Estudos Sociedade e Agricultura
Roberto José Moreira
Metodologias da reforma agrária
Estudos Sociedade e Agricultura, 8, abril 1997: 163-177.
Roberto José Moreira é professor da UFRRJ/CPDA
A conjuntura relativa a questão agrária brasileira, impulsionada pelo MST em sua conjunção histórica com demandas sociais e urbanas, tem requerido ações governamentais que dentre outros desdobramentos se configuraram recentemente na realização do I Censo Nacional de Reforma Agrária e no Projeto Lumiar de Assistência Técnica aos Assentamentos. Os objetivos dessas ações públicas estão sendo implementados com base em posturas metodológicas, objeto das seguintes considerações.
O caráter conjuntural da temática metodológica não permite conclusões. De um lado, temos um processo de implantação de metodologias, portanto, sujeito a aprofundamentos e redefinições e, de outro, nossos comentários se apóiam em notas de reuniões das quais participei e em textos com formulações distintas, o que dificulta comparações detalhadas entre diferentes metodologias e seus fundamentos.
Como professor da UFRRJ estou participando do Comitê Assessor do Grupo de Reforma Agrária (GTRA) do Crub, instância que pondera, propõe e acompanha formas de parceria das universidades brasileiras com o Ministério Especial de Política Fundiária (MEPF) e o Incra, dentre as quais estão o Censo e o Projeto Lumiar. A tradição de minhas atividades acadêmicas me colocou, de um lado, na condição de Supervisor do Censo no Rio Janeiro, responsável pelos trabalhos de campo e, de outro, como um dos participantes do grupo de professores que vem acompanhado os passos iniciais da implantação do Projeto Procera/Lumiar no estado. No que se refere a este projeto, participei de reunião do comitê assessor do GTRA/Crub que ouviu os posicionamentos do Incra, da Contag e do MST sobre o assunto e, como convidado, da reunião “Sobre Metodologia”, coordenada pela Diretoria de Assentamentos do Incra, quando foram apresentadas as metodologias e experiências da Divisão de Assentamentos do Incra, da Unijui, do Itog-Incra/PNUD, da Concrab-MST, da FAO e da Associação de Orientação às Cooperativas do Nordeste (Assocene). Estarei utilizando aqui a versão do Projeto Lumiar de janeiro de 1997.
A metodologia do Censo
O Projeto Incra/Crub/UnB inovou na coleta de dados censitários de caráter nacional. A demanda do Censo se originou da necessidade e da possibilidade do Incra contar com informações confiáveis tanto para analisar suas próprias medidas quanto para participar no debate nacional sobre a dimensão da atuação do governo na Reforma Agrária. A parceria com as universidades brasileiras viria agilizar o Censo, justamente por se realizar fora do quadro técnico do Incra, e imprimiria aos dados censitários uma nova legitimidade, advinda da natureza das atividades universitárias.
As discussões metodológicas iniciais do Censo foram desenvolvidas por uma equipe da UnB e a Diretoria de Assentamentos do Incra que se responsabilizou pela definição dos modelos dos questionários do Censo e da Pesquisa Amostral que também se pretendia fazer. No que se refere aos dados que seriam coletados, cumpre ressaltar que se manteve uma necessária compatibilização destes com a sistemática de acompanhamento que o Incra já vem implementando através do Sistema de Informações de Projetos de Reforma Agrária (Sipra). (Uma comparação entre o Manual de Preenchimento do Sipra, de outubro de 1996, e o Manual de Preenchimento do Censo, da mesma época, demonstra esta observação). Este requisito institucional impôs restrições a algumas adequações que a equipe da UnB poderia implementar nos questionários. Garantiu-se a autonomia das universidades na realização dos trabalhos de campo (aplicação dos questionários e confiabilidade das informações), apesar das restrições que adviriam daquela compatibilização dos dados com o sistema Sipra.
Ademais, coube à equipe da UnB indicar e selecionar os supervisores estaduais, que depois, juntamente com técnicos do Incra, oriundos dos estados, passaram por um treinamento específico.
Participei do treinamento de supervisores realizado em Belo Horizonte, ocasião em que professores e técnicos chamaram a atenção para alguns condicionantes que poderiam se tornar problemáticos na realização do Censo da forma como acordado entre o Incra e a UnB, dentre os quais cabe mencionar: o pequeno prazo reservado à tarefa de campo, o que incidia também na seleção e treinamento dos alunos-entrevistadores; as estimativas de custos, consideradas baixas; a forma de operação das equipes, principalmente diante das dificuldades de transporte; o período do ano, inadequado devido ao período chuvoso, dificultando o acesso aos assentamentos em certas regiões; ao período letivo dos alunos, coincidindo com as avaliações escolares; e a incerteza quanto ao material necessário ao Censo ficar disponível a tempo. A estas questões foram adicionadas indagações metodológicas, dentre as quais: os conceitos a serem utilizados para a caracterização da situação do assentado, principalmente das categorias agregado e irregular (item 4, quadro 2, do formulário do Censo); as dificuldades nas situações em que as áreas urbanas se confundiam com os assentamentos. E, no que à pesquisa amostral se referia, destacou-se então que: 1) A não-coleta dos preços praticados nos assentamentos trariam distorções na análise da renda que não seriam resolvidas pela imputação de preços médios estaduais; e 2) A produção, a renda e o patrimônio produtivo dos assentamentos que praticavam formas cooperadas e coletivas de produção e de acumulação patrimonial seriam subestimadas na pesquisa, pois os questionários dirigiam-se somente às formas parcelares e familiares. Na impossibilidade de refazer os formulários que já estavam em processo de impressão e para atender a demanda de professores e técnicos, resolveu-se aplicar o formulário preparado para a unidade familiar a todas as formas associativas e de cooperação. A solução implicou assim na realização de uma espécie de censo das formas associativas e cooperadas existentes, naquilo que se referia às atividades produtivas, e à propriedade e uso conjunto de equipamentos ou animais. No entanto, esta opção metodológica poderá implicar em problemas, ainda a serem identificados, à hora da análise dos dados.
Cumpre frisar que a possibilidade de sucesso das atividades de campo requeria um apoio de técnicos para que as equipes pudessem chegar aos assentamentos e que os assentados estivessem aglutinados em um local onde se realizariam as entrevistas. Isto requeria atividades de sensibilização e informações prévias à aplicação dos questionários. Estas atividades eram responsabilidade do Incra e tornavam-se fundamentais para o cumprimento das metas no tempo previsto, bem como seriam a única forma de tornar compatível a atividade planejada com o orçamento disponível. Trabalhávamos com a expectativa de que, no geral, os assentados se deslocariam para o local de referência –sede de associação, escola, galpão etc.– onde seriam realizadas as entrevistas. Boa parte dos problemas de campo decorreram da falta daquela sensibilização e das dificuldades de aglutinação dos assentados, o que implicou em perdas de informações e, em determinados casos, na impossibilidade de completar o trabalho em alguns assentamentos e estados, como foi ressaltado por vários supervisores do Censo em reunião do Comitê Assessor do GTRA/Crub.
No conjunto de atividades subestimou-se ainda o tempo dedicado ao preenchimento das bolinhas requeridas pelo uso da leitura ótica dos questionários, o que em alguns estados parece se ter desdobrado em perdas de informação. Não considero que a metodologia da leitura ótica seja inadequada, a questão é que o tempo e o custo desta atividade foram tremendamente subestimados.
A equipe da UnB ficou com a responsabilidade de análise, depuração e tratamento dos dados, responsabilizando-se pela sua fidedignidade, tarefa ainda inacabada no momento em que redijo estes comentários. Esta equipe deverá produzir um relatório sobre tais atividades.
Gostaria de dizer ainda que os dados ficarão disponíveis no Incra e na Coordenação Nacional do Projeto em Brasília e poderão ser de uso das universidades para os mais diversos estudos e análises. Recomendo, porém, que nestes estudos tenha-se o cuidado para que as interpretações e conclusões não ultrapassem os limites postos pelos questionários e pelas condições do trabalho de campo, algumas delas aqui ressaltadas.
As metodologias do Projeto Lumiar
Com o Projeto Lumiar, a ação governamental introduz nos assentamentos certas inovações na concepção e implementação da política pública. (Veja MEPF/Incra para detalhes do Projeto.) O programa retira do quadro profissional do Incra a responsabilidade direta pela assistência técnica nos assentamentos selecionados e a realiza mediante uma terceirização dessas atividades, ao mesmo tempo em que continua afirmando no discurso a participação dos assentados na tomada das decisões, entendendo-a como um processo educativo construtivista. Mantém ainda a supervisão sob controle de técnicos do Incra, se bem que em parceria com técnicos de fora da instituição, que poderiam ser das universidades. Esta última questão tem sido objeto de ponderações no interior do GTRA/Crub que envolvem os temas da responsabilidade, do tempo de dedicação, do entendimento desta atividade como de extensão ou pesquisa-ação e de como viabilizar o pagamento de bolsa ao docente engajado. As organizações dos assentados têm garantido o direito de indicação de currículos de profissionais de fora, que comporão, com um técnico do Incra, a dupla de supervisão. Estas são questões ainda em aberto.
Em reuniões tem-se insistido na necessidade de uma nova concepção de assistência técnica que se desenvolva e se implemente como afirmação de processos educativos, participativos e organizacionais. A busca deste comprometimento se inspira na compreensão de que a assistência técnica, como tem sido concebida e praticada, não é suficiente para romper as amarras da visão tecnicista e produtivista dos técnicos. Tenho insistido que as universidades brasileiras têm que dar mais atenção ao perfil do profissional que estão formando (Moreira, 1994; 1996a e 1996b). No caso da agropecuária entendo que o curso de Licenciatura em Ciências Agrárias, que tem um forte componente pedagógico em seu currículo, como, por exemplo, na UFRRJ, forma profissionais mais sensíveis às questões e processos educacionais, quando comparado com os cursos tradicionais de agronomia e zootecnia.
Na operacionalização do Lumiar os serviços de assistência técnica dos assentamentos serão contratados pelos assentados “através de suas organizações, junto a instituições públicas, cooperativas de trabalho e ONGs, através de um processo de credenciamento”, de tal forma que o gerenciamento e a supervisão do Projeto sejam “compartilhados com as organizações dos trabalhadores rurais e entidades governamentais e não-governamentais parceiras”. Ademais, reconhece-se que os assentados e suas organizações são co-participantes e co-responsáveis no processo de assistência técnica e capacitação, “enquanto contratantes da prestação de serviços, colaboradores e co-executores do desenvolvimento do assentamento” (MEPF/Incra,1997: 5).
Essas postulações e princípios de ação rompem com as formas anteriores de assistência técnica e abrem um campo de disputa pelos (e nos) espaços decisórios e de formulação das metodologias de ação educativa e assistência técnica. O Projeto procura regular estes diferentes espaços decisórios com distintas atribuições e composições, a saber: Comissão Nacional, Comissões Estaduais, Equipes Locais de Execução, Equipes de Supervisão e Especialistas. São campos de exercício da micropolítica que podem revelar disputas, alianças e representações. As organizações dos trabalhadores (Fetag e MST) têm pleiteado maior participação nestas instâncias decisórias. O lugar e o papel das universidades brasileiras no Projeto Lumiar têm sido objeto de discussões no interior do GTRA/Crub. É preciso ter cuidado para que estes processos não sejam vistos como uma oposição entre trabalhadores e universidade por disputa de espaços. No geral, os professores que estão se envolvendo com o Projeto Lumiar têm uma longa tradição de luta pela reforma agrária e têm sido críticos da tradição de ação do Incra.
É preciso ressaltar que o Projeto Lumiar reconhece e legitima as organizações dos trabalhadores, reconhecendo-as como co-partícipes da política pública. Enfatizo este aspecto, pois é um dos elementos que vejo como diferenciador das propostas metodológicas que estaremos examinando mais à frente. O destaque visa ainda revelar a tensão entre a concepção de uma reforma agrária parcelar e familiar, tradição da ação do Incra e dos governos brasileiros e o processo de decisão da aplicação dos recursos do Procera-Lumiar no qual cada assentado deverá ser representado através de suas organizações. Tal tensão, de um lado, como que impõe que o assentado assuma forma associada e, de outro, coloca a questão da legitimidade das organizações existentes na representação do assentado parcelar nas decisões relativas às suas esferas produtivas e mercantis e à sua renda familiar.
Lembro que vários assentamentos têm, hoje, mais de uma associação. Além disso, cumpre destacar que uma mesma equipe local de assistência técnica poderá estar atendendo a mais de um assentamento. A operacionalização do Projeto sinaliza para que cada equipe local (grupo técnico) trabalhe com cerca de 300 famílias. Os assentamentos menores poderão ser assim assistidos por uma mesma equipe técnica paga com parcelas de seus recursos junto ao Lumiar, o que significa que terão que buscar formas de decisão conjunta, pelo menos no que se referir à qualidade e ao tempo que a equipe local dedicará a cada assentamento.
Qual é a organização que representará os diferentes assentados?
A questão está em aberto e, portanto, possibilita a criação de novas associações de assentados com o fim específico de articular as ações do Lumiar.
Entendo ainda que, se levada a sério, esta questão da organização pode ser colocada como um dos elementos da seleção dos assentamentos beneficiários do Projeto Lumiar, favorecendo certamente aqueles que já têm uma cultura de associativismo, ou que se disponham a desenvolvê-la para serem beneficiários do Lumiar. Se não for levada a sério, ou seja, se for apenas uma peça de discurso, o problema organizacional poderá inviabilizar o sucesso do Projeto, pois os aspectos participativo, educativo e organizacional acalentados pelo Lumiar não terão como se realizar. Os assentados não terão uma instância legitimada para a prática educativa dos processos decisórios que, espera-se, levará à autogestão do assentamento. Se for apenas uma peça de discurso, dois desdobramentos básicos, ou uma mistura deles, poderão ocorrer: 1) a equipe técnica, os supervisores e conseqüentemente o Incra, acabarão tomando as decisões; e 2) alguma organização sem raízes na vida cotidiana dos assentados poderá ocupar este espaço decisório, seja ela de trabalhadores ou de terceiros, lembrando aqui que a terceirização dos serviços de assistência abre esta possibilidade e que quem maneja recurso maneja poder de decisão. O que vai significar a terceirização ainda é uma questão em aberto e pouco discutida no interior das instâncias que tenho participado.
Esta é a natureza profunda da tensão acima identificada e que está implícita na formulação desta peça de ação governamental que é o Projeto Lumiar. Nas reuniões que tenho participado, estas questões não têm sido discutidas. Mesmo para mim, que intuía inconsistências, o papel nuclear da organização dos assentados somente se revelou importante no decorrer do presente esforço de análise. Tenho a convicção de que se a questão da organização se tornar apenas um ornamento, o Projeto Lumiar dificilmente atingirá suas metas de emancipação e autogestão dos assentamentos. Se for mais do que um mero discurso o Projeto estará estimulando formas associativas da agricultura familiar nos assentamentos, o que, a meu ver, fortalece o poder de competição destes nos mercados, por demais positivo e necessário.
Tenho insistido em que a questão do mercado e a questão do poder de competição das formas familiares têm que ser levadas em conta. Neste mesmo número da revista Estudos em Sociedade e Agricultura desenvolvo alguns elementos da minha argumentação no artigo Agricultura familiar no capitalismo: valorização e desvalorização das técnicas, onde enfatizo os aspectos econômicos e culturais da integração social das formas familiares. Em Moreira (1995) analiso o espaço de integração da agricultura familiar e dos assentamentos, associando-o à competitividade e à tecnologia.
No Projeto Lumiar as equipes locais de execução serão compostas por um técnico de nível superior que, além de outras, deverá ter competência específica para apoiar a gestão e a organização da comunidade; um técnico de nível superior na área agropecuária e dois técnicos de nível médio, preferencialmente na área agropecuária. Esta equipe tem, dentre outras, as seguintes atribuições: realizar diagnóstico participativo, apoiar a organização dos assentados em processos de aprendizagem coletiva, promover processos de decisões coletivas, acompanhar e assistir os planos de créditos necessários ao desenvolvimento das atividades dos assentados e de suas organizações, e treinar uma equipe de assentados para cuidar da contabilidade e dos aspectos administrativos da associação (MEPF/Incra, 1997: 8; grifos nossos).
Neste contexto ganha relevância não só a capacitação da equipe local de execução, tônica das metodologias da FAO, do Itog e das experiências da Unijui, mas também o acompanhamento e a avaliação qualitativa e, como novidade, a necessidade de processos educativos que viabilizem formas participativas de cooperação e decisões, só privilegiadas na metodologia da Concrab.
Nos dias 25 e 26/3/97, a Diretoria de Assentamento do Incra organizou e coordenou uma reunião em Brasília para discutir metodologias que pudessem ser coerentes com a concepção do Lumiar. Foram apresentadas no evento as metodologias da Unijui e da Assocene, que não têm denominação específica; e os métodos Projeto de Desenvolvimento dos Assentamentos, da Divisão de Assentamentos do Incra, Organização do Negócio Agrícola, da Concrab-MST, Capacitação Imersa, do Sistema Itog de Desenvolvimento Empresarial e Análise-Diagnóstico de Sistemas Agrários, da FAO, estas duas últimas já utilizadas em convênios anteriores do Incra.
O coordenador da reunião enfatizou que o referencial metodológico do Projeto Lumiar é construtivista, busca a estruturação de um ambiente democrático, reconhecendo o direito da comunidade dos assentados de construir o seu próprio caminho, analisar e reavaliar os processos e decidir. A idéia subjacente não é a busca de um senso comum e sim de um senso crítico, em um processo no qual o papel do agente externo (a equipe técnica) seja o de facilitador e os assentados desenvolvam sua capacidade de autonomia e decisão e possam questionar a realidade.
Foi consensual entre os participantes desse encontro o diagnóstico de que o sistema universitário brasileiro não forma um profissional com o perfil adequado para a implementação das práticas educacionais requeridas. As metodologias adequadas ao Projeto Lumiar devem ter a capacitação da equipe técnica como um de seus elementos componentes, aspecto contemplado nas metodologias da FAO, do Itog, da Unijui e da Concrab. Mas, como veremos, esta não é a única questão. Cumpre pensar sobre o acompanhamento dos processos e dos exames das condições que poderão levar à autogestão e autonomização do assentamento.
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A metodologia Projeto de Desenvolvimento dos Assentamentos, da Divisão de Assentamento do Incra, enfatiza apenas as dimensões física e agroeconômica do Projeto, não respondendo, pois, às demandas inovadoras postas pelo Lumiar.
De seu lado, a metodologia da Unijui tem como pressupostos a questão do desenvolvimento, a necessidade de alternativas de extensão rural, a complexidade interdisciplinar com que olha o processo produtivo e a agricultura familiar, sem desconsiderar o saber destes agricultores. (Não dispondo de texto de referência, estarei daqui em diante usando itálico para ressaltar as categorias utilizadas pelo expositor.) Tem como bases metodológicas: a educação popular, a noção de sistemas e toma o conhecimento do agricultor como condição importante. Estas referências visam entender os processos educativos como tendo aspectos investigativos e de construção do próprio conhecimento; implicam na redefinição das relações entre os atores sociais envolvidos e requerem a compreensão da complexidade do processo produtivo, impossível de ser apreendido pelos especialistas. Esta dimensão da complexidade é garantida pelo reconhecimento efetivo do saber dos agricultores. A proposta metodológica implica em: 1) Diagnóstico da realidade, levando em conta a dimensão histórica, uma visão sistêmica e os princípios da educação popular; 2) Busca de referência na agricultura familiar, reconhecendo que o conhecimento dos agricultores tem um componente científico de aprendizagem com os erros cometidos, na linha do ensaio e erro; 3) Definição de opção por um modelo de desenvolvimento, considerando os limites dos resultados obtidos e a tentativa de tornar transparente as possibilidades de ação; 4) Elaboração do projeto, tomando como referência o processo produtivo e os processos de elaboração e análise; e 5) Implantação do projeto, considerado como um processo de construção de conhecimento (educação popular), de novas relações entre os atores sociais e como um reordenamento de “estoques tecnológicos”. Experiências metodológicas com este perfil têm sido utilizadas por professores e alunos da Unijui e agricultores familiares da região, com grandes dificuldades de recursos e de sustentação. Esta concepção metodológica parece-me adequada ao perfil do Projeto Lumiar, apesar de não existir ainda uma massa crítica de reflexão sobre sua experiência, principalmente nos aspectos de acompanhamento, controle e implementação de formas cooperadas de decisão. Certamente os alunos tornam-se muito mais sensíveis em suas considerações sobre os processos produtivos e socioculturais da agricultura familiar, em algum grau rompendo com o componente tecnicista da sua educação universitária.
A Capacitação Imersa, do Itog, foi apresentada como uma metodologia mais adequada à primeira fase do Projeto Lumiar, dirigida para as equipes que vão prestar assistência técnica aos assentamentos. Ela visa uma capacitação construtivista dos técnicos já formados e que apresentem dificuldades para “ler” a realidade. Entende que esta ação pedagógica requer continuidade e permanência e objetiva “a capacitação simultânea do técnico e do produtor visando o desenvolvimento social, econômico e ecológico da agricultura para garantir uma renda satisfatória ao produtor e sua permanência na profissão como cidadão com direito ao trabalho” (Giovenardi, 1996: 3). O expositor ressalta a importância das considerações sobre investimento, tecnologia, organização e gerenciamento no contexto da aplicação desta metodologia e que ela não tem métodos instrumentais de acompanhamento dos resultados. Propõe a elaboração de planos e projetos com saída agroindustrial. A capacitação é concebida como uma espécie de formação em serviço e o plano é concebido como um referencial dinâmico. Ademais, entende que a renda constitui-se no grande mobilizador e, para exame dos resultados, advoga a auto-avaliação para captar os resultados pela percepção que os assentados têm, seja de renda ou de consumo. As experiências têm se demonstrado eficazes na ruptura e flexibilização do perfil do técnico. É um sistema de capacitação aberta, sem critérios generalizadores de métodos, planos, acompanhamento e avaliação, o que, a meu ver, pode ter aspectos bons e ruins, pois passa a depender tremendamente das pessoas que ministram a capacitação. Vejo dificuldades na utilização da metodologia, a não ser na fase de capacitação da equipe técnica, no que diz respeito aos métodos de abordagem da realidade e à sua eficácia de romper o saber técnico especializado.
Por sua vez, a metodologia Organização do Negócio Agrícola da Concrab entende a assistência técnica como dirigida não só à produção mas também à qualidade de vida. O estilo da assistência técnica tradicional é considerado problemático. Esta tradição não tem como prática o acompanhamento das atividades, sua especialização fragmenta o conhecimento da realidade, tem uma preocupação essencialmente produtivista e não assume os riscos da assistência técnica que ministra. O método de trabalho desta tradição trata o conhecimento especializado e tecnicista como um saber superior, o que freqüentemente leva a uma posição autoritária sobre o que o assistido tem que fazer. A metodologia da Concrab reconhece que os processos educativos devem se voltar para a transformação social, para o trabalho e a cooperação e para as várias dimensões do ser humano, concebendo o técnico como um educador. Para detalhamento da visão educativa que suporta o método veja MST (1996) e Concrab (1966a e 1966b). O método tem como pressuposto o assentamento enquanto unidade de produção que deve ser concebida como negócio agrícola. Para a concepção esquemática do negócio agrícola veja Concrab (1977). Os processos devem ser participativos. O plano é visto como um instrumento que articula, em mão dupla, a decisão dos assentados e sua organização, ambos visualizados como um único processo que é ao mesmo tempo decisório e organizativo. A lógica destes processos visa o acompanhamento e ao mesmo tempo deve levar ao questionamento, e tem, portanto, caráter educativo e crítico. Entendendo que o modo de trabalhar é educativo, ela sintetiza tal postura na frase “a forma forma”. Neste contexto, a capacitação é simultaneamente uma capacitação do técnico e do assentado, formando-o para a autogestão. A metodologia de acompanhamento contempla: 1) o conhecimento, que inclui a relação técnico-assentado acima exposta, considera as relações dos grupos sociais, as condições físicas e as demandas que se apresentam, assemelhando-se ao que tradicionalmente tem sido visto como diagnóstico participativo; 2) planejamento-acompanhamento, que parte do que existe (produção e mercados atuais). A experiência acumulada já permitiu criar banco de dados, tanto de um determinado assentamento quanto da Concrab, o que tem possibilitado a elaboração de orçamentos, cálculo de custos e a identificação de necessidades de capacitação segundo os problemas emergentes. O desdobramento disto tudo é a elaboração de projetos e planos; e 3) desenvolvimento-acompanhamento, que parte do que já existe nos momentos anteriores e elabora considerações sobre as possíveis novidades (novas linhas, culturas etc.), em um processo de readequação que também se apóia em banco de dados, orçamentos, custos etc., capacitando para a análise de custo-benefício. O bancos de dados, próprios e/ou de terceiros, e o programa Acant são os instrumentos básicos desta metodologia. O Acant é um programa de computador que foi gerado pelo Instituto de Economia Agrícola/SP e, por ter sido adaptado para ser usado nos assentamentos, requer computadores de baixo custo, facilmente compráveis em lojas de “sucata” eletrônica das grandes cidades. Este programa gera algumas peças analíticas, a saber: plano de contas (despesas e receitas); orçamento (gastos necessários); caixa (fluxo de entrada e saída monetária); gerenciamento (que permite análises, inclusive, de custos de produção); relatório mensal, que garante a transparência dos processos; plano de metas; e controles básicos. Esta metodologia, a meu ver, é a mais adequada ao Projeto Lumiar, pois é a única que envolve e acompanha o conjunto do processo. Garante ainda participação e transparência, viabiliza os processos educativos, não só de capacitação dos técnicos como também dos assentados, e sedimenta formas de organização e cooperação, necessárias à autogestão. Ressalte-se que esta metodologia associa a assistência técnica ao conjunto do assentamento, considerado-o como unidade produtiva – atende, pois, à questão da organização que está colocada na formulação e na concepção do Projeto Lumiar.
A metodologia Análise-Diagnóstico de Sistemas Agrários, da FAO (Freitas, Guanziroli e Groppo, s.d.) está voltada para a capacitação da equipe técnica e entende que o diagnóstico da realidade se constitui em uma análise de uso do espaço rural, em dado momento, em dada escala e a partir de determinados objetivos. Esta metodologia se desenvolveu como um desdobramento do métodos de análise da realidade agrária de Cornales e Ribier (1993). Sua adaptação para a capacitação de técnicos se refere, portanto, às relações entre instrutores, treinandos e a realidade regional, objeto do diagnóstico. É uma metodologia de ação educativa cujo ator é o técnico e o objetivo é a sua própria capacitação; não está concebida para operar na relação técnico-assentado. O diagnóstico deve ser multidisciplinar, apresentar objetivos precisos e seguir uma metodologia participativa, com visão abrangente da realidade a ser estudada. Seu pressuposto é o de que os agricultores sabem o que e porquê estão fazendo. O problema do técnico em capacitação é entender tal lógica. Para estimular a reflexão, o diagnóstico deve ser multidiciplinar e dinâmico. A estratégia da capacitação garante uma aproximação cada vez maior à realidade, a partir dos seguintes passos metodológicos: 1) Escala de trabalho, que deve ser definida em função da problemática sobre a qual se pretende intervir, não coincidindo necessariamente com os recortes administrativos ou territoriais; 2) Zoneamento, que deve levar ao exame e compreensão do material cartográfico e leitura da paisagem regional, o que implica análise da documentação pertinente, em percursos de campo e em entrevistas exploratórias. Neste momento, procura-se compreender as grandes tendências históricas dos principais fatores produtivos, formulando-se hipóteses sobre a formação histórica das desigualdades socioeconômicas e uma pré-tipologia, que assim organiza os próximos passos da pesquisa; 3) A pesquisa de campo é realizada com base em uma amostra cuja seleção é dirigida, de custo inferior à amostra aleatória, o que requer um bom pré-diagnóstico. A esta amostra aplica-se o questionário; e 4) As tipologias, que são construídas em função da problemática previamente definida, buscam simplificar a diversidade, identificando grupos de Unidades de Produção Familiar (UPF) com potencialidades e restrições similares, possibilitando, dentre outros, identificação do itinerário técnico, o sistema de cultivo e de criação, o sistema de produção e o sistema agrário, finalmente permitindo uma análise comparativa das UPFs. A metodologia contempla ainda a elaboração de propostas e suas compatibilidades que, por sua vez, deve considerar, além do caráter produtivista e a melhoria do bem-estar, a questão do gênero, a sustentabilidade ecológica, o ritmo de aprendizagem dos conhecimentos técnicos, a realidade econômica dos produtores e suas estratégias sociais e a devolução das propostas, que, então, implica na sua apresentação e discussão públicas com os atores sociais envolvidos (produtores, comunidades, instituições locais). A sua aceitação torna-se requisito para a continuidade do trabalho que envolve o detalhamento e adaptações a cada público-meta. A análise econômica visa estimar o lucro líquido. Sua comparação ao custo de vida da região permite identificar três níveis ou tipos de UPFs: aquele cuja renda líquida está abaixo do custo de vida regional, aquele que está logo acima e aquele com renda igual ou superior a duas vezes aquele valor. As UPFs que estão neste último nível são consideradas como tendo capacidade de acumulação e o seu sistema de produção serve de referência para a transformação das outras UPFs que estão abaixo. Formula-se então planos, projetos e políticas visando a transformação das UPFs mais malsucedidas na história regional. A meu ver, esta metodologia prepara o técnico para realizar um diagnóstico competente, rápido e de custo baixo, da situação das UPFs da região. Poderá certamente ser adequada ao diagnóstico e à história das UPFs dos assentamentos. Neste caso, a metodologia garantiria a participação dos assentados em três momentos: na entrevista exploratória, realizada com alguns; na pesquisa amostral, com os assentados selecionados; e, finalmente, na devolução das propostas, cuja discussão pública está aberta a todos. Um outro aspecto deve ser ressaltado: a metodologia visualiza as UPFs, não enfocando as formas de cooperação, o que vai requerer nova adequação metodológica para sua aplicação ao setor reformado. Em todo caso, no que se refere aos assentados, apresenta baixo nível de participação, escasso potencial educativo e de estímulo às práticas de organização da cooperação e não inclui instrumentos de acompanhamento e avaliação dos projetos discutidos e posteriormente implementados.
Finalmente, a metodologia da Assocene está centrada no estímulo a formas de cooperação, procurando romper com alguns conceitos associados às formas tradicionais de cooperativas. A ação Assocene se desloca da forma da cooperativa e de seus aspectos institucionais, sem no entanto desconsiderá-los totalmente, e se concentra no processo de cooperação, tendo em conta os objetivos a serem atingidos pelos que buscam organizar a cooperação. Não desenvolverei uma exposição detalhada da concepção da cooperação. No que nos interessa, ela poderá ser utilizada em complementação a outras metodologias e não pretende capacitar o técnico nem diagnosticar, planejar e acompanhar as atividades de desenvolvimento do assentamento. Poderá ter relevância na questão da organização dos assentados, que ressaltei anteriormente.
Gostaria de reafirmar, ao mesmo tempo em que finalizo estas notas, que as considerações anteriores não visam desmerecer ou valorizar metodologias e, sim, examinar suas adequações ao Projeto Lumiar. (A ordem dos comentários sobre as metodologias neste texto respeitou a sua ordem de apresentação na reunião referida. Esta se encerrou com atividades que buscavam uma síntese das posturas que seriam mais adequadas ao Projeto Lumiar. Infelizmente não pude acompanhar esta discussão até o final e não conto, neste momento, com a versão final dessa síntese).
Como aqui não cabem conclusões definitivas, espero que estes comentários estimulem o debate em um momento em que diversas decisões metodológicas estão sendo tomadas em todo o território nacional.
A importância que atribuo a estas questões se devem à minha convicção de que as decisões metodológicas não são nem política nem socialmente neutras, não são opções “inocentes” e condicionam as possibilidades futuras dos assentamentos.
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