Estudos Sociedade e Agricultura

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Benício Viero Schmith, Danilo Nolasco Marinho & Sueli L. Couto Rosa

A participação das universidades na reforma agrária


Estudos Sociedade e Agricultura, 8, abril 1997: 157-161.


O contexto do Censo e da Pesquisa Amostral

O Censo e a Pesquisa Amostral nos Projetos de Reforma Agrária originaram-se de uma demanda do Incra/Ministério Extraordinário de Política Fundiária em agosto de 1996, tendo em vista a necessidade de identificar todas as famílias assentadas em áreas de projetos de reforma agrária do Governo Federal, bem como traçar o perfil socioeconômico das mesmas.

A controvérsia sobre o número efetivo de famílias assentadas sempre representou um debate vazio devido a ausência de informações objetivas e atualizadas. Governo e organizações/movimentos sociais vinham apresentando dados discrepantes sobre o assunto, principalmente sobre as famílias efetivamente assentadas e suas condições reais de vida. Além disso, o Incra iden-tificou a necessidade de atualizar seu Cadastro de famílias assentadas, que se apresentava desatualizado ou inexistente em muitos Estados. Em função de premência dos dados e da agilidade exigida percebeu-se que o quadro de técnicos do Incra se colocava insuficiente para atender tal demanda.

O envolvimento das universidades brasileiras ocorreu a partir de um debate já iniciado e coordenado pelo Fórum de Reforma Agrária, ocorrido na UnB nos meses de junho e julho de 1996. As universidades representadas neste Fórum apresentaram seu interesse em participar mais ativamente e se dispuseram a atender as demandas do Ministério Extraordinário de Políticas Fundiárias, principalmente no que se referia a pesquisas. Deste modo, o envolvimento das universidades ao projeto do Censo e Pesquisa Amostral deu-se através do Crub (Conselho dos Reitores das Universidades Brasileiras), que colocaram professores e estudantes à disposição do projeto. As universidades brasileiras, ao defender sua participação, destacavam a importância de envolver estudantes e professores nas atividades mais práticas e realistas do cotidiano do processo de reforma agrária, apostando no efeito multiplicador desta experiência tanto em termos de formação de uma cultura a respeito do assunto como no fortalecimento do debate teórico sobre a reforma agrária.*A Universidade de Brasília foi convidada pelo Incra para coordenar o projeto, assumindo a tarefa de administrar os recursos, definir a metodologia em conjunto com o Incra, sugerir nomes de supervisores estaduais a partir de um perfil de pesquisador/professor em questão agrária e possibilitar todas as condições técnicas e materiais necessárias ao desenvolvimento do projeto. Foram, pois, envolvidas 29 universidades entre federais, estaduais e comunitárias, 41 professores/supervisores e 1.800 estudantes.

A metodologia aplicada

A metodologia adotada para o projeto foi basicamente a metodologia de Censo, ou seja, contagem simples do beneficiário da reforma agrária em projetos de assentamento do Incra, através de informações cadastrais. O objetivo do Incra era atualizar seu cadastro, identificar novas famílias, levantar informações sumárias sobre estado civil, sexo, nível de escolaridade, localização da família dentro do PA, tempo de assentamento, composição da família, formas de exploração do lote. Para tanto, o Censo deveria cobrir todos os Projetos de Assentamento criados pelo Incra desde 1964, totalizando 1.647 projetos de assentamento-PAs em todos os estados do país.

Aproveitando que todos os PAs seriam visitados, verificou-se que seria razoável realizar uma pesquisa de caráter amostral, com o objetivo de traçar um perfil mínimo das condições socioeconômicas do beneficiário da reforma agrária. Esta pesquisa amostral correspondeu a um subconjunto representativo do universo de famílias encontradas em todos PAs, sendo entrevistadas cerca de 9.000 famílias. Foram também realizadas amostras junto a todas as associações e cooperativas dos assentamentos. Considerando que a realidade enfocada é bastante desconhecida nos seus detalhes, o estudo teve um caráter exploratório, buscando fazer inferências em vários níveis e agregações de informações (por estado, por região, tipos de assentamento, histórico e tamanho dos PAs). A estratégia adotada para a pesquisa amostral foi a seguinte: a) a unidade para a composição das amostras foi a família do assentado; b) formulação dos grupos selecionados foi mediante uma estratificação, sendo considerado cada PA um estrato; c) todos os projetos de assentamento foram incluídos na composição da amostra; d) a quantidade de famílias componentes de cada estrato foram definidas mediante simulações, com base nas estimativas disponíveis no Incra.

A pesquisa socioeconômica ocorreu simultaneamente ao Censo. As informações coletadas pelos entrevistadores se ativeram exclusivamente às respostas dos beneficiários localizados, colhidas em um formulário próprio, que foi construído a partir de um instrumento de coleta de informações socioeconômicas do Sipra (Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária) do Incra. Com isto, de antemão já se tinha conhecimento dos limites de aprofundamento das análises a partir das informações solicitadas, que não previam cruzamentos maiores de variáveis como tamanho da parcela e a área produzida, infra-estrutura disponível e escoamento da produção, custo de produção etc. Portanto, o resultado passível de ser atingido pela pesquisa amostral fica restrito a uma descrição das condições gerais de vida das famílias, incluindo algumas informações sobre renda e produção agropecuária.

Dificuldades e limitações

A Coordenação Nacional avaliou que, além dos limites já destacados acima, outros fatores interferiram no maior aproveitamento da pesquisa. Para atender ao cronograma –excessivamente exíguo– estipulado pelo Incra (90 dias), o prazo de treinamento dos coordenadores de equipe e entrevistadores pode ter sido insuficiente, causando perdas nas informações no momento de preenchimento do formulário. Da mesma forma, o tempo para o levantamento de dados em campo, principalmente, nas regiões de difícil acesso, foi muito apertado, dificultando atingir todas as famílias dos PAs ou impossibilitando o retorno do entrevistador para completar informações. Outro fator entendido como complicador foi o modelo do formulário em formato digital, que exigiu muito mais horas para ser preenchido do que o trabalho de campo propriamente dito, sem contar que, em função do cansaço, muitos estudantes deixaram de preencher parte das chamadas “bolinhas”.

Apesar disto tudo, o Censo e a pesquisa amostral atingiram em torno de 85% das famílias efetivamente assentadas, variando este percentual de uma região para outra. Cabe ressaltar, em relação ao Censo, que sua metodologia implica em um retrato instantâneo das famílias assentadas, sendo impossível alcançar 100%, já que acontecem viagens e ausências das famílias por motivos variados. Por exemplo, nos casos de projetos novos, muitos não estavam demarcados e as famílias ainda não haviam sido totalmente assentadas.

Alguns resultados

Os dados preliminares do Censo e da amostra trazem informações inéditas sobre determinadas características da reforma agrária no Brasil. Por exemplo, os assentados são, na sua maioria, provenientes do seu próprio estado e até 46% estão assentados no seu município de origem. Cerca de 44% eram sem terra, ou seja, trabalhavam como parceiros, colonos, arrendatários, foreiros, acampados e ocupantes. Mas é preciso destacar que estes dados ainda representam pouco em relação à quantidade de informações que ainda estão sendo processadas e analisadas. Na sua maioria, os dados apenas confirmam expectativas e estimativas sobre as condições dos PAs e das famílias assentadas, como a heterogeneidade a nível nacional e mesmo estadual. A região Sul é que apresenta melhores condições de vida e de produção dos assentados em comparação com as demais. Já o Nordeste apresenta maiores dificuldades quanto a incorporação de tecnologia mínima e acesso à saúde e educação, enquanto a região Norte se destaca pelo pouco acesso à infra-estrutura de energia elétrica, de organização associativa, de acesso à assistência técnica, entre outras. Deve-se considerar, porém, que estes resultados preliminares representam valores agregados de informações e não seu peso efetivo. Por exemplo, mesmo nas regiões Norte e Nordeste existem assentamentos com condições de vida e produção bem acima da média destas regiões. Em síntese, a análise dos assentamentos passa pela consideração de sua complexidade, a partir de fatores culturais regionais, climáticos e de qualidade do solo, história da ocupação e da luta pela terra, vinculação com movimentos sociais e outras formas de organização social, maior ou menor presença do Incra, apoio de outras instituições governamentais e não-gover-namentais entre outros.

Quanto aos dados apurados, identificou-se que nos PAs mais antigos houve uma grande evasão e grande parte das famílias não foram localizadas (média de 35%), principalmente nos Estados da região Norte e Centro-oeste. Entre os projetos mais novos identificou-se também ausência de famílias por conta do lote não ter sido demarcado, em função da precariedade das estradas e demais condições locais (cerca de 3%). A região Sul e Sudeste, por sua vez, apresentaram índices próximos ou mesmo superiores ao do Incra, o que significa que existem muitos agregados dentro dos lotes e uma grande mobilização pela reforma agrária nestas regiões. Confirma também a importância de condições mínimas de infra-estrutura para que se viabilize os projetos de assentamento e sua sustentabilidade. O Censo ainda revelou alguns dados surpreendentes como o grande número de famílias localizadas no estado do Maranhão, o que o aponta como o maior Estado em número de famílias assentadas até o momento. Na média, contudo, os Estados não atingem os dados previstos pelo Incra, com exceção das famílias assentadas nos últimos dois anos. Informações qualitativas extraformulário foram coletadas através dos supervisores e entrevistadores que destacam, em primeiro lugar, a reclamação dos assentados quanto a ausência do Incra nos PAs, principalmente aqueles em regiões mais longínquas e de difícil acesso. Por outro lado, identificou-se que muitas instituições não-governamentais atuam ativamente junto aos assentados dando apoio em atendimento de saúde, educação, assistência técnica e na mobilização por melhores condições de vida. Destacam-se entre elas a CPT (Comissão Pastoral da Terra), sindicatos dos trabalhadores rurais, as igrejas católicas e pentecostais e movimentos sociais organizados. Em alguns assentamentos verificou-se o apoio de prefeitos e vereadores.

Em conclusão, considera-se que o Censo e a Pesquisa Amostral dos projetos de reforma agrária do Incra puderam trazer para o conhecimento da sociedade brasileira dados ainda desconhecidos sobre uma categoria social normalmente excluída, embora venha ganhando espaços e visibilidade na mídia e no debate político nacional. Em breve estarão a disposição, para toda a sociedade, informações mais completas que permitirão o desenvolvimento de novas e mais aprofundadas pesquisas sobre os assentamentos de reforma agrária do Brasil e que poderão contribuir para se redefinir as ações governamentais e mesmo da sociedade civil em relação ao tema. Quanto a participação das universidades percebeu-se claramente que a temática já foi incluída no item de preocupações e de futuros debates e pesquisas acadêmicos. Os estudantes manifestaram entusiasmo e disposição em dar continuidade aos esforços de melhor conhecer os projetos de reforma agrária e com eles interagir. Se estavam distantes da problemática, hoje se mostram interessados em ações concretas de intervenção para melhorar as condições de vida e de produção desta camada da população brasileira.

* Coordenadores nacionais do Censo e Pesquisa Amostral nos Projetos de Reforma Agrária do Incra-1996. Miquelângelo Trigueiro também participou da Coordenação Nacional.