelo clientelismo a serviço das oligarquias municipais, estaduais e nacionais, que não admitiam zonas fora do seu controle.

Se Euclides encenou tão grandiosamente o crepúsculo do sertão e do sertanejo, é porque sentia que Canudos era a expressão mais alta das forças comunitárias da região, um rico manancial de possibilidades sociais e políticas. Diferentemente de outros viajantes e pesquisadores, como Teodoro Sampaio, Rondon, Oswaldo Cruz, o nosso autor, mais próximo dos ficcionistas que pensaram o Brasil a partir do interior como Guimarães Rosa, não teve apenas uma visão missionária do papel dos cientistas, dos intelectuais, do progresso como caminho de mão única, mais objeto do que sujeito de esforços civilizatórios. Ao contrário, ele intuiu que, para superar a dicotomia litoral-sertão, era preciso reconhecer o sertanejo como possível fazedor da sua história, capaz de contribuir também para a história do Brasil. Parece que os escritores e os artistas em geral, ainda que muitas vezes a serviço das classes dominantes, têm menos problemas do que outros intelectuais, cientistas naturais e sociais, para entender e apreciar, intuitiva ou racionalmente, soluções culturais e políticas a partir das próprias classes subalternas, e, de um modo geral, para levar a sério os derrotados da História. São os virtuais aliados dos desfavorecidos.

Um monumento literário sucedâneo ou memória?

As aporias éticas, políticas, intelectuais da guerra e da sua interpretação encontram uma solução duradoura e exemplar no plano estético: num ensaio historiográfico que transcende um estudo regional ou relato de guerra, já que abrange o Brasil como um todo, incluindo sua relação com a civilização universal, poetizando a ciência, a história e a antropologia, um monumento complexo e polissêmico da cultura brasileira, com status canônico e prestígio universal; um livro fundador que representantes de todas as áreas do saber e de todas as correntes ideológicas reconhecem como emblema da nação, como lugar de memória nacional, como exímio tratado sobre suas origens, seus problemas e qualidades, seu possível futuro.[20]

Em Os Sertões há dois discursos sobre o sertanejo, a sua formação étnica e a nação. São dois discursos contraditórios, excluindo-se logicamente mas complementando-se esteticamente, pertencendo a gêneros de texto diferentes, com muitas zonas de interpenetração. Por um lado, é um ensaio científico, com argumentação acadêmica, moderna na época, em geral dedutiva, racista, atenuando esses preconceitos com um raciocínio que no fundo também é racista. E, por outro, temos a presentificação romanceada de cenas dramáticas e de quadros épicos, repletas de valentia, generosidade e crime, de luta, triunfo e morte; um protesto implorador, dirigido aos contemporâneos e à posteridade, contra a barbárie do Estado Nacional e da Civilização. É uma perturbadora historiografia poética e retórica que, na luta exasperada contra o esquecimento, não só não evita exageros e ficcionalizações, mas se vale desses e de outros recursos literários, proposital e abundantemente. É, no final das contas, o triunfo da literatura, e a absorção da ciência por aquela.

No primeiro discurso do autor, o mestiço, apesar das contradições da argumentação evolucionista, ora condenando-o, ora valorizando-o na sua forma específica de sertanejo, tem que perecer, vítima das férreas leis evolutivas e da luta de raça universal, concepções da época com que se tentava explicar e justificar a concorrência imperialista pelos recursos e mercados mundiais.

No segundo discurso o mestiço também perece, não por ser o mais fraco, mas, apesar de ser o mais forte dos dois adversários, como vítima de uma desgraça trágica e criminosa, evitável talvez. Transfigura-se em um quase fundador de uma nação e herói de grandeza universal. O “jagunço”, o “bandido”, o “duende”, o “fanático”, o “retardatário”, o “bárbaro” acaba sendo santificado como mártir secularizado, tendo sua apoteose quase como salvador da pátria, conquistando um lugar de honra no imaginário da nação e da civilização. Estas últimas o combatem na realidade, mas ficam enriquecidas com seu exemplo, depois de ele se transformar em personagem literária. Para chegar até lá, o sertanejo, no entanto, tem que morrer, sendo a morte condição da sua imortalidade. Morre no plano real, mas continua vivo, ou melhor, revive no plano simbólico. Nesse sentido, a obra de Euclides constitui uma espécie de discurso fúnebre, quase uma hagiografia na qual se narra a conversão, o apocalipse, a morte, a redenção e a ressurreição do sertanejo no imaginário, no céu da nação. O escritor lança mão de todos os registros da poética e da retórica ocidental para elevar a sua sonora voz de advogado dos mortos, inscrevendo-os na memória nacional, clamando por justiça para eles (cf. Neubaur, 1995). Representante, mas ao mesmo tempo dissidente do republicanismo e do progresso civilizatório, acusa-os de massacre e os convoca para sentarem-se no banco de réus da História.

Se o autor científico não soube mediar a legítima auto-organização das camadas subalternas rurais e a, segundo ele, não menos legítima civilização constituída nos moldes do Estado Nacional, é porque na realidade não havia mediação possível. Mas o autor poético encontrou uma solução para essas e outras aporias: a heroização do sertanejo e, em escala menor, do soldado, excetuando-se os comandantes e os degoladores, através de uma narrativa tão dramática quanto épica, tão teatral quanto pictorial, elevando a guerra no longínquo sertão a uma das grandes tragédias da nação e de toda a humanidade, de efeitos catárticos. E na medida em que aquela guerra fratricida foi uma chacina, um crime de Caim, o livro é uma acusação ao falso heroísmo militar, ao fanatismo republicano, à barbárie inerente à civilização, um mea-culpa elevado a mito que une a nação (cf. Renan: 1887: IV). “Para que não seja inútil o sacrifício dos vaqueiros, é preciso recordá-lo para sempre” (Bôas, 1998: 159).

Se Os Sertões teve e continua tendo um impacto tão profundo na vida intelectual do Brasil, é por ser um livro fundador, uma vez que narra a gênese da terra e do homem no sertão, sua importância para a formação nacional, e discorrendo, antes de tudo, sobre uma guerra que, junto com a repressão cruenta da Revolução Federalista e da Revolta da Armada, foi um dos atos fundadores da República, um delito de origem. Pertence à linhagem de obras que Doris Sommer chama de foundational fiction, romance de fundação, tal como o Facundo de Sarmiento, O Guarani e Iracema, de Alencar. Pois o evento narrado não é apenas crucial para a consolidação da jovem República, mas para a própria formação da nacionalidade, em que se esboça a possibilidade de uma conciliação da evolução étnica e civilizatória, tragicamente abortada no caso concreto.[21] Euclides reforça e redireciona, mais como literato do que como pensador social, uma linha de pensamento que visa a superar a dicotomia entre sertão e litoral, a dicotomia entre os dois Brasis, na fórmula com a qual, posteriormente, procurar-se-ia combinar brasilidade e modernidade (Lambert, 1976). “Civilização do sertão e nacionalização da marinha vão ter, como resultante, uma civilização propriamente brasileira, autenticada no contato depurador com a ‘realidade nacional’” (Souza, 1997: 107).

O clássico euclidiano mantém aberta a chaga nacional que foi Canudos, apesar de transfigurá-la em mito nacional edificante, permitindo tanto uma leitura conciliatória ou meramente estética, como também uma leitura crítica, atualizante e engajada, sem deixar de ser estética. Cem anos depois, Antônio Conselheiro não só é reclamado pelo Movimento dos Sem-Terra como um dos seus predecessores, o que pode ser plausível, mas também pelas elites, o que já não o é tanto. Este processo de cooptação póstuma tem aspectos de antropofagia simbólica, a transubstanciação do marginalizado, expulso e morto, em mártir, em santo, salvador do sertão e da pátria, mito regional e nacional. A “urbs monstruosa” (p. 232) se transforma em urbs santa, o excluído é incluído, o quase estrangeiro torna-se o mais brasileiro de todos, certamente um dos efeitos do livro euclidiano.

Quem começa porém a tirar o sertanejo, esse prócer da pátria, do panteão imaginário para levá-lo ao plano da realidade, preocupando-se por exemplo com seus bisnetos de hoje, vai se chocar com os donos do poder que, se achassem necessário para defender os seus interesses, cometeriam outro massacre de Canudos, o que aliás têm feito, embora de modo mais disperso, não mais extinguindo uma localidade inteira. Pode-se perguntar se a estetização e mitificação do sertanejo de Canudos como emblema nacional beneficiou o sertanejo real, na região de Canudos ou alhures (cf. Cardoso, 1996). Nas comemorações do Centenário em 1997 houve, independentemente de posições ideológicas ou políticas, unanimidade na homenagem aos canudenses; saiu por exemplo um selo especial do correio brasileiro com retrato do Conselheiro, e realizaram-se inúmeros simpósios e atos comemorativos em todo o país, até no Congresso Nacional. Mas nem por isso a parte secular do legado euclidiano, o direito do homem do campo a uma vida digna e sem miséria, passou a ser preocupação especial de todos os governantes regionais ou nacionais. O sertanejo de Canudos é relegado à esfera autônoma da sociedade que é a cultura, caracterizada por sua distância em relação à vida prática, à política, à economia, cabendo-lhe o mesmo destino contraditório do índio: morto, é enaltecido a emblema nacional; vivo, continua marginalizado ou até perseguido.

O sentido de Os Sertões, como de toda literatura, depende em grande parte da visão do mundo, da sensibilidade estética e do esforço interpretativo do leitor, cuja colaboração é constitutiva para dar plena existência ao texto (cf. Iser, 1996). Se o livro de Euclides equaciona no plano simbólico problemas que são insolúveis no plano real, não o faz necessariamente como monumento intimidador, objeto de orgulho e admiração nacional, sucedâneo da análise e da ação. A leitura desse memorial pode, além de dar prazer estético, estimular perguntas e reflexões; pode ser admoestação e provocação.

 

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Notas

1 Calasans, 1959: 63.

[2] Alguns exemplos: Caio Prado Jr., Formação do Brasil contemporâneo, 1942; Raymundo Faoro, Os Donos do poder: Formação do patronato brasileiro, 1958; Roland Corbisier, Formação e problema da cultura brasileira, 1958; Antonio Cândido, Formação da literatura brasileira, 1959; Celso Furtado, Formação da economia brasileira, 1959; Darcy Ribeiro, O Povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil, 1995.

 [3] Naturalmente, o conceito de civilização abrange numerosos outros aspectos de que não se pode falar aqui, como o da polarização entre “civilização” e “cultura” no pensamento político alemão, a partir de meados do século XIX, e, sobretudo, entre as duas guerras mundiais, insinuando-se que as democracias ocidentais teriam apenas civilização, ou seja, um certo refinamento da produção material e intelectual, mas meio superficial ou utilitária; ao passo que os alemães teriam cultura, ou seja, filosofia e produção artística de alta qualidade, desinteressada, profunda, metafísica, por exemplo, Les Galeries Lafayettes e a Tour Eiffel versus Wagner e Goethe.

[4] Ver Elias, 1997; sobre o controle de afetos, no 2. vol. ver as pp. 323 e segs.

[5] Renan descarta totalmente as definições da nação pela ascendência e raça, e relativiza os critérios da língua e dos interesses econômicos. Ele dá uma definição iluminista à nação: Une nation est une âme, un principe spirituel. Deux choses qui, à vrai dire, n’en font qu’une, constituent cette âme, ce principe spirituel. L’une est dans le passé, l’autre dans le présent. L’une est la possession en commun d’un riche legs de souvenirs; l’autre est le consentement actuel, le désir de vivre ensemble, la volonté de continuer à faire valoir l’héritage qu’on a reçu indivis. [...] Une nation est donc une grande solidarité [...]. Une grande agrégation d’hommes, saine d’esprit e chaude de coeur, crée une conscience morale qui s’appelle une nation (Renan, 1887: 306-310). Essa “conscience morale” é feita de sacrifices, de gloires, de deuils e de regrets communs (Renan, 1887: IV), o que muito bem se pode aplicar ao papel da guerra de Canudos e de Os Sertões na memória nacional brasileira.

[6] José Bonifácio de Andrada e Silva, um dos artífices da Independência, já defendia a abolição, e não era o único; ver Martins, 1977: 136-138.

[7] Luiz Costa Lima demonstra que o raciocínio de Gumplowicz era antes político do que biológico e que não condenava necessariamente a mestiçagem, nem excluía categoricamente a eventualidade de as raças não-brancas se imporem um dia, de modo que Euclides teria incorrido numa leitura errônea. Sem contestar a pertinência dessa análise, me parece exagerado tirar dela a conclusão de que “não saberíamos bem imaginar como seria Os Sertões sem a desleitura de Gumplowicz. O fato é que seria outra coisa” (Lima, 1997: 32). O social-darwinismo reinante com suas idéias de luta permanente dos grupos sociais pela sobrevivência e pelo poder era tão forte que Euclides não precisava de um Gumplowicz para conhecê-las, adotá-las, corroborá-las. As suas idéias, o escritor não as ganhou através de meticulosos estudos exegéticos. Ao contrário, o método de trabalho euclidiano era quase o inverso; era, apesar das vastas leituras e das pretensões cientificistas, mais dedutivo do que indutivo, assistemático, eclético: ele procurava em leituras científicas e literárias assim como em observações empíricas, por sua vez em grande parte mediadas por leituras, indícios e provas para corroborar as suas próprias opiniões e visões, intuídas ou adquiridas através da formação intelectual, preconcebidas e em parte preconceituosas. Das maiores autoridades intelectuais Euclides só colhia o que lhe convinha, de modo que as suas desleituras são legião. Não tinha tempo nem paciência para uma exegese cuidadosa de livros como o de Gumplowicz, e mesmo que o tivesse lido “corretamente”, isso não teria modificado substancialmente a sua argumentação, pois ele costumava ignorar ou interpretar arbitrariamente aquilo que não lhe agradava. O contrário portanto é provável: se Euclides tivesse entendido “corretamente” Gumplowicz, não se teria apoiado nele do jeito que fez, e de qualquer forma não teria modificado seu raciocínio. Há várias citações e alusões superficiais, fantasiosas ou nitidamente erradas em Os Sertões, que, se fosse tese de doutoramento, não teria sido aceito por nenhuma universidade, pela leviandade na utilização das fontes, o que não diminui em nada sua importância para o pensamento social brasileiro e muito menos o seu valor literário.

[8] “Os grandes conquistadores de urnas que, a exemplo de milhares de comparsas disseminados neste país, transformam a fantasia do sufrágio universal na clava de Hércules da nossa dignidade, apelavam para o Conselheiro” (p. 240). A insinuação de Euclides de que o Conselheiro teria entrado no jogo coronelístico não tem base documental. Se o tivesse feito, poderia ter evitado a guerra, ainda que ele mesmo tivesse se tornado uma espécie de coronel, parecido com o Padre Cícero, em Juazeiro do Norte.

[9] Observação: a mera indicação de um número de páginas no artigo se refere a Cunha, 1985.

[10] Sobre as idéias religiosas de Antônio Conselheiro e a religiosidade em Canudos ver Otten, 1990; Hoornaert, 1997. A tese do messianismo era corrente nos escritos da época sobre Canudos e bem cedo repercutiu nas crônicas de Machado de Assis, ver Menezes, 1993, especialmente p. 53. O próprio termo era raro, embora dicionarizado em Figueiredo: 1899. Se havia veneração do Conselheiro como santo por parte de adeptos, ele mesmo se opôs a ela. O seu apelido “Bom Jesus Conselheiro” era mais bem uma antonomásia, não significa necessariamente uma identificação com Jesus Cristo mas uma aproximação afetiva, já que o fundador de Canudos tinha fundado anteriormente um povoado chamado “Bom Jesus”, hoje Crisópolis.

[11] Galvão, 1974: 482. Siqueira de Meneses, que assinava os seus artigos com o pseudônimo Hoche, nome de um general que combateu a revolta de Vendéia contra a Revolução Francesa, também levantou, como Euclides e outros, a tese do sebastianismo entre os conselheiristas (ibidem: 480), acusação, corrente na época, dos jacobinos contra os monarquistas, aludindo ao seu pretenso obscurantismo.

[12] É verdade que havia, além de uma maioria de caboclos, bom número de índios e negros. Até havia uma “rua dos Negros”, sem que isso significasse segregação e discriminação, diferentemente do resto da sociedade brasileira. Se existia uma consciência étnica, ela devia ser pouco marcada, pouco importando as variações nos traços físicos. Socioeconomicamente falando, Canudos era pouco homogêneo, pois ali havia diversas classes sociais, exceto, naturalmente, as elites rurais. Essa diferenciação entre remediados e pobres, que era nítida, parece não ter afetado profundamente o sentimento comunitário, de solidariedade; ver Levine, 1992: 158 e segs.

[13] Na poesia popular tampouco se nota uma consciência sertaneja, oposta à nação, ao litoral, à Civilização. Ver Calasans, 1959: 57-82. Nem o termo “sertanejo” aparece normalmente, sendo mais usado por citadinos que falam do sertão. O seguinte terceto (Calasans, 1959: 63), que não achei em outro trabalho sobre o mesmo assunto: Calasans, 1984, é altamente interessante, por exprimir uma profunda verdade histórica e por usar os dois termos-chave rimados, bastante raros nos documentos sobre o pensamento sertanejo da época: Não há mais revolução/Antônio Conselheiro morreu/Por causa da nação.

[14] Terras grandes”, frase vaga com que os matutos designam o litoral que não conhecem. Com ela abrangem o Rio de Janeiro, a Bahia, Roma e Jerusalém que idealizam próximas umas de outras e muito afastadas do sertão. É o resto do mundo, a civilização inteira, que temem e evitam.” (p. 270). Mas que não necessariamente hostilizam, pois em Uauá, em dias de feira, os sertanejos ficam “pasmos ante os mostradores de duas ou três casas de negócio” (ibidem). Ver também Levine, 1992: 162: “Canudos may well have boasted more urban refinements than most of its neighbors”.

[15] Cunha, 1939: 167. O conhecedor de Os Sertões poderia presumir que se trata de uma alusão ao famoso episódio do capítulo Quarta Expedição, VI subcapítulo, onde se conta o assalto de 12 jovens conselheiristas, liderados pelo filho de Macambira, à Matadeira (p. 476), também referido em outros trechos do livro, por exemplo, nas páginas 432-433, tão notável deve ter sido para o autor. No entanto, o artigo já foi publicado em 14 de março de 1897, quatro meses antes daquele episódio que ocorreu em 11/7/97. Essa antecipação demonstra como funcionava o processo de percepção e representação da realidade do sertão em Euclides, ou seja, a partir de idéias e imagens pré-fabricadas, transmitidas por livros que tratavam freqüentemente de realidades do Velho Mundo, que conhecia através de narrativas históricas ou literárias. Exagerando um pouco, poder-se-ia dizer que a observação direta do sertão brasileiro e as pesquisas científicas e etnográficas eram subordinadas a intenções estéticas, servindo para confirmar, precisar, detalhar o que o autor já sabia ou intuía em forma de imagens e cenas antes de chegar na região. No caso do assalto aos canhões, a realidade pareceu cumprir à risca as expectativas, evocadas por Quatre-vingt-treize, romance de Victor Hugo, de 1873, sobre a repressão cruenta das revoltas contra a Revolução Francesa na Vendéia e na Bretanha, que eclodiram em 1793, exatamente cem anos antes da fundação de Canudos. A imagem dos canhões tomados a pulso parece ter sido um topos na época, pois antes de Euclides Olavo Bilac, em crônica de 5/2/1897, já a havia projetado para os canudenses, quase um mês antes da chegada do primeiro canhão ao arraial, cinco meses antes do referido assalto à Matadeira. Escreve Bilac: ”Não se trata, pois, de uma simples rebelião, facilmente dominável. A guerra civil de Canudos é muito mais grave do que a do Rio Grande do Sul e a da revolta naval, porque é uma guerra feita por fanáticos, por malucos furiosos que o delírio religioso exalta, gente que vem morrer agarrada à boca das peças, tentando tomá-las a pulso” (Bilac, 1996: 29). Sobre o romance de Victor Hugo como fonte de Os Sertões, ver Bernucci, 1995: 25-38.

[16] “Sub-raça” aqui não tem necessariamente uma conotação de inferioridade, mas significa simplesmente “subcategoria étnica” (p. 144), uma subdivisão entre as três principais raças formadoras da população brasileira, uma raça mestiça, portanto.

[17] Neste último livro, entre várias observações elucidativas sobre Os Sertões, há porém um mal-entendido que diz talvez respeito ao problema metodológico do uso de fontes literárias para se fazer história das idéias. O trecho interpretado em Souza (1997: 102), no qual se diz que seria necessário levar a civilização “a pranchadas” ao sertão (Cunha, 1985: 291-292), não traduz a opinião de Euclides, pois se trata de uma frase em discurso indireto livre, com alta dose irônica, de modo que o escritor justamente se distancia dessa atitude, parodiando a retórica pseudo-civilizatória e belicista dos militares.

[18] Numa nota para a 2a edição, Euclides, invocando a autoridade de Tucídides, rejeita as primeiras impressões como fonte histórica, acentuando a sua atitude de historiador objetivo, isento, crítico, científico. Mas essa observação metodológica só em parte caracteriza o seu próprio procedimento, pois além de historiador ele é, como se pode depreender do acima citado elogio de “todas as impressões”, também e preponderantemente um escritor impressionista, acessível não só às suas próprias visões da realidade mas também a representações orais e literárias, mesmo fantasiosas, de outros autores, inclusive de poetas populares ou inventores de boatos e lendas. A insistência na objetividade e sinceridade, por um lado, exprime a sincera preocupação com a verdade histórica, mas, por outro, também é uma estratégia de direcionamento da recepção, para aumentar a credibilidade. No fundo, Euclides é mais bem discípulo ou pelo menos parente intelectual de Heródoto, o protótipo do narrador viajante, segundo Walter Benjamin (Benjamin, 1969).

[19] José J. Veiga, ao contrário, desenvolve num romance tragicômico uma utopia antifanática, antinacionalista, justa e libertária, carnavalizando Os Sertões, narrando a fortuna de sobreviventes que teriam fugido em tempo do arraial sitiado, preferindo a vida a uma morte heróica mas inútil, inclusive o próprio Conselheiro, para fundar uma segunda Canudos, comunidade pacífica, bem-sucedida e modelar, aniquilada pelo golpe militar de 1964 (Veiga, 1989).

[20] Em pesquisa da revista Veja, publicada em 23/11/94, entre 15 conhecidos intelectuais brasileiros, convidados a indicar os livros mais representativos do país, Os Sertões ficou em primeiro lugar. Numa pesquisa parecida do jornal O Globo, publicada em 5/9/98, entre 10 outros intelectuais, Os Sertões saiu em segundo lugar. É interessante observar que desses 10 livros três têm o sertão como palco e quase como protagonista: Grande Sertão: Veredas (1° lugar), Os Sertões (2° lugar), Vidas Secas (6° lugar). Numa pesquisa da Folha de S. Paulo, realizada entre 10 intelectuais de todas as áreas, na maioria paulistas, publicada em 11/4/99, sobre os 10 melhores livros brasileiros de não-ficção, Os Sertões ficou em 3° lugar. Sobre a consagração do livro como clássico literário, como fonte de verdades históricas e sociológicas, como livro de culto, “bíblia da nacionalidade”, ver Abreu, 1998. Sobre o conceito de “lugar de memória”, ver Nora, 1984.

[21] Sommer, 1997. A autora não menciona Os Sertões que, no entanto, pode ser visto sob a mesma ótica apesar de não ser romance stricto sensu, como tão pouco seria Facundo. Costa Lima também chama Os Sertões de “livro fundador”, in: Lima, 1997: X. Há curiosa coincidência de datas entre dois eventos fundadores da República: a guerra de Canudos e a criação da Academia Brasileira de Letras, ambos de 1897. Foi graças ao seu livro sobre a guerra e, de certa forma, graças à própria guerra, que Euclides da Cunha se tornou escritor, ingressando imediatamente nessa mesma Academia, de modo que através dele os dois eventos fundadores estão intimamente ligados. Há outro escritor, quase esquecido hoje em dia, que também entrou na ABL devido à guerra de Canudos, o coronel e mais tarde general Emídio Dantas Barreto. A enorme produção literária, de um modo geral, sobre aquela guerra civil foi de suma importância para as letras nacionais.