Delma Pessanha Neves
Agricultura familiar e mercado de trabalho
Estudos Sociedade e Agricultura, 8, abril 1997: 7-24.
Resumo: (Agricultura familiar e mercado de trabalho). Os modos de inserção de agricultores em múltiplos circuitos de mercado constituem importante objeto de análise de sua prática social. O artigo põe em destaque os arranjos familiares destinados à administração de modos de afiliação, em especial o que se baseia na circulação mercantil da força de trabalho.
Palavras-chave: agricultura familiar; mercado de trabalho; arranjos familiares.
Abstract: (Famiy Farming and the Labour Market). The different ways in which farmers are integrated into multiple market circuits constitutes an important optic from which to analyse their social practices. This article highlights family arrangements aimed at administering different modes of affiliation, particularly those based on the market circulation of labour.
Key words: family farming; labour market; family arrangements.
Delma Pessanha Neves é professora participante do PPGACP-UFF.
Introdução
Numa perspectiva esquemática mas compatível com uma introdução ao tema deste artigo, atribuo a seguinte diferenciação às perspectivas e às temáticas privilegiadas no estudo das relações de mercado constituintes da atividade agropecuária.1 Uma boa parte dos estudiosos as secundariza, para destacar a articulação entre relações familiares e relações de produção como unidade de análise. Nesta valorização da produção social estrito senso, as relações de mercado vêm geralmente à tona para qualificar os níveis de integração ou o nível de correlação entre o autoconsumo e o caráter mercantil da produção. Outra parte as qualifica como fundamentais ao entendimento da especificidade da posição dos produtores e dos sistemas econômicos subjacentes a tal atividade produtiva. No caso do camponês, por exemplo, a relação deste produtor com o mercado inaugura sua existência social ou o distingue de outros tipos como os agricultores primitivos ou os farmers americanos (cf. Wolf, 1970). As redes de mercado são então expressivas dos modos de dominação ou de integração a que os produtores estão submetidos. Elas refletem as condições de intervenção do Estado e os níveis em que se objetiva a apropriação do trabalho excedente pela sociedade.
O reconhecimento de uma vinculação crescente dos agricultores com o mercado –a partir da incorporação de condições técnicas ditadas pela competitividade da racionalidade econômica capitalista– reafirma a obrigatoriedade da análise das formas de integração mercantil. Ao mesmo tempo, denuncia os limites da opção que privilegia o estudo da produção social estrito senso, geralmente a unidade familiar de produção. Contudo, boa parte de tais estudos se restringe aos diversos modos de objetivação do mercado de produtos e desconsidera as formas de objetivação do consumo improdutivo. Ressalta o papel dos produtores como negociantes autônomos, especialmente sua participação em feiras, ou como integrados, pela submissão à agroindústria ou à cooperativa. [1]
Esta última modalidade de comercialização tem sido bastante contemplada pelas pesquisas, em face dos efeitos do caráter formal do contrato de compra e venda e dos meios explícitos de apropriação de trabalho excedente. Neste domínio de análise, os estudiosos se encontram em termos da adoção de uma postura crítica diante dos modos de dominação que aí se incrustam ou têm privilegiado a ética da transferência de excedentes na sociedade. Por isso são unânimes em destacar os excessos de apropriação de parte do rendimento agrícola, a intensificação de processos de pauperização e de descapitalização. Sob essa mesma ética, diversos pesquisadores têm mais recentemente estudado a participação dos produtores no mercado de crédito financeiro, através do acesso ao crédito bancário ou assegurado pelo endividamento antecipado junto às agroindústrias ou às empresas integradoras.
As relações que os agricultores mantêm com o mercado também foram analisadas do ponto de vista da compra e da venda da força de trabalho, mas quase sempre para demonstrar modos de transição de formas familiares de produção diante da penetração do sistema capitalista. Tanto na situação de compra como na de venda, as análises se remetem de imediato para as situações de mudança social, daí derivando uma série de estudos sobre a diferenciação social ou decomposição social do campesinato. Em decorrência, diversos trabalhos foram elaborados para demonstrar a diferença entre trabalho familiar e trabalho assalariado ou partiram desta diferença para considerar modos diversos de produzir. [2]
Ultimamente, diante da contraposição empírica às tendências acima expostas, as relações dos produtores agrícolas com o mercado de trabalho industrial ou urbano têm estimulado várias pesquisas e ensaios teóricos. Pela força da presença numérica desta articulação produtiva, quase todos os autores tendem a apontar esta associação de modos de inserção econômica do produtor como expressão de uma nova forma de produzir, mais adequada às condições de interdependência dos diversos setores da economia. Aturdidos pela imensa possibilidade de associação e inebriados pelo caráter cômodo (mas também incômodo) das classificações, que consideram a parte pelo todo, isto é, as formas de inserção dos membros produtivos como critério classificador de uma forma especial de produzir na agricultura, os autores entram em acordo sobre a polaridade agricultor full time e agricultor part-time. [3]
O recorrente predomínio de uma razão classificatória quando se estudam as relações sociais subjacentes às atividades agropecuárias corresponde à necessidade de diminuir a enorme diversidade e diferenciação presentes neste campo, investimento sem o qual o estudioso corre o risco de se perder na descrição de infindáveis casos. Entretanto, como classificar é dar ordem e dar ordem é arbitrar ou eleger uma visão predominante, opção a partir da qual a perspectiva analítica torna-se prisioneira, todas as classificações são vulneráveis porque padecem desse a priori. A adoção de esquemas de classificação, assumindo os riscos que lhes são inerentes, deve levar em conta a relatividade dos termos, principalmente quando eles adquirem o caráter de dicotomia, apreensão quase sempre inocente porque valorativa da aparência. Mesmo quando eles adotam uma gradação, o que está freqüentemente em jogo são os níveis de afastamento de dois pólos. [4]
Neste artigo, pretendo contribuir para a compreensão das relações que os agricultores vêm estabelecendo com o mercado de trabalho e de bens e serviços. Considero alguns dos efeitos e pressuposições desta participação sob diversas posições –produtor, trabalhador e consumidor– diante das formas de operacionalização da unidade familiar e da unidade de produção. Valho-me para tanto de duas situações especiais. Numa delas a constituição do mercado de trabalho aparece complexificada, isto é, bastante desenvolvida tanto em fontes de compra como em fontes de venda da força de trabalho. Noutra, aparece incipiente. Por circunstâncias diversas, nos dois casos a contratação de força de trabalho para a atividade agrícola corresponde à inserção dos membros da família detentora da unidade de produção em outros setores produtivos. Portanto, ocorre uma circulação de uso da força de trabalho para os diversos setores da economia, fenômeno que recentemente os estudiosos têm tratado sob a temática da pluriatividade ou do agricultor part-time. Nos dois casos ainda, os investimentos básicos à integração no mercado de bens e serviços são recorrentes, correspondendo a projetos diversos de inserção dos membros da família na sociedade e de redefinição do papel da atividade agropecuária. Através dos dois casos, pretendo demonstrar que a manutenção do vínculo dos membros produtivos da família na atividade agrícola corresponde a um aumento de custo da produção e reduz as opções de integração em outras redes de relações sociais. Por isso, diversificar as formas de integração tem se constituído em meta orientadora dos esforços dos membros da família e da avaliação positiva da administração das trajetórias possíveis.
Dissociando a análise da unidade familiar e da unidade de produção, em face de cada uma comportar relações tão mais diversas quanto maiores forem os esforços de diversificação das formas de inserção na atividade produtiva, [5] quero enfatizar a importância que o projeto familiar assume nessas estratégias de integração social. Esta opção analítica pode ser mais frutífera ao entendimento da pluriatividade do chefe ou de alguns membros da família, porque a dissociação dos esforços produtivos é compreendida no contexto de sua possibilidade e de sua constituição. Lembrando que a pluriatividade não é fenômeno recente, também o faço quanto ao reducionismo de sua definição isolada como objeto de estudo. As relações em jogo nesta forma de participação produtiva são secundárias diante dos múltiplos aspectos que orientam a prática do agricultor e dos vínculos que o integram a redes e domínios diversos. Privilegiá-la tão-somente é deslocar a importância das reordenações apenas para fatores externos e para a suposta constituição de novas categorias de agricultores. A expansão da pluriatividade depende de contextos específicos, mormente naqueles em que haja convergência entre os modos de organização do mercado de trabalho e as alternativas de acumulação de princípios de afiliação dos membros produtivos da unidade familiar.
A produção social e as configurações de fatores e alternativas
Primeiro caso: a reordenação do projeto familiar frente à presença de um mercado de trabalho complexificado
A interdependência entre a cultura da cana e a atividade industrial é inerente à transformação dessa matéria-prima em açúcar, melaço, rapadura, álcool, etc. Por isso, esta produção comumente tende a associar agricultores autônomos que vendem a cana-de-açúcar e unidades agroindustriais ou usinas, que produzem e beneficiem a matéria-prima. Esta forma de relação entre agricultura e indústria foi ampliada a partir da década de 50, em virtude da absorção de caminhões e tratores (e seus complementos: arados, carretas, plantadeiras) no processo de trabalho, e intensificada a partir da década de 70, por ocasião da implantação de políticas agrícolas que visavam o aumento da produção industrial do açúcar –Programa de Racionalização da Agroindústria Açucareira/IAA (1971/73)– e do álcool – Proálcool, Programa Nacional do Álcool (1975). O uso mais intenso de instrumentos mecanizados, ampliados pela incorporação de embarcadeiras, e a aplicação de insumos químicos possibilitaram o aumento da produtividade e a diminuição do tempo de trabalho (Ver Neves, 1979, 1986, 1988; Numberg, 1985).
Na Região Açucareira de Campos, [6] o uso intensivo de instrumentos mecanizados e a opção pela especialização no cultivo da cana diminuíram o tempo de trabalho nas unidades de produção e exigiram a alocação de trabalhadores temporários, a elas externos. O trabalho direto, reservado aos chefes dessas unidades, foi minimizado, restringindo-se praticamente à administração para a maioria deles e também ao trato com o gado, para os produtores mais jovens. Os produtores, conforme diferenciação social interna, valem-se de administradores ou empreiteiros [7] para a tarefa de organização e supervisão do trabalho ou realizam eles mesmos essa tarefa.
Os filhos dos produtores que antes se voltavam para o trabalho na cultura da cana, passaram a se dedicar a outras atividades produtivas porque as unidades não demandam trabalho contínuo e não alcançam um rendimento que os absorvam. Os que puderam permanecer vinculados à atividade agrícola, destinados à sucessão do patrimônio, o fizeram mediante a articulação entre o uso produtivo da terra e a prestação de serviços, através dos instrumentos mecanizados, para outras unidades. A maior parte dos sucessores, contudo, passou a associar a atividade agrícola com outra forma de vinculação produtiva, geralmente sob assalariamento.
O mercado de trabalho para a produção de cana, por força das mudanças acima expostas, reordenou-se pela constituição de equipes especializadas de prestação de serviços. Esta forma de organização é mais adequada às alterações das demandas, restritas em tempo para cada unidade de produção. Associando-se a uma equipe, os trabalhadores podem controlar o tempo de absorção pelo mercado de trabalho, atendendo a inúmeras unidades agrícolas no decorrer do ciclo produtivo.
Tais equipes constituem-se por formas diversas de organização. Algumas, a partir da aglutinação das unidades de cooperação do trabalho familiar, associando a mão-de-obra disponível em cada família (geralmente nuclear) de produtor. Aglutinando-se a partir de laços de solidariedade e interdependência, propiciam a inserção das unidades produtivas numa especial divisão social de trabalho. Apresentam-se como formas de rearticulação das relações de trabalho e de reordenação dos grupos de entreajuda, expressando a emergência de um modo especializado de produzir pela aglutinação de grupos domésticos que têm enfraquecido o caráter familiar da produção. Asseguram a reprodução das unidades familiares de produção frente às novas condições sociais de produção. São lideradas pelo tratorista, geralmente o proprietário do maior volume de instrumentos mecanizados que cada uma delas pode contar e atendem apenas às demandas dos seus participantes.
Outras associam trabalhadores rurais livres, cuja oferta de trabalho só pode ocorrer a partir da prestação de serviços mecanizados. Constituem-se em torno do tratorista, condutor e proprietário dos equipamentos mecanizados, profissional especializado e contratador dos serviços. Circulam por várias unidades de produção nos diversos momentos do ciclo produtivo – plantio, limpas, corte e embarque. Neste caso, o tratorista se institui em empresário, “técnico” local, supervisor dos trabalhadores durante todo o processo produtivo e administrador do pagamento destes serviços pela usina.
Outras, por fim, são organizadas pela administração da usina, para a realização das tarefas em suas fazendas e junto a unidades de produtores de cana que contratam este serviço. [8] Os trabalhadores são contratados durante o período de corte e embarque das canas.
Associando-se a esta forma de organização dos mercados de trabalho e de serviços, a administração da usina também reconhece os líderes das turmas de trabalho organizadas por produtores ou empreiteiros. Este reconhecimento se dá pela utilização destas equipes nas atividades de colheita mas também pela incorporação do cálculo do pagamento dos serviços. Os produtores de cana vão encaminhando para a usina a quantidade de cana colhida a cada dia. Na balança da usina, o volume recebido é anotado na ficha de cada um deles. Ao final de cada semana de colheita, a administração da usina contabiliza o volume total da entrega e faz o cálculo correspondente ao pagamento do serviço do tratorista e dos cortadores de cana, adiantando esta parte de pagamento. Deste modo, permite que os produtores que utilizam este tipo de serviço não se vejam obrigados a antecipar recurso financeiro para o pagamento do custo de parte do processo produtivo.
Por toda esta forma de organização, se o produtor de cana decidir pela manutenção da especialização na cultura de cana, a ele cabe a gestão dos serviços e trabalhos necessários pela contratação de equipes especializadas no plantio, limpas, corte e carreto da cana. Ele pode liberar toda a mão-de-obra outrora disponível ou todos os membros produtivos da família e permanecer na administração da unidade de produção.
O desenvolvimento desse mercado de trabalho especializado abriu alternativas para investimentos em novas carreiras para os filhos dos produtores de cana, se incorporados a outras atividades produtivas; ou modos diversos de obtenção do rendimento, se absorvidos na administração do patrimônio. Neste caso o produtor se viabiliza pela dupla constituição da posição: produtor de cana e tratorista-empreiteiro de trabalhadores e serviços. Para tanto, contudo, o chefe da unidade de produção deve ser detentor de capital para o investimento na compra de instrumentos mecanizados e acessórios.
Os tratoristas são os responsáveis por boa parte do conhecimento até então acumulado pelos produtores de cana, pela recriação de instrumentos e técnicas e pela diminuição de custos de produção. Eles não só devem dominar a direção e o manuseio das máquinas, como construir ou ampliar o conhecimento sobre o solo, o clima, os novos tipos de cana, a densidade e o espaçamento do plantio dos toletes. Alguns deles, mais dedicados e que melhor assumem essa identidade de criador e guardião desses patamares de tecnologia, são amplamente legitimados e assim reconhecidos pelos produtores de cana. O reconhecimento e a legitimação se traduzem em constantes elogios e referências positivas e numa maior demanda pela prestação de serviços.
Essas novas circunstâncias, em que esta presença do tratorista se tornou possível e importante, expressam o conjunto de mudanças por que passa a atividade agrícola. Esta vai deixando de ser um ofício cujo exercício está incorporado a um estilo de vida e define a identidade social do produtor, para se tornar uma atividade produtiva submetida a formas de administração possíveis de serem implementadas por posturas e orientações impessoais, profissionais. Menos que uma forma de vida, ela vai se tornando um negócio a ser administrado. Outrossim, tais novas circunstâncias demonstram a circulação de formas de acumulação e concentração de renda, nem sempre passíveis pela atividade agrícola estrito senso, pois que esta, ao contrário, passou a sustentar inúmeras formas de transferência de rendimento.
A organização do mercado propiciada pela especialização na produção de cana e pela mecanização das atividades agrícolas assegurou ou prolongou a inserção daqueles antes excluídos da administração do patrimônio herdado, como as mulheres, os velhos e os filhos que migravam em momento precedente à sucessão. Anteriormente, as mulheres viúvas e as solteiras deveriam passar a administração produtiva de sua parcela de terra para um membro da família, filho ou cunhado, no primeiro caso, irmão ou cunhado, no segundo, abrindo mão da maior parte das tomadas de decisão. Por esta forma atual de contratação de serviços, podem assumir a administração coordenada de atos e decisões tomadas por instituições especializadas. [9]
Alguns produtores de cana que, por forças de tais condições de produção, podem residir fora da Região Açucareira de Campos, estabelecem contratos de parceria com tratoristas, transferindo-lhes a execução de todas as tarefas e a observação e guarda da propriedade. Assim, os tratoristas propiciam que pequenos produtores de cana se dediquem a outras atividades, até em locais distantes da propriedade, ou não dominem totalmente as técnicas agrícolas, porque o saber do produtor agrícola importa menos que o deles. [10]
Fatores e interesses diversos convergiram no sentido de cada vez mais reproduzir as equipes especializadas de trabalho, liberar a mão-de-obra produtiva da família do produtor de cana e constituir o tratorista num dos principais agentes econômicos desta produção social. A forma de organização deste mercado de trabalho e de serviços viabilizou a manutenção da pequena propriedade associada a outra atividade produtiva, tanto na região como fora dela. Um processo de recomposição das atividades produtivas na Região Açucareira de Campos foi posto em prática pela adoção de uma racionalidade onde a duploatividade assegura melhores condições de reprodução social. Formas diversas de consumo improdutivo foram desenvolvidas, assegurando a transformação de uma série de atividades de autoconsumo em atividades mercantis. Enfim, a atividade agrícola, longe de ser orientada por um modo de vida, é colocada em prática por relações contratuais constituídas em torno da concorrência no mercado.
O desenvolvimento desse mercado de trabalho especializado abriu alternativas para investimentos em novas carreiras para os filhos dos produtores de cana. O investimento no estudo dos filhos e no projeto de profissionalização em outra atividade ou profissão tem estimulado a migração dos produtores para a cidade, incorporando outros modos de consumo improdutivo. Este projeto de reordenação das formas de inserção produtiva dos filhos pode redundar numa opção pela reprodução simples da cultura canavieira, compensada por outras formas de ganho de efeitos mais amplos que os econômicos. Portanto, a reprodução simples do patrimônio agrícola pode muitas vezes se apresentar como solução racional ao investimento em várias frentes, de modo que a família não seja reduzida aos interesses da unidade de produção agrícola.
A análise dos desdobramentos possíveis diante da presença de um mercado de trabalho altamente desenvolvido não pode se restringir ao reconhecimento da pluriatividade, isto é, das atividades em jogo ou das formas de inserção da força de trabalho. Diversos autores têm demonstrado que esta presença propicia a ampliação e a variação das estratégias de transmissão do patrimônio, fazendo equivaler o direito a uma parcela de terra ao ensino mais prolongado, à posse de um conjunto de equipamentos ou de recursos financeiros para instalação autônoma em outro setor de atividade, como, por exemplo, a equivalência entre o lote de terra e a constituição de uma pequena unidade comercial.
A diversidade de formas de inserção produtiva dos membros da família, para além de se constituir em resposta às condições técnicas da produção, corresponde ao projeto de ampliação das alternativas de reprodução para todos os filhos, inviabilizada diante das restrições para ampliação do acesso à terra, para o aumento da produtividade do trabalho e da produção, para a expansão dos rendimentos diante dos modos de imposição dos preços agrícolas. A ampliação das formas de inserção produtiva corresponde assim às respostas que os pais devem apresentar diante de um sistema de herança igualitária que pressupõe, no limite, a fragmentação da terra e sua improdutividade.
Segundo caso: a reordenação do projeto familiar frente às pressões para constituição de um mercado de trabalho agrícola
A pecuária de corte e de leite na Região do Vale do Itabapoana [11] se constituiu em atividade produtiva predominante a partir da década de 60, em virtude de um intenso processo de mudanças sociais nas relações de produção e trabalho e nas formas de organização social das unidades familiares. Estas mudanças sociais foram decorrentes da erradicação da cafeicultura, produção até então hegemônica.
A opção pela diminuição da produção e da produtividade da cafeicultura havia sido a postura adotada pelos cafeicultores em face do declínio do preço do café no mercado externo e interno. Enfrentando a baixa produtividade com a queda de preços, os trabalhadores que se dedicavam a esta cultura na condição de colonos (parceiros) migraram massivamente para outras regiões do estado do Rio de Janeiro. Este processo de migração se acirrou entre 1964-68, quando o governo federal distribuiu créditos para extirpação dos cafezais e para substituição do uso dos fatores de produção pela pecuária extensiva, poupadora de mão-de-obra.
Os proprietários de terra que permaneceram integrados à atividade produtiva na região associaram a pecuária extensiva com a policultura, cujos produtos asseguravam o autoconsumo improdutivo ou intermediário: feijão, arroz, café e hortaliças para o consumo doméstico e cana-de-açúcar e milho, para a alimentação complementar do gado. Outrossim, estes cultivos permitiam a imobilização de uma parca quantidade de trabalhadores necessários às eventuais tarefas de preparo e limpa de pasto.
Expulsos das fazendas onde eram imobilizados pela vinculação como parceiros, os trabalhadores que permaneceram tiveram que investir na criação das condições de viabilidade desta opção. Fixando residência fora das fazendas, estavam expropriados do acesso direto aos bens de subsistência, além de só contarem com o salário nos rarefeitos momentos de demanda pela atividade pecuária. Por isso, o custo da permanência (não-migração) fôra a aceitação de relações de trabalho profundamente desfavoráveis, condição asseguradora de sua constituição e reprodução enquanto trabalhador livre e assalariado. Passaram então a associar as escassas alternativas de trabalho assalariado à exploração sob parceria dos cultivos destinados ao autoconsumo –arroz, milho, feijão e mandioca– ou ao consumo intermediário – cana-de-açúcar e milho. Em face destas destinações não-mercantis, as formas de contratação da parceria não são satisfatórias aos trabalhadores. Oferecem ao pecuarista um trabalho totalmente gratuito, em troca do controle do acesso à terra. Criam assim eles mesmos as condições para acesso aos meios de reprodução durante o período em que estão inativos; asseguram eles mesmos sua imobilização para os momentos de demanda. Portanto, viabilizam a oferta e a manutenção de um salário tão baixo que não corresponde à sua reprodução enquanto trabalhador livre, condição imposta pelas transformações anteriores, que implicaram sua expropriação do acesso mediado aos meios de produção.
A afirmação relativamente corrente de que o trabalho familiar diminui os custos de produção a um patamar que assegura maior apropriação de excedente nos circuitos de mercado ou que permite o barateamento da força de trabalho é, no mínimo, ligeira, parcial e otimista em relação às condições de vida e de reprodução dos trabalhadores rurais. O trabalho assalariado, no Brasil, está muito longe de ser remunerado pelo valor mínimo socialmente estabelecido para a reprodução das camadas de trabalhadores. Para muitos destes, como é o caso aqui exposto, até o acesso a este salário mínimo e ao emprego regular é um sonho ou uma conquista de difícil execução. A escassez de oferta de trabalho em situações de especialização mercantil e de produção sazonal pode impor aos trabalhadores estratégias tão múltiplas de reprodução, que o acesso ao trabalho se torna questão moralmente mais importante do que econômica.
O acesso à mão-de-obra por um preço tão mínimo estimula os proprietários de terra a fazerem uso dela, mesmo que disponham de força de trabalho familiar improdutiva para outras atividades locais porque inexistentes. Tais condições sociais têm lhes estimulado o investimento na instrução dos filhos, mesmo que através do deslocamento para a sede do município. Outrossim, da mesma forma, o investimento na vinculação dos filhos adultos a mercados de trabalho já constituídos, ampliando as alternativas de acesso a outras formas de rendimento e de integração em outras redes de relações sociais.
Ainda que as condições técnicas (mecanização limitada e uso intensivo do trabalho manual) e o preço mais favorável do gado de corte possam assegurar a permanência de alguns dos filhos, ainda que o acesso à terra por compra não seja tão restrito, os pecuaristas incorporam esta vantajosa forma de imobilização da força do trabalho e reduzem os custos deste fator a patamares mínimos.
A liberação dos filhos adultos para outras atividades remunerativas dá-lhes oportunidades de criação de trajetórias diversas, muitas delas incompatíveis com o uso associado da terra. Não dispondo de um mercado de trabalho local, os filhos dos pecuaristas migram para locais mais distantes, inviabilizando por vezes o retorno à propriedade potencial enquanto sucessor de direito. Portanto, os pecuaristas investem na criação de situações e alternativas que não ampliem as pressões sobre a fragmentação do patrimônio. Pelo contrário, a reprodução ampliada do patrimônio é enriquecida pela alternativa de substituição dos trabalhadores familiares por trabalhadores assalariados, e pela flexibilização dos modos de composição da renda. A inserção dos filhos em outros domínios sociais, os saberes daí resultantes, o aumento da rede de informações advindas da expansão da escolaridade e da inserção em outros modos de vida, tudo isto aumenta o estoque de recursos materiais, econômicos e culturais que cada família pode auferir. E todos estes aspectos são valorizados pelos produtores como estratégias que visam dotar os filhos de condições mais satisfatórias de reprodução social.
O projeto familiar e a gestão das alternativas
Pelo entendimento dos dois casos acima apresentados, torna-se possível colocar novas perguntas para compreender a concepção de uso da força de trabalho em jogo. Torna-se fundamental considerar as diferenças entre irregularidade do uso do trabalho familiar ou irregularidade do uso da força de trabalho, mas também os custos que cada uma destas formas de recrutamento pode acarretar.
As análises sobre as formas de inserção produtiva dos membros da família do agricultor têm sido ampliadas no contexto da mecanização e da especialização das atividades agrícolas ou, por conseqüência, do reordenamento do uso do tempo da força de trabalho que elas agregam. A adequação de lógicas convergentes tem sido vista como desvio ou desdobramento inesperado. Havendo descontinuidade no trabalho agrícola, ocorrerá também com o trabalho familiar, com a constituição do orçamento, com os modos de preenchimento dos poros do tempo de trabalho e de investimentos em projetos familiares, cuja diversidade corresponde às alternativas conjunturais. Portanto, ocorrerá também formas diferenciadas de compreensão da pluriatividade dos membros familiares. Sem conseguir a exaustividade das alternativas possíveis, destaco: em alguns casos, presente como resposta aos vazios do ciclo de produção ou da especialização; em outros, como resposta às novas alternativas de inserção dos membros produtivos; em outros, pela inexistência ou pela precariedade das formas institucionais de crédito e de poupança ou de políticas sociais destinadas a reproduzir a pequena produção agrícola; em outros, porque o trabalho assalariado está reduzido a patamares inferiores à concorrência de outras formas de vinculação; em outros, porque a multiplicidade de rendimentos e de inserções no sistema produtivo corresponde a possibilidades diversas de usufruto dos benefícios e recursos colocados historicamente à disposição na sociedade; em outros, porque a superação dos limites impostos pelo investimento num único setor de atividade corresponde a uma aspiração familiar.
A associação de rendimentos com a renda agrícola é fenômeno antigo e tão recorrente que não pode caracterizar uma classificação específica, uma categoria particular de produtor, um modo especial de organizar a produção agrícola. A incorporação da atividade comercial e a eliminação de intermediários, as formas de luta política tendo em vista o direito à aposentadoria ou à pensão têm se constituído em frentes estratégicas de luta dos produtores agrícolas. Através delas eles têm tentado controlar o fluxo dos rendimentos e criar alternativas para a expansão dos meios de produção e da remuneração de seu trabalho.
A análise da relação dos produtores agrícolas com o mercado de trabalho mediante o uso dos termos classificatórios nem sempre tem considerado a negação das ambigüidades dos atributos valorizados para construção de tipos ideais. Tanto o uso de força de trabalho adquirida enquanto mercadoria como a venda da força de trabalho pelo produtor agrícola têm sido compreendidas como desvio ou mobilidade, indicando ora o sentido do aburguesamento ou da constituição de unidades capitalistas de produção (no primeiro caso), ora o sentido do descenso, da proletarização ou da constituição do duploativo, pluriativo ou part-time (no segundo caso).
A multiplicidade de situações e a diferenciação interna do campesinato sempre se constituíram em questão sem resposta final, sempre se instituíram em debate difícil de ser resolvido com definições restritas. Os modos de aglutinação de alternativas não podem ser definidos como tendências inexoráveis numa ou noutra direção, reducionismo negado pelos processos sociais concretos e empobrecedores dos desdobramentos possíveis necessários à construção do objeto de análise.
A diversidade de possibilidades e de fatores que interagem na constituição do valor da renda agrícola está muito longe de ser repertoriada e principalmente classificada. Toda tentativa de caracterização dos aspectos comuns ressalta de imediato as divergências, a ponto de cada configuração regional poder ser considerada como uma variante. Por isso, parece-me, os modos de gestão das configurações de alternativas e fatores em jogo podem se constituir em importante, embora evidentemente não exclusivo, objeto de estudo, porque permite entender o sistema de valores e a concepção de mundo que neste contexto se constitui como e pela orientação da prática dos agricultores. Outrossim, permite entender que as orientações então constituídas estão muito longe da fidelidade pretendida à atividade agrícola tão-somente.
O rebaixamento do valor da força de trabalho (mercadoria) que a torna mais barata que o trabalho familiar não é sem conseqüência para os produtores agrícolas. Eles podem redirecionar o uso da força de trabalho familiar para setores onde a remuneração direta e indireta se apresente mais favorável; podem optar por ampliar o nível educacional dos filhos e investir não só economicamente mas culturalmente no aumento dos equipamentos, dos recursos e das estratégias de administração dos bens controlados pela família. As alianças e a sociabilidade que os diversos modos de participação dos membros familiares podem propiciar, facilitam e desdobram o acesso a outras formas de saber, outros aparatos institucionais (escolares, médicos, previdenciários, etc.) e asseguram novas alternativas de concepção de mundo, sob qualquer razão, mais necessárias à integração a um universo de concepções concorrentes e, algumas delas, de pretensões à hegemonia.
Desde que não se desconsidere que as relações a que os produtores se integram absorvem desdobramentos múltiplos, o entendimento das diversas relações possíveis com o mercado de trabalho –de compra e venda– pode permitir a compreensão das condições em que eles articulam tais fatores para ordenarem e objetivarem o projeto de vida familiar. Neste domínio podem estar em jogo várias dimensões da vida social: um modo de viver e trabalhar viabilizador, inclusive, das possibilidades de reflexões comparativas das inserções possíveis; um modo de construção e difusão de saber importante para a reelaboração das representações sobre o passado e até da negação do mundo anterior; formas de comunicação, aumento de informações, interseccionamento de domínios sociais e expansão de redes verticais e horizontais de relações de sociabilidade.
A autoridade do pai que articula recursos diante de projetos não se constitui como epifenômeno de fatores externos e econômicos. Ela depende da visão de mundo que, na articulação de múltiplas redes, ele vai constituindo. A organização da família expressa um modo de vida e um sistema de valores que orientam as escolhas e as alternativas valorizadas. Portanto, as relações e o sistema de valores em jogo na constituição da unidade familiar ultrapassam ou não são equivalentes aos que orientam a configuração da unidade de produção. A unidade familiar comporta os centros de gestão e contabilidade, os pontos de referência para novos casamentos, enfim, para outras tantas formas de integração social. Malgrado a tendência à autonomização dos indivíduos no seio de uma exploração agrícola, a família continua sendo um conjunto econômico relativamente coerente, pela gestão da renda, pela inserção de trabalhadores conforme os ciclos de vida e pela transmissão de patrimônios que não se reduzem aos bens imóveis.
A reprodução ampliada da unidade de produção agrícola, ainda que meta teórica ou valorativa para a reprodução do sistema capitalista, não se constitui no único projeto de vida dos agricultores. A opção por um estilo de vida em que o aspecto penoso do trabalho agrícola vá relativamente se transformando em coisa do passado, em que o acesso aos bens defina a razão de viver e trabalhar tem, em certos casos, estimulado a opção pela minimização do rendimento em troca de uma vida mais confortável e mais próxima dos outros cidadãos. [12] O sistema de exploração agrícola, apesar de orientado por outros universos de valores ou pelas referências obrigatórias à dinâmica do mercado, constitui uma das alternativas de que dispõem os membros familiares para gerir um projeto coletivo de incorporação de gerações.
Por tudo isto e mais que tudo no contexto atual, o analista deve separar distintivamente a unidade agrícola da unidade familiar. Atualmente a composição das famílias tem pouco a ver com o tamanho da unidade de produção e a quantidade de trabalho disponível, inclusive pelas alternativas de consorciação de atividades produtivas e de acesso a rendimentos. As funções familiares ultrapassam em muito aquelas abarcadas pela produção.
Nesses termos, considero que, para a análise da objetivação de alternativas de uso das múltiplas formas de inserção no processo produtivo, não é possível negligenciar a importância da participação dos agricultores e das novas gerações no mercado de consumo improdutivo; não é possível secundarizar os significados e os desdobramentos do acesso a bens culturais sobre o investimento na construção de novas trajetórias e posições sociais.
A pluriatividade e a associação de múltiplas formas de vinculação dos membros produtivos da família ao mercado de trabalho se constituem também em resposta às contradições criadas pelo sistema de herança igualitário, mais compatível com uma situação de oferta elástica de terra, de valorização do trabalho e da renda agrícola, de restrição do sistema de empregos e de reprodução das posições sociais consagradas, inclusive da identidade social do agricultor.
Em resumo, a análise da circulação da força de trabalho sob o desenvolvimento contemporâneo, permite ultrapassar sua mera constatação e entender a recomposição do jogo das estratégias familiares através da diversificação dos papéis profissionais. Constitui, portanto, uma boa porta de entrada (e não de saída) à compreensão dos projetos de reprodução da família, mais abrangentes do que os da reprodução da unidade de produção. Controlando as vantagens aparentes que a constatação do seu grau de generalidade pode imediatamente oferecer à explicação, reconhecendo que este princípio explicativo se orienta pelo primado da causa finalista, pode-se ter em conta que elementos distintos podem conduzir ao entendimento das novas formas de gestão da força de trabalho na agricultura, mas também das possibilidades de inserção das famílias na sociedade, a despeito da quase infinita diversidade de configurações ou situações.
Referências bibliográficas
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Notas
[1] Em face desta opção por uma simplificação das tendências analíticas, distancio-me bastante da complexidade analítica dos diversos autores. Identificá-los em cada vertente seria inocente e injusto. Por isso não os cito, embora esteja referenciada aos autores clássicos no estudo do campesinato.
[2] Uma análise sobre os problemas desta vertente de estudo pode ser encontrada em Neves (1993; 1996).
[3] A bibliografia sobre esta temática é imensa. Nas referências bibliográficas deste artigo constam alguns dos títulos a partir dos quais orientei as considerações aqui elaboradas.
[4] Sobre as conseqüências analíticas da adoção de termos classificatórios construídos com vistas à generalização, ver Neves (1988, capítulo 11: a diversidade das unidades de produção agrícola de 1993).
[5] Sobre esta perspectiva analítica, ver Kayser (1990); Neves (1996).
[6] A Região Açucareira de Campos constitui uma das mais antigas áreas voltadas para a cultura da cana e a fabricação do açúcar no Brasil (cf. Neves, 1979). Ocupa grande parte do município de Campos (RJ) e áreas periféricas dos municípios de Macaé, São Fidélis, São João da Barra e Conceição de Macabu.
[7] Empresário especializado na contratação de mão-de-obra.
[8] Sobre as condições de trabalho organizadas a partir da administração das usinas, ver Neves, 1983 e 1986.
[9] O fenômeno da feminização de algumas atividades agrícolas tem sido tratado por diversos autores. Ver Cernea (1978) e Kayser (1990).
[10] Sobre os modos de organização e participação das equipes de trabalho, ver Neves (1981 e 1988).
[11] A Região do Vale do Itabapoana é constituída pelos municípios de Bom Jesus do Itabapoana, Natividade, Porciúncula, no estado do Rio de Janeiro.
[12] Ver Neves (1988: capítulo 11).