Estudos Sociedade e Agricultura

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Angela Mendes de Almeida

Violência e cordialidade no Brasil


Estudos Sociedade e Agricultura, 9, outubro 1997: 127-136.

Resumo: (Violência e cordialidade no Brasil). O artigo relaciona a violência atual no Brasil com as raízes rurais da civilização brasileira, a partir de um conceito de Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Neste sentido a violência seria um elemento intrínseco de cordialidade que caracteriza o brasileiro. Tanto o favorecimento dos amigos quanto a violência contra os outros vêm do coração, fazem parte do homem cordial. Logo, a desigualdade entre os membros está inscrita na cultura nacional, em todos os hábitos corriqueiros que reencarnam a escravidão, atualizando a separação entre os “nossos” e os outros, antes os escravos, hoje os pobres e os marginais.

Palavra-chave: violência; cordialidade; escravidão; desigualdade.

Abstract: (Violence and cordiality in Brazil). This paper associates the current violence in Brazil with the rural roots of brazilian society, drawing on the concepts of Sérgio Buarque de Holanda in Raízes do Brasil. In this regard, violence is seen as an inherent element of the cordiality which distinguishes Brazilians. Both the favours to friends and the violence against others come from the heart; they compose  the cordial man. Therefore the inequality between citizens is inscribed in the national culture, in all the trivial practices that revive slavery and reproduce the separation between “us” and the “others”, formerly the slaves, now the poor and marginalized.

Key words: violence; cordiality; slavery; inequality.

Angela Mendes de Almeida é professora da UFRRJ/CPDA


A imprensa tem sido palco constante e ininterrupto de escândalos sensacionalistas. Os casos de corrupção mais freqüentes alternam-se com os de violência, uns e outros cobertos pelo manto da impunidade e acalentados pelo cobertor corrosivo da tolerância. O mês de abril deste ano foi exemplar com as telas televisivas e as manchetes da imprensa escrita invadidas por importantes casos de violência: duas cenas filmadas, nos dois estados mais importantes da Federação, de policiais espancando, humilhando e torturando comunidades de gente pobre; e um acontecimento chocante, o de jovens ricos e bem educados da capital federal, assassinando, por brincadeira e engano, alguém que julgavam um simples mendigo. É de se assinalar que o escândalo não surgiu dos fatos em si, corriqueiros, conhecidos de quase toda a população brasileira e tolerados, quando não aprovados, por boa parte dela. O que chocou foi a cobertura mediática. Que se faça violência, sim, quando ela é “inevitável”, como acha o mais recente Ministro da Justiça do atual governo. Mas que se faça discretamente. O paradoxal desse panorama da sociedade brasileira é que, na mesma semana em que vozes horrorizadas denunciavam esses espetáculos de violência, tanto vindos dos representantes do Estado, quanto de civis bem dotados econômica e socialmente, nessa mesma semana de invectivas horrorizadas sobre “a crueldade do brasileiro”, no programa da TV Globo Você Decide, a grande maioria dos telespectadores optaram por uma solução violente e ilegal: a senhora assaltada, ao invés de chamar a polícia, ou cristãmente perdoar, devia, ela própria, assassinar o menino assaltante.

Muito se tem discutido, desde então, sobre o caráter violento da sociedade brasileira: seriam estes casos, exceções num mar de rosas de gente cordata e pacífica, cordial com os seus semelhantes e amante da paz? Ou, ao contrário, a violência estaria entranhada na sociedade brasileira, para além dessa aparência de eterna alegria e cordialidade?

Há os que relacionam esse desabrochar de violência explícita ao momento neoliberal do henriquismo [1] . E é preciso concordar que o ajoelhar-se diante da atual evolução econômica mundial, que recebeu o pomposo e totalitário nome de “globalização”, ajoelhar este que implica em varrer para fora do pavimento nacional os “marginais”, os “inabsorvíveis”, e os “inempregáveis”, constitui um momento particularmente propício para a liberação dos instintos de violência. Tanto cinismo por parte do poder governamental assinala, para a sociedade, a estrutura “natural” da desigualdade. Assim como no Brasil Colônia e no Império havia os escravos que não eram nada, e como no Brasil República havia os pobres, hoje há os “inabsorvíveis”, destinados a vegetar nas bordas da nação. A desigualdade faz parte da ordem natural das coisas, mormente no Brasil, onde ela é, por assim dizer, mais desigual. É o que se deve depreender dessas falações do governo.

Sem no entanto descordar de que o momento henriquino seja propício ao desabrochar da violência explícita, queremos sugerir um modo de encarar esse processo que vá mais além, mais fundo no nosso passado colonial, que relacione cada momento da nossa atualidade com a totalidade do processo histórico da formação social brasileira.

Na verdade, o que se vê hoje em dia é a atualização de problemáticas apontadas há mais de 60 anos por clássicos da interpretação da identidade nacional e nos remete para o berço da nação, a colonização portuguesa do Brasil, baseada na empresa agroexportadora trabalhada por escravos. A escravidão amamentou e criou o Brasil e ainda não se disse tudo sobre as marcas indeléveis que ela deixou na mentalidade da sociedade.

Como já foi mostrado abundantemente, a grande propriedade agrária, funcionando como uma empresa comercial voltada para a exportação e trabalhada pela mão-de-obra escrava, foi uma opção dos colonizadores portugueses determinada pela situação do mercado mundial e pelas condições da população em Portugal.  Opção em grande parte determinada pela necessidade, constituiu solução de êxito para a colonização dos trópicos americanos. No entanto ela veio a condicionar poderosamente o sentido da evolução histórica do Brasil, estruturando a economia local e suas classes sociais [2] .

Antes de avançar para o tópico seguinte é interessante determo-nos nas conseqüências dessa opção. De um lado já foi dito que a colonização portuguesa foi movida pela mentalidade de um tipo de psicologia do aventureiro [3] . Desse tipo, dizia Sérgio Buarque de Holanda, que era movido pelo gosto da aventura, ignorando fronteiras e obstáculos. Audácia, imprevidência, instabilidade, indolência diante do fracasso de uma empreitada eram as suas características. Mais preocupado com o resultado do que com os meios, buscando a prosperidade fácil, seu ideal era colher o fruto sem plantar a árvore (a982: 13-15). Esse tipo de mentalidade colou-se como uma segunda natureza à solução agroexportadora baseada no trabalho escravo. Colher sem plantar, colher facilmente a riqueza através do esforço alheio, eis como começou a atividade produtiva no país.

Por outro lado, a opção pela grande propriedade agroexportadora eliminou o que Buarque de Holanda chamava de “civilização tipicamente agrícola”, ou seja, a pequena propriedade trabalhada essencialmente pela família, na qual os agricultores têm amor à terra natal e preocupam-se com o desenvolvimento das técnicas agrícolas. A civilização que se constituiu no Brasil – que o autor chama de “civilização de raízes rurais” (1982: 18-41) – baseada na grande propriedade agroexportadora, tinha como classes sociais pilares do ponto de vista econômico, de um lado os senhores rurais que não trabalhavam a terra, não a amavam porque ela lhe era dada facilmente e não se preocupavam com as condições tecnológicas de trabalho porque o braço escravo, farto, supria as suas necessidades; e de outro lado os escravos, que produziam a riqueza do país, mas que igualmente não podiam amar a terra, da qual não tinham a propriedade, nem a posse, ou preocupar-se com os avanços tecnológicos. Assim, a terra, base da riqueza produzida, não tinha valor para nenhuma das classes principais com ela envolvidas [4] .

Talvez nem fosse necessário salientar, dada a obviedade, as qualidades relativamente mais democráticas da pequena propriedade familiar em relação à grande propriedade agroexportadora. A solidariedade dos membros da família em torno das condições de trabalho e de produção, o plantio voltado para o consumo das próprias famílias, a vida girando em torno de uma comunidade de famílias de membros relativamente menos desiguais constitui a base para uma sociedade em que as desigualdades existentes não são radicalizadas. Se olharmos, por outro lado, para uma sociedade que se constitui sobre a base da grande propriedade agroexportadora trabalhada pelos escravos, veremos que uma radical diferença entre os homens – os livres e os escravos – inscreveu a desigualdade a ferro e fogo, como uma marca indelével na mentalidade nacional.

A desigualdade, portanto, esteve sempre presente na formação do Brasil. E esteve, em que pese os amolecimentos do nosso sistema escravista, que como dizia Gilberto Freyre, “fazia subir da senzala para o serviço mais íntimo e delicado dos senhores uma série de indivíduos: amas de criar, mucamas, irmãos de criação dos meninos brancos”. Na verdade a flexibilidade do sistema manifesta na “doçura” [5] do senhor pelos escravos negros, particularmente pelas escravas, expressão de que os preconceitos de cor não eram aqui tão arraigados como em outros sistemas escravistas modernos, iludiu e fez crer que o Brasil não era racista. Mais do que isso, essa ilusão serviu para mistificar o profundo sentimento de desigualdade que sempre separou os brasileiros. Não era tanto a cor, porém mais a condição social que separava radicalmente a população nacional. Antes livres e escravos, depois, ricos e pobres; hoje “integráveis” e “Inabsorvíveis”.

O sentimento de desigualdade nasceu, portanto, da escravidão. Independência, abolição da escravidão e República alteraram radicalmente este sentimento? Não, já que apenas o estatuto jurídico do escravo foi mudado. Nu fundo das mentes permaneceu entranhada uma forma de ver as pessoas da nação, uma mentalidade que nunca admitiu que cada homem ou mulher é um indivíduo com direitos iguais aos outros, mesmo sendo negro, pobre e mesmo sendo assaltante e assassino, ao menos antes de ser julgado e condenado. Nenhum desses eventos, que teoricamente fundaram a nação, conformaram um sentimento de solidariedade nacional que unisse todos os seus cidadãos, ao menos no respeito aos direitos humanos, acima das classes sociais, da raça e sobretudo da fortuna. A nação continuou cindida em pedaços, a linha divisória mais profunda separando os ricos dos pobres, hoje marginalizados, “inabsorvíveis” e “inempregáveis”.

A Revolução de 30 iniciou um processo de reversão desse profundo sentimento de desigualdade através de um projeto nacional de modernização. Nos anos 50 até o início da ditadura militar, em 64, esse projeto nacional ganhou cada vez mais colorações que visavam a construção de uma nação cimentada e solidária, com a extensão dos direitos sociais e sobretudo com um projeto de educação pública e gratuita para todos. Foram anos cheios de ideais, em que a modernização e o desenvolvimento econômico eram pensados como um bem para todos os cidadãos nacionais, que salvaria o país de suas mazelas coloniais.

Hoje, pelo contrário, admite-se sem escândalo, conformadamente, com candura mesmo, como uma fatalidade da natureza, que muitos não conseguirão acompanhar esta nova modernização, feita para marginalizar. Vive-se, no Brasil henriquino, sem ideais, a não ser o da “modernização” do aparato do Estado, considerada como uma panacéia, que será aliás obtida pelo passe de mágica do “enxugamento de gorduras”, isto é, pelo corte do número de funcionários e dos zeros de seus salários. Com o aparato de Estado “ágil” o governo poderá oferecer ao capital internacional um país saneado. A miséria re a desigualdade social, a violência, a corrupção e a impunidade, tudo isso são mazelas herdadas de outros governos e contra as quais nada se pode fazer de fundamental, senão geri-las. E geri-las de modo a que sobretudo não caiam na boca da imprensa internacional e das malfazejas ongs.

Dessa forma é compreensível que recentemente Noam Chomsky, em entrevista na TV Cultura, tenha declarado que o escândalo do Brasil não estava na pobreza e sim na riqueza. Os ricos, a classe média e o governo convivem com a miséria e a desigualdade do país como se fosse uma fatalidade natural, um cataclismo contra o qual a mão humana nada pode. Ver crianças dormindo na rua pode despertar nojo, medo ou piedade, mas não provocará o sentimento comum nos que têm solidariedade nacional e acreditam nos direitos humanos, ou seja, a vergonha de si mesmo.

O golpe militar de 1964, é preciso dizer, reinaugurou esta atual era de cinismo e hipocrisia. Começando pelo título que os golpistas deram ao seu movimento o de “revolução”. Reiniciou-se a era das palavras trocadas, dos códigos cifrados. Com o fim dos governos militares o país, no entanto, não se curou ainda desse cinismo, bem pelo contrário, as palavras continuam sendo ditas de forma inconseqüente e incoerente com seu sentido gramatical.Os ideais também continuam em baixa.

Tem-se falado, a propósito da indiferença dos brasileiros face aos problemas da pobreza, da violência e da corrupção, de um egoísmo, de um individualismo. Uma recente pesquisa de jornal verificou que os brasileiros sentem-se individualmente felizes, apesar de todas as mazelas que atingem grande parte da população [6] . Donde proviria esse egoísmo, ou esse individualismo?

Aqui, ainda, a leitura de nossos clássicos que pensaram a identidade nacional a partir da totalidade histórica da nação, ajuda a equacionar as questões. Justamente a existência da grande propriedade agroexportadora baseada no trabalho escravo que revitalizava o princípio da desigualdade, tornava vãs, durante a colônia, as tentativas de associação cooperativa de iguais para empreendimentos empresariais. A propósito do peso que a empresa baseada na desigualdade tinha sobre essas iniciativas solidárias entre iguais, sem estabilidade ou capacidade de resistência, Buarque de Holanda lembra uma distinção, emprestada dos antropólogos, entre, de um lado, cooperação e prestância, e de outro, entre competição e rivalidade. Cooperação e competição implicam em comportamentos orientados por um objetivo material comum, que unem ou desunem indivíduos que se sentem iguais. Já a prestância e a rivalidade geram atitudes que, deixando em segundo plano o objetivo material, visam primordialmente causar benefício ou dano a uma pessoa. Ou seja, ao invés de indivíduos relacionando-se enquanto iguais, o que prevalece são os vínculos de pessoa a pessoa, unindo famílias e facções, rivais de outras tantas famílias e facções, sendo que o seu interior é constituído de uma estrutura hierárquica de pessoas desiguais (1982: 30). Desigualdade entre senhores e escravos, entre ricos e pobres, entre elites e massas, e além disso, desigualdade entre grupos das elites e no interior de cada grupo, enfim, hierarquia. Assim, na formação histórica do Brasil, a relação não se dava entre indivíduos, que se sentiam iguais, senão entre famílias, facções de pessoas, sempre enfeudadas a outras pessoas, hierarquicamente organizadas.

Eis porque indiferença, hoje, de parte da população pela miséria da outra parte pode ser chamada, com mais propriedade, de egoísmo, e não de individualismo. Está contida nessa indiferença, como seu componente intrínseco, o sentimento de que aquele que sofre na miséria não faz parte da mesma comunidade nacional que aquele que o olha com desdém.

O sentimento de igualdade entre os homens na esfera de um Estado nacional é um poderoso fermento que une a população, para além das divergências políticas e das diferenças sociais. No limiar das revoluções burguesas na Europa e da Guerra da Independência americana, o que se colocava para os revolucionários era justamente isso. A igualdade e a liberdade apregoadas tinham por trás uma ficção de efeitos duradouros: a idéia de que o indivíduo nasce só e igual aos outros, e a de que a submissão a um poder político só se dá depois, através de um contrato social. E esse contrato social é realizado entre indivíduos, entre iguais. Tratava-se de terminar com as dependências das pessoas subalternas a outras pessoas hierarquicamente superiores na escala social, o poder organizando-se em relação aos indivíduos iguais perante a lei, e não mais em relação às pessoas no topo de facções hierarquizadas (Dumont, 1985). É claro que tratou-se sempre de uma igualdade ideal entre indivíduos. Mas essa idealidade tinha e tem seu papel ideológico profundo nas sociedades de indivíduos: os homens sentem-se iguais perante a lei e as instituições jurídicas dão conta disso. Da mesma forma pela qual os homens interiorizam as relações mercantis, as leis do mercado que produzem a desigualdade econômica, considerando-se naturais, eles também interiorizam a igualdade, que torna-se assim uma força material (Mandel, 1974: 10).

Porque predominaram, na formação histórica do Brasil, as relações entre famílias e facções rivais, Buarque de Holanda irá dizer que toda a vida social da Colônia foi permeada por “sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família” (1982: 49-50). É o peso do senhor rural, chefe da empresa agroexportadora, proprietário e pater familias, senhor absoluto dos membros da família biológica e dos escravos da senzala e da casa grande, compadre dos agregados que dependem de seu favor para sobreviver da terra ou de pequenos ofícios [7] . Esta característica reforça a marca da desigualdade no seio dessa família, bem como na sociedade em geral [8] .

É por isso que, mais adiante Buarque de Holanda define o brasileiro como um “homem cordial” (1982: 107-109). Definição que deu margem a alguns mal-entendidos, ela expressa, entretanto, se compreendida com perspicácia, o essencial do brasileiro, encaixando a sua violência. Senão vejamos: o homem cordial é aquele que age com o coração, sede das paixões e dos sentimentos bons e ruins, cujos comportamentos visam, não o objetivo material, mas sim o dano ou o benefício a uma determinada pessoa. O homem cordial é o contrário do homem polido, que foi treinado no ritualismo da civilidade cujas paixões foram civilizadas no limiar da passagem do Antigo Regime para modernidade burguesa [9] . E é isso que não aconteceu, de modo geral, na vida social brasileira.

Dessa forma, o homem brasileiro pode ser cordial, e por isso mesmo violento. Violento porque faz prevalecer seus sentimentos sobre a aplicação pública da lei. E cordato com a violência, desde que ela não atinja sua família e seus amigos. A violência, contra outros que não os seus, pode ser tolerada porque está inscrita no comportamento social nacional, que é apaixonado. Nada disso o impede de ser generoso com os seus e sorridente para a vida.

Mesmo porque, o que é a lei, o que é a justiça? A lei é para os outros, para os que não são da sua família, ou das famílias das suas relações. No tempo da Primeira República dizia-se abertamente: “aos amigos se faz justiça, aos inimigos se aplica a lei” [10] . A frase, aparentemente paradoxal, era uma senha para as elites. Mas o paradoxo gramatical pode ser muito bem explicado: a lei, dura, só valia para os inimigos, para as famílias e facções rivais, e sobretudo para os pobres, “sem-família”. Portanto não era para ser cumprida por todos, que, óbvio, não eram iguais. Daí o gosto reforçado por toda sorte de casuísmos, por leis elásticas e adaptáveis. Já a justiça é magnânima: ela não é cega, “sabe com que está falando” [11] , mesmo vendada enxerga muito bem quem são os “amigos”do poder, quem são os outros, inclusive a massa ignara. Por isso a justiça é condescendente com os crimes, frutos de paixão ou ódio vindo do fundo do coração e considera que o transtorno pelo malfeito, a prisão e o julgamento, já são suficiente castigo para alguém com “bons antecedentes”, mormente com diploma universitário, que por isso mesmo tem direito a essa espantosa e extraordinária instituição chamada “prisão especial”.

Desse modo combinam-se uma extrema, porém atilada tolerância para com o crime, aprovando a crueldade ilegal, uma cordialidade sorridente e a irrupção da violência gratuita. Em tudo isso, tanto no aspecto generoso da cordialidade, quanto no cruel, está inscrito o profundo sentimento de desigualdade que separa hierarquicamente as pessoas da nação.

 

Referências bibliográficas

BUARQUE DE HOLANDA, Sergio. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1982.

DA MATTA, Roberto. Você sabe com quem está falando? Um ensaio sobre a distinção entre indivíduo e pessoa no Brasil. In: Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

DUMONT, Louis. O individualismo – Uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.

ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte. Lisboa: Estampa, 1987.

ELIAS, Norbert. O processo civilizador – Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

FREIRE COSTA, Jurandir. A inocente face do terror, Jornal do Brasil (22/4/97).

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Schimidt, 1936.

JANINE RIBEIRO, Renato. A busca suicida do bem pessoal, Folha de S. Paulo (25/5/97).

MANDEL, Ernest. Classes sociales et crise politique en Amérique Latine, Critiques de l’Économie Politique, Paris, n. 16/17, 1974.

MENDES DE ALMEIDA, Angela. Cidadania feminina, família patriarcal e violência doméstica, Presença, Rio de Janeiro, n. 8, 1986.

MENDES DE ALMEIDA, Angela. Notas de leitura sobre uma visão histórica do campo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 40, 1996.

NUNES LEAL, Victor. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Omega, 1975.

PRADO JR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1976.

 

Notas

[1] E pode se citar, em especial, o artigo de Jurandir Freire Costa (1997).

[2] Ver Caio Prado Jr. (1976: 19-32), obra que serviu de base para uma ampla gama de outros trabalhos históricos.

[3] Como de resto, todos os colonizadores americanos, exceção feita às famílias inteiras, que perseguidas por motivos religiosos, buscaram refúgio nas colônias de Maryland, Virginia e Carolina, nos Estados Unidos. Esta colonização teria sido movida pelo tipo psicológico do “trabalhador”. 

[4] Sobre os desdobramentos teóricos dessa distinção, ver Angela Mendes de Almeida (1996: 13-29).

[5] A expressão é de Freyre (1936: 262).

[6] Ver resultados da pesquisa em artigo de Renato Janine Ribeiro (1997).

[7] É por isso que Buarque de Holanda reforça tratar-se de uma família cujo modelo ancestral é o da Antiguidade, quando a origem da palavra - famulus, ou seja, escravo - indicava o seu caráter.

[8] E além disso incentiva a violência familiar, sobretudo contra mulher. Ver, a esse respeito, Angela Mendes de Almeida (1986: 108-113).

[9] Ver, a esse respeito, Norbert Elias (1987 e 1990).

[10] Victor Nunes Leal desenvolveu esta questão, sobretudo no 1° capítulo (1975).

[11] Ver Roberto Da Malta (1983), que problematizou teoricamente esta frase, tão banal entre nós.