Estudos Sociedade e Agricultura
Marcel Jollivet
A “vocação atual” da sociologia rural
Estudos Sociedade e Agricultura, 11, novembro 1998: 5-25.
Resumo: O texto traz a discussão sobre o “lugar” disciplinar e teórico da sociologia rural, argumentando que é preciso considerar as relações desta com a sociologia geral e outras ciências que estudam o meio rural e com a propria história da sociologia rural. O autor procura mostrar que a sociologia rural é, antes de tudo, sociologia. Definida pelo seu “campo de aplicação”, ela deve procurar necessariamente a interdisciplinaridade. Sua história, na França, está ligada às questões que a propria sociedade formula a respeito do meio rural, da agricultura e dos agricultores.
Palavras-chave: Sociologia rural; meio rural; história rural; sociedades rurais.
Abstract: The “Present Vocation” of Rural Sociology. This paper addresses the theoretical and discipline “place” of rural sociology, considering its relationships with general sociology, and with other sciences that study the rural world and the own history of rural sociology. First of all, rural sociology is also sociology. Defined by its “applied field”, the author must necessarily find out a link to other disciplines. In France, its history is associated with questions put by the own society concerning the rural world, Agriculture and farmers.
Key words: Rural Sociology; Rural World, Rural History, Rural Societies.
Artigo publicado originalmente em Ruralia, Revista da Associação dos Ruralistas Franceses (ARF). Traduzido por Maria de Nazareth Baudel Wanderley. Revisão técnica de Maria Clara Abalo.
Marcel Jollivet é diretor do Laboratório “Dynamiques Sociales et Recomposition des Espaces” do CNRS, França.
Para uma abordagem das questões atuais que se colocam à sociologia rural - o verdadeiro objetivo deste texto[1] -, é indispensável introduzir um quadro geral que esclareça a respeito da possibilidade de formulação dessas questões e mostre o sentido que é preciso trabalhar a fim de respondê-las. Este texto está organizado em torno de três eixos: um posicionamento da sociologia rural em relação à sociologia geral, que é o seu pressuposto absoluto; um posicionamento da sociologia rural diante das outras ciências sociais que estudam o mundo ou o espaço rural, o que se justifica pelas trocas importantes que ela tem com as mesmas - e, inversamente, as relações que as ciências sociais mantêm com a disciplina -; e uma reflexão sobre a curta história da sociologia rural, um preâmbulo indispensável para uma reflexão sobre sua presente situação e sobre o modo de perceber suas tarefas atuais e futuras.
Três referências básicas
A sociologia rural: aplicação da sociologia geral[2]A sociologia rural - antes de tudo, trata-se aqui da sociologia rural francesa, podendo, contudo, o que será dito ser generalizável - jamais reivindicou o estatuto (absurdo) de disciplina única, à parte.[3] Uma tal afirmação pareceria evidente. Em compensação, as conseqüências que necessariamente devem ser tiradas disto, são menos freqüentemente (para não dizer jamais) mencionadas e não são objeto da atenção que se impõe, se se pretende ver a sociologia rural como sociologia: se a sociologia rural, antes de tudo, é sociologia, ela pura e simplesmente se integra nas evoluções gerais - temáticas, metodológicas, teóricas - da sociologia. Isto, aliás, é patente, se se considera a sua própria história: é assim que ela, cada vez mais - ou simultaneamente - foi durkheimiana, funcionalista, culturalista, marxista, estruturalista, weberiana etc.
Não existe, portanto, “escola” de sociologia rural, mas, através da sociologia rural, há análises de inspirações teóricas diversas que propõem diferentes maneiras de integrar as dimensões sociológicas da atividade agrícola e do mundo rural em uma análise de conjunto da sociedade francesa e, mais largamente, das “sociedades industriais”. (Henri Mendras propôs inclusive uma teoria geral válida para todas as sociedades). Desta proposição - que também é uma constatação - decorre toda uma série de indagações: como a sociologia rural seguiu estas evoluções? Ela simplesmente as seguiu ou, a seu modo, contribuiu para provocá-las? Uma resposta suporia uma análise mais detalhada, o que não será feita aqui, porque isto exigiria uma pesquisa específica.
Sociologia rural e ciências sociais da ruralidade: uma escola ruralista?
Uma vez feitas as referências aos fundadores, pode-se continuar discutindo este tema que parece ser realmente central para a sociologia rural. Eis, por exemplo, o que escreveu Henri Mendras em 1958: “O ‘meio’ rural é um campo de investigação para todas as ciências sociais e seu estudo não poderia constituir uma disciplina autônoma. Os geógrafos que analisam as relações entre o homem e o meio natural e a distribuição espacial dos fenômenos humanos começaram naturalmente a se debruçar sobre o campo. A economia rural é um ramo (um dos mais antigos) da economia política. Ligando-se a um passado em que a agricultura era a atividade exercida pela maioria dos homens, a história social dá um grande destaque à descrição da vida camponesa. Os etnólogos estudam as estruturas ditas ‘arcaicas’ nas quais a busca ou a produção de alimentos ocupam todos os homens. Enfim, citadinos e rurais interessam igualmente ao psicólogo, ao demógrafo, etc. Enquanto homens iguais aos outros, os rurais também dizem respeito a cada ciência social. Entretanto, eles vivem em um meio particular que requer uma certa especialização do pesquisador e, às vezes, uma problemática diferente. Como o etnógrafo, o sociólogo rural deve, portanto, conhecer os métodos e as técnicas de todas as outras ciências sociais, a não ser que conte com a colaboração de uma equipe de diversos especialistas.” Encontra-se aqui uma profissão de fé que remete ao que se chama a interdisciplinaridade dos “ruralistas”.[4] A démarche do “ruralista” ambiciona integrar todas as dimensões do social, o tempo, o espaço, o local e o global. Trata-se de uma démarche que se qualificaria hoje de holística (ou holista).
Do ponto de vista sociológico stricto sensu, esta démarche se caracteriza também pela sua “transversalidade”. Isto aparece, por exemplo, particularmente nos planos das obras gerais de sociologia rural: por um desvio de alguma forma paradoxal, a sociologia rural, em princípio “especialidade” da sociologia, aparece de fato como uma sociologia “generalista” em si. O sociólogo rural se interessa por todo um conjunto de aspectos da vida social que é dividido, por sua vez, em várias “especialidades” da sociologia - sociologia política, sociologia da família, sociologia das religiões etc.
Portanto, é pelo seu “objeto” - seria melhor falar de “campo de aplicação” - e não por uma “teoria” ou uma “escola de pensamento” particular, que a sociologia rural se define. Deste ponto de vista, pode-se bem seguir Michel Robert (1986: 5-6) quando ele escreve: “Com suas duas correntes bem nítidas, a sociologia rural se definirá, portanto, mais pelo seu campo de ação do que por uma coloração teórica original. Nisto, pode-se compará-la à sociologia urbana na qual se pensa imediatamente, embora a sociologia rural não seja sua antítese. Estas duas disciplinas não são construídas uma em relação à outra, nem a fortiori, uma contra a outra. Tendo dividido entre si o espaço e seus habitantes, elas seguem cada uma a sua rota teórica sem mesmo ter sempre relações elementares que seriam desejáveis”. É o que diz também Henri Mendras, escrevendo no Traité de Sociologie de Georges Gurvitch: “Se não se limita a uma sociologia agrícola especializada, a sociologia rural se define, portanto, pelo seu campo de estudo, as sociedades rurais” (Mendras, 1958: 316).
É desta proposição que decorre uma interdisciplinaridade que “exige (pois) o concurso de todas as ciências sociais para chegar a uma integração dos diversos aspectos da vida rural. Nesta perspectiva, o sociólogo rural atribui a si mesmo uma dupla tarefa, por um lado, estudar os aspectos da sociedade que dizem respeito a sua ou a suas especialidades, e, por outro lado, reinterpretar e integrar, desde seu ponto de vista, os materiais que os pesquisadores de outras disciplinas lhe oferecem” (Mendras, 1958). Henri Mendras imediatamente acrescenta uma precisão que muda uma leitura à primeira vista estritamente “objetiva” da afirmação (no sentido de constitutiva de um “objeto” de uma certa forma “físico”): “Esta definição compreensiva parece-nos impor-se nos países de campesinato tradicional, notadamente na França. A sociedade rural conserva aí uma certa autonomia diante da sociedade global e é impossível reduzi-la a um grupo profissional, a um setor econômico ou a uma classe social, entre outros” (Mendras, 1958).
Segundo ele, a justificativa da sociologia rural repousa, assim, no postulado - que poderia também ser tratado como uma hipótese - da existência, “nos países que têm um campesinato tradicional”, de uma “sociedade rural” (?) que “conserva uma certa autonomia face à sociedade global”. Assim definido - esta é a definição de Henri Mendras, mas que pesou fortemente na sociologia rural durante pelo menos 20 anos - o objetivo da sociologia rural é, de uma certa forma, demonstrar a validade desta proposição (desta hipótese, poderíamos dizer). Daí, a ênfase posta progressivamente na “mudança social” que deslocará as “sociedades rurais” de seu estatuto de “autonomia relativa” - o das sociedades camponesas - à sua integração total à sociedade global - através da passagem dos “camponeses” à condição de “agricultores”, estes últimos cada vez mais vistos como “um grupo profissional... um setor econômico ou... uma classe social, entre outros”.
Uma hipótese forte cimenta as análises especificamente sociológicas de temas precisos do mundo rural: a de que existem laços estreitos entre os diferentes aspectos da vida social que leva a que estes aspectos sejam do domínio de diferentes áreas da sociologia ou de outras ciências sociais - a economia, a geografia, a etnologia, e a história, evidentemente - e a se reconhecer que é preciso, portanto, tratar de considerar todos estes aspectos conjuntamente como condição para compreender as evoluções do mundo rural e lhes dar uma interpretação verdadeiramente sociológica. Daí a busca constante da transversalidade no seio da sociologia e da interdisciplinaridade com as outras ciências sociais dedicadas ao tema. Daí, também o risco que os sociólogos rurais correm de parecerem fechados - juntamente com os outros “ruralistas” - limitados ao estudo do mundo rural “específico” e “fechado”. De fato, uma análise detalhada dos trabalhos dos sociólogos rurais mostraria que não se trata disto e que a preocupação de situar as evoluções do mundo rural no interior das evoluções da sociedade global é constante e sistemática. Deve-se sublinhar que esta dupla preocupação já é uma característica forte da sociologia rural, mantendo ao mesmo tempo suas preocupações com uma coerência de uma certa forma “interna” ao “mundo rural” (a expressão assume aqui todo o seu sentido) e com a integração deste conjunto a uma lógica global (uma coerência, de uma certa forma “externa”) de uma sociedade dita “englobante” para marcar esta “exterioridade atuante”. Pode-se dizer que esta é uma proposição e uma “postura” sociológicas de caráter geral e básico (que exigiria, diga-se de passagem, um exame aprofundado): ao mesmo tempo um exercício difícil de se fazer, uma espécie de desafio difícil de se manter. Mas, afinal de contas, não é o que torna interessante e mesmo justifica uma démarche de sociologia aplicada a qualquer uma das malhas, elementos ou aspectos da vida social? Em suma, não é essa uma das exigências fundamentais da análise sociológica e, portanto, do próprio trabalho do sociólogo?
Sociologia rural e sociedade: dentro e fora
Uma análise mais atenta da história da sociologia rural mostraria sem dificuldade o quanto esta história está ligada, através de suas temáticas - e talvez precisamente através da própria orientação de suas análises - às questões que são colocadas (às vezes, inclusive nos termos em que são postas) a respeito do mundo rural, da agricultura e dos agricultores na própria sociedade francesa. Não me parece esquematizar excessivamente se disséssemos que cinco e principais temas organizaram ao longo do tempo o questionamento que sociólogos rurais constantemente se têm feito através de ponderações variáveis e de enunciados igualmente diversos, se comparados os momentos em que são apresentados.
O primeiro deles diz respeito às relações - e mais precisamente, na linguagem da época, à oposição - cidade-campo. Este velho tema, que reaparece com mais força desde o final da guerra, tem um lado “acadêmico”: ele remete a antigas reflexões dos geógrafos e dos historiadores. Mas a forma como é retomada no pós-guerra corresponde muito diretamente a preocupações sociopolíticas maiores. Tratava-se então de lançar a França a uma política de reconstrução, industrialização e modernização e a questão que se punha era a de saber se esta componente essencial da sociedade que são os campos - entendamos “agrícolas” - na França dos anos 1950 será capaz de se adaptar às mudanças indispensáveis. Para a cidade, “civilização de conquista”, como Braudel a caracterizará mais tarde, a questão não se coloca: apenas se põe a questão de saber o que vai acontecer com elas em uma fase de crescimento rápido - o que será a questão central e “organizadora” da sociologia urbana. Está-se, assim, em um campo sócio-político e a sociologia rural vai tomar para si, sob diferentes formas, as questões decorrentes. Estas questões ressurgem periodicamente durante todo este meio século, com as formulações que evoluem em função das mutações sociais, econômicas, demográficas, etc. Algumas noções servem de referência nesta interrogação permanente da sociedade francesa sobre si mesma: desertificação (dos campos), rurbanização, terras não cultivadas, uniformização (dos modos de vida), morte (ou renascimento) do rural, etc. A sociologia rural - mas as outras ciências sociais igualmente o são - é constantemente interpelada pelo que se poderia chamar o “discurso social” sobre o rural. Ela também tenta dar as suas respostas.
Se nos fixarmos na cronologia, parece-me que o segundo tema a evocar é o das transformações da agricultura, não só do estabelecimento agrícola, e do trabalho do agricultor, mas também - tendo em vista o estreito laço entre o estabelecimento e a família - a transformação da família agrícola. Trata-se aqui do domínio da política agrícola que ocupa um lugar crescente na vida política a partir dos anos 50 até hoje. Tendo experimentado uma considerável “modernização”, sob o impacto de um movimento social poderoso e dinâmico na Quinta República - já em curso na Quarta, mas uma das grandes construções daquela - a agricultura ocupa um lugar de destaque na vida social - e sobretudo política - nesse período. Uma tal voragem sociológica era, evidentemente, um estímulo para os sociólogos rurais, a tal ponto de a sociologia rural ser considerada, com justiça, como tendo sido largamente infiel a sua vocação para se reduzir a uma sociologia dos agricultores (Robert, 1986).
O terceiro tema, que já aparece no primeiro e prossegue no segundo, é o do lugar que os camponeses, e depois, os agricultores, ocupam na sociedade francesa e, mais particularmente, na estrutura e na vida política do país. Esta questão não é apenas o pano de fundo das transformações em curso, tanto nas relações entre a agricultura e a economia nacional, quanto nas relações entre cidade e campo: ela é claramente colocada pelos líderes do movimento social dos “jovens agricultores” (Debatisse, 1963; Lambert: 1970) e por aqueles que se poderia chamar de seus “intelectuais orgânicos” (Faure: 1966). Esse tema constitui, como já se viu, um dos capítulos inevitáveis - e, por assim dizer, até mesmo, uma forma de conclusão - em qualquer apresentação de conjunto da sociologia rural.
O quarto tema, embora tenha surgido bem depois e mais como uma resposta a ele, poderia ser incluído no primeiro como um dos seus itens. Trata-se do tema do desenvolvimento local, inicialmente com o movimento das localidades (“pays”), o slogan “viver em sua própria localidade” (vivre au pays); depois, com as políticas de desenvolvimento rural, seus múltiplos recortes espaciais e procedimentos às vezes bastante inovadores na ação da administração (com a introdução dos planos de desenvolvimento rural, por exemplo). E hoje com os debates sobre o futuro do mundo rural no quadro de uma política de organização do território.
Um último tema deve, enfim, ser evocado (embora este texto não pretenda exauri-lo): o do meio ambiente. É a questão mais nova, mesmo que sejam muitos os seus antecedentes que podem ser encontrados na sociologia rural (Mathieu & Jollivet, 1989). Como “discurso social”, ele é incontestavelmente um tema recente. Nele pode-se incluir a referência, tão atual quanto florescente, às paisagens. E, de forma mais geral, o problema das relações com a “natureza”, que constitui o pano de fundo - para não dizer o próprio fundamento - da questão do meio ambiente. Se não foi a partir da agricultura e do campo que as preocupações ambientais tomaram corpo (as primeiras vieram com a indústria e suas “poluições”), a agricultura, os recursos naturais renováveis (a água em particular, mas também os solos, as florestas, etc), a qualidade dos produtos agrícolas e do espaço rural não tardaram a entrar em cena, e mesmo a ocupar um lugar especial no tema do meio ambiente. Os “ruralistas” - e em particular os sociólogos - no campo das ciências sociais, foram os primeiros a se interessar por estas questões, a ponto de Bernard Kalaora dizer que seria necessário que as pesquisas em ciências sociais sobre o meio ambiente se liberassem da influência daquelas, influência julgada excessiva e tendente a se fechar.
Até aqui, esta lista de temas recobre o essencial e ilustra suficientemente o nosso propósito, de apenas chamar a atenção para a estreita correspondência entre as grandes temáticas da sociologia rural e o que se poderia chamar as “questões da sociedade”. Em função da ótica considerada, três observações podem ser formuladas. Primeiro, foi sem razão que se acusou a sociologia rural de se fechar em sua “torre de marfim”; ao contrário, ela tentou trazer suas respostas às interrogações da sociedade que eram de seu domínio. Segundo, teria ela, ao fazer isto, pecado por um excesso de oportunismo? Foi ela, afinal, “teleguiada” de alguma forma pela “demanda social?” Observemos, desde logo, que parece lógico que as ciências sociais tratem dos problemas que se colocam na sociedade e para os quais elas são competentes. Sobre este ponto, notar-se-á que todos os temas evocados fazem parte da matriz inicial da sociologia rural. De fato, estes temas são mais recorrentes que sucessivos; apenas, ao “gosto do dia”, suas formulações sucessivas lhes dão uma aparência de novidade irredutível. Ao contrário, o que devem fazer as ciências sociais é precisamente mostrar que se trata de avatares, de desenvolvimentos circunstanciais de questões de fundo. Para isto, o que elas devem fazer é igualmente abandonar o discurso comum, na medida em que este é susceptível de ocultar os problemas reais. Emprega-se aqui uma fórmula da qual a prudência esconde mal a pretensão, para não dizer a imprudência: cada ator social tem sua concepção do que sejam os problemas reais - são aqueles que eles enfrentam em sua ação ou em seus interesses imediatos. Mas esta “pretensão” é a mesma da sociologia, que é a de evidenciar as “lógicas sociais” implícitas ou, até mesmo, aquelas que escapam à consciência dos atores, e cujos discursos não podem, enquanto tais, dar conta, e ainda menos lhes fornecer, as suas razões.
Se a sociologia rural foi acusada de permanecer em sua “torre de marfim”, não teria sido porque ela nunca aceitou responder às questões tal qual estas lhe foram colocadas - e isso talvez faça uma grande diferença em relação à economia (ou pelo menos a uma certa economia) e à geografia (ou pelo menos uma certa geografia). Ao contrário, a sociologia rural opôs sua formulação própria dos problemas à dos atores profissionais e do Estado? Por sua “distância crítica” em relação ao real, esta atitude é uma das grandes características da sociologia rural francesa e um dos pontos sobre os quais ela mais se diferenciou da “sociologia agrícola” de inspiração americana - e em vigor especialmente na Holanda, por exemplo. Deste ponto de vista, uma análise comparada das duas démarches, no domínio das pesquisas sobre a inovação, seria muito instrutiva. Portanto, uma sociologia rural muito sensível aos avatares do questionamento social sobre o rural - e, digamos, quase próxima do seu “objeto” - e que conserva o seu modo próprio de ver: eis aí, ao que parece, a característica da sua “postura” durante este meio século de sua história.
A terceira questão que pode ser colocada consiste em saber se a sociologia rural conseguiu, no curso deste período, elaborar um instrumental intelectual à altura de suas ambições. Sobre este balanço, os pontos de vista e as avaliações são evidentemente diferentes. Além disso, querer responder com precisão a tal questão seria uma pesada tarefa. A crítica que ela fez ao discurso da “rotina camponesa” ou, mais tarde, ao movimento “neo-ruralista”, a sua análise crítica do processo de inovação - que assume hoje, com a renovação das questões sobre as “tecnologias”, um novo relevo - e ao “modelo de desenvolvimento” operado pela política agrícola a partir dos anos 60 (agora questionado), configurando os dois grandes esquemas analíticos que ela propõe para compreender as evoluções contemporâneas da agricultura e das sociedades rurais nas sociedades ditas “industriais”, são, entre outras, algumas pistas para realizar aquele balanço. A propósito, o que se pode dizer é que essas questões têm importância e mereceriam hoje um exame atento para que possamos, o mais preparados possível, abordar as tarefas futuras.
Estes são elementos gerais básicos para um “enquadramento” da sociologia rural, e que parecem indispensáveis para a discussão presente.
Questões atuais
Duas questões definem o essencial: a sociologia rural, tal como foi herdada das últimas quatro ou cinco últimas décadas, tem ainda pertinência? Se sim, qual seria essa pertinência? qual a base das suas problemáticas e “objetos”?
No que se refere às justificativas da sociologia rural há duas maneiras possíveis de ver as coisas. A primeira consiste em afirmar que a sociologia rural nunca teve pertinência e sempre foi um artefato ideológico. Esse tipo de atitude pode ser vista sob dois ângulos: um remete à história, o outro, a uma epistemologia da sociologia. Considerada no primeiro aspecto, aquela atitude equivaleria a uma negação da história social que vai da sociedade feudal à sociedade industrial ou, pelo menos, à recusa da idéia de que as sociedades industriais possam conservar traços, e inclusive estruturas, herdadas das sociedades agrárias de onde elas procedem. Considerada do ponto de vista da estrutura interna da sociologia, ela suporia a existência de um esquema de referência teórico aceito por todos os sociólogos, que formularia questões-chave estruturantes da disciplina em torno das quais o trabalho da comunidade dos sociólogos se organizaria. Deve-se precisar ainda que, mesmo neste caso, seria preciso sociólogos competentes no estudo dos aspectos da realidade social em questão para realizar de maneira rigorosa e informada as pesquisas necessárias. Em outras palavras, ter-se-ia, neste caso, uma visão essencialista e idealista, tanto da sociedade quanto da sociologia, que em nada corresponde, nem ao caráter basicamente empírico da sociologia, nem às exigências da especialização dos conhecimentos pela divisão do trabalho científico.
A segunda maneira de negar a pertinência da sociologia rural é indagar se o “objeto” que ela reivindica como seu - as “sociedades rurais” - continuam existindo (se é que existiram em algum momento). Segundo esta maneira de ver, o “rural” não existe mais. A identificação de um ramo da sociologia que se dedica a sua análise pôde se justificar, mas não se justifica mais atualmente. Deve-se notar que uma tal afirmação é coerente com a definição de Henri Mendras, de “sociedades rurais camponesas”, acima lembradas. Se, como este autor afirma, as “sociedades rurais”, como as que se presume existir nas sociedades industriais, desaparecem quando os camponeses se transformam em agricultores, a sociologia rural não tem mais razão de ser em uma sociedade sem camponeses - isto é, na qual os camponeses se tornaram agricultores, como, ainda segundo Henri Mendras, é o caso da França. E isto, poder-se-ia acrescentar com maior razão, se tais “sociedades rurais” são habitadas cada vez menos por populações de agricultores e cada vez mais por trânsfugas da cidade ou por assalariados das zonas rurais industrializadas ou terciarizadas. É claro que estamos aqui no cerne do problema. É, portanto, interrogando-se sobre as problemáticas atuais com as quais ela poderia se ocupar, que seria possível justificar a pertinência ainda hoje da sociologia rural.
Que problemáticas e que objetos? Esta reflexão se inscreve no prolongamento da análise acima desenvolvida, distinguindo os dois contextos em relação aos quais as evoluções da sociologia rural parecem estar referidas - ou, em outras palavras, os dois planos sobre os quais elas devem ser examinadas - a saber: o questionamento social, por um lado e, por outro, as interrogações vindas da - ou referentes à - própria sociologia. Pode-se acrescentar uma terceira dimensão que remete a um movimento de conjunto que diz respeito ao questionamento científico considerado globalmente.
O questionamento social e a sociologia rural
Quatro séries de questões podem ser colocadas, mas seria necessário, apoiando-se em um corpus de textos ad hoc, aprofundar a análise para sermos mais precisos neste ponto. Um primeiro bloco de questões gira em torno da diminuição da população ativa agrícola e suas conseqüências: há um debate particularmente aberto sobre o tema do número de estabelecimentos agrícolas (inclusive sobre o número que se deve ter como meta) que haverão de subsistir nos futuros dez ou vinte anos. Esta primeira discussão se prolonga em outra, que trata da evolução da população dita rural. Para caracterizá-la, basta remeter às reflexões sobre o “renascimento” rural. Estas reflexões desembocam em todo o debate sobre o futuro do espaço e do mundo rurais e sobre quais deveriam ser as políticas que lhes dizem respeito. Um outro debate refere-se mais diretamente à agricultura e ao modelo de desenvolvimento - em crise - que ela vem adotando há um terço de século; os termos que aparecem aqui são “diversificação”, “extensificação”, “pluriatividade”, “produtividade”, etc. Trata-se, antes de mais nada, de definir sistemas técnicos de produção que levem em conta, de um lado, as trocas e os mercados (e não mais os temas centrados apenas na intensificação da produção) e, de outro, as evoluções contraditórias nos domínios técnicos (com as biotecnologias e as técnicas “extensivas”); em seguida, convém redefinir o estabelecimento agrícola e a atividade profissional dos agricultores em seus próprios fundamentos - com o necessário abandono à referência às “2 UTH” (unidade de trabalho utilizada como referência nas análises sobre a moderna agricultura familiar). É preciso ainda analisar as conseqüências do modelo de desenvolvimento - por exemplo, através do grupo dos agricultores em dificuldade - e, enfim, levar em conta, simultaneamente, os movimentos de mundialização das relações de troca entre os grandes produtos básicos e o desenvolvimento dos circuitos curtos dos produtos mais especializados etc. Em uma palavra, trata-se de repensar o desenvolvimento. O último debate a ser feito refere-se ao meio ambiente, considerando, quer as reivindicações das populações locais relativas a sua situação de vida, através dos conflitos, quer a emergência de políticas relacionadas com as novas funções do espaço rural, através da necessidade de se conceber os sistemas de produção agrícolas “respeitadores do meio ambiente”, ou ainda através das tensões produzidas pela intervenção da regulamentação européia sobre a matéria etc.
Diante desta avalanche de questões e de argumentos contraditórios, o sociólogo tem uma sêxtupla tarefa a cumprir. Ele deve, antes de mais nada, clarificar o discurso por sua análise interna - quem os emite? com que coerência? no quadro de que estratégias e com que objetivos? - e inversamente, ele precisa evidenciar o que se poderia chamar os “silêncios significativos”, isto é, as questões reais que não são objeto de nenhum discurso. Após o enunciado da questão, em termos sociais e ideológicos, deve passar à sua formulação sociológica, o que implica em evidenciar suas dimensões propriamente sociológicas e/ou dos objetos referidos; é necessário, ainda, estabelecer os fatos para se ter uma distância em relação aos discursos e, ao mesmo tempo, dar uma imagem “objetiva” das evoluções e situações reais e proceder ao que se poderia chamar uma “crítica externa” do discurso; é igualmente indispensável recolocar tais evoluções e as interpretações que o sociólogo pode fazer sobre o passado no médio e longo prazos; assim procedendo, ele enriquece o seu aparelho analítico e oferece os meios para escapar dos desvios da interpretação de curto tempo e sem recuo - freqüentemente associada a uma visão dramática, catastrofista das coisas - tanto das mudanças em curso, de sua amplitude real, quanto dos discursos que elas suscitam; o sociólogo também deve demonstrar que as suas análises enriquecem o conhecimento da sociedade francesa, através de uma melhor compreensão dos processos sociológicos e da sua adaptação às transformações gerais nas quais o país está inserido; em suma, ele tem de mostrar que as suas análises robustecem o corpus teórico da sociologia.
O questionamento sociológico e a sociologia rural
A sociologia rural trata de todos os aspectos da vida social no campo. Ela pode, assim, dar uma contribuição em todos os capítulos da sociologia. No entanto, qual seria, precisamente, tal contribuição, se se estima que os agricultores já se tornaram um “grupo profissional”, entre tantos outros e se as “sociedades rurais”, em conseqüência, também já perderam toda a sua “autonomia relativa”, isto é, se as duas razões de ser da sociologia rural desapareceram? Duas observações podem ser feitas em relação a esta maneira de colocar o problema.
Primeira observação: aquelas duas assertivas - as quais, de fato, são apenas uma só - devem ser tomadas como verdades estabelecidas? Não poderiam ser tratadas como hipóteses, e, enquanto tais, serem submetidas a exame e, então, serem confrontadas com observações empíricas realizadas em trabalho de campo? Admitir a afirmação segundo a qual os camponeses tornaram-se agricultores (empresários, “agro-managers”, “molecultores”...) é ir um pouco depressa demais; é ocultar toda uma diversidade de situações que corresponde a uma multiplicidade de vias experimentadas num processo de adaptação - esta também podendo assumir uma variedade de formas - a um contexto incerto, aberto e complexo. A pluriatividade, as formas associativas, a diversificação produtiva voltam a ser temas da ordem do dia que precisam ser considerados para caracterizar sociologicamente a situação atual dos agricultores. A sociologia rural foi pioneira nas análises sociológicas do trabalho não-assalariado, da inovação nos setores produtivos não-industriais, das relações entre o pequeno produtor independente e os setores industriais a montante e a jusante, etc. Tais análises devem ser retomadas atualmente por duas razões: primeiro, porque a situação dos agricultores evolui rapidamente; depois, porque o contexto que a sociedade global constitui está, ele próprio, em processo de rápidas mutações. O mesmo pode ser dito a respeito das “sociedades rurais”. É possível indagar sobre a equivalência estabelecida por Henri Mendras entre “sociedades rurais” e “sociedades camponesas”. O mínimo que se pode dizer é que ela coloca um problema histórica e geograficamente; mas ela não é válida para todos os períodos históricos, nem para todos os campos. Toda tentativa de generalizar ao conjunto da Europa - sem falar do conjunto do mundo - uma tal proposição leva a sublinhar seus limites. Existe um verdadeiro hiato - para não dizer uma contradição fundamental - entre a análise de um longo período de transformações estruturais do campesinato e a análise, antes de mais nada, de alguma forma espacial do que podemos chamar de uma “sociedade local”. Que se possa fazer um cruzamento entre as duas análises é, não somente certo, mas ainda indispensável. Reduzir, porém, pura e simplesmente, um - a “sociedade local” - ao outro - o campesinato - é arbitrário: existem outras “sociedades locais”, além das “sociedades camponesas”, e uma abordagem atualizada das “sociedades rurais” deve ser precisamente, a das transformações de uma “sociedade local” de base agrária em direção a uma “sociedade local”, seja esta transição para uma formação de base não-agrária, seja para uma outra já sem fundamentos agrários. Além disso, este procedimento deve se situar no quadro de uma análise das transformações da sociedade global e, em particular, dos seus processos de reestruturação sociopolítica. Não há apenas o campesinato, cujo lugar na estrutura e na vida política se vincula ao poder local, um poder local que, nos 36.000 municípios, que representam o futuro do espaço rural, está longe de ter um peso insignificante no conjunto do sistema político. A análise do que se poderia chamar um “sistema social localizado”, considerado enquanto “sociedade” (local), é também um domínio no qual a sociologia rural investiu particularmente. Sobre este ponto poder-se-ia comparar o seu procedimento com o da sociologia das organizações. As transformações sociais internas radicais que os municípios conhecem, as novas funções que deles se espera, as recomposições espaciais às quais são levados, a emergência de novas solidariedades territoriais - os novos “territórios rurais” - e também as novas problemáticas e os novos conflitos, todas são razões para se repensar a teoria sobre a profissão e para se criar um novo quadro de análise que permita caracterizar sociologicamente os “villages” enquanto “sistema social” e, por esta mesma razão, analisar o papel que eles representam no processo de integração social - através das suas funções tanto institucionais quanto simbólicas e notadamente identitárias. Tanto em um caso como no outro, é uma sociologia da “transição” - ou da mudança social - que é requerida e isto supõe análises finas, minuciosas e circunstanciadas capazes de perceberem as continuidades e as transformações nos processos de reprodução da sociabilidade e o sentido do ser-conjuntamente, enfim, da relação social. A hora, portanto, é a de um retorno maciço e metódico às pesquisas de campo, porque faltam as observações concretas para fazer um contrapeso à crescente invasão de discursos, imagens e estatísticas que constroem o “senso comum” nesse nosso tema.
Agora, a segunda observação: mesmo supondo que os camponeses tenham se tornado agricultores e que as “sociedades rurais” tenham deixado de ser “sociedades camponesas”, em que haveria uma forma de “banalização” tal que pudesse retirar todo o interesse à análise sociológica de uns e de outros? Aqui há uma atitude que se parece àquela segundo a qual nós teríamos chegado a uma espécie de “fim da história”. Evidentemente, isso é uma ilusão de ótica: os “agricultores”, os “municípios rurais” e outros vilarejos e pequenas cidades continuarão a existir; a profissão, a condição social, a cidadania dos primeiros, a fisionomia e as funções sociais e territoriais dos segundos continuarão a evoluir; e tudo isto continuará a fazer parte da sociedade global, isto é, a ser associado a suas evoluções e a pesar também sobre elas. A questão que se coloca é a do interesse de uma análise sociológica destes fenômenos. Porém, precisamente, como prejulgar este interesse? Tudo o que se pode fazer não é formular hipóteses sobre o que poderia ser, levando em conta, ao mesmo tempo, as competências, os saberes e os conhecimentos adquiridos de um lado e, de outro, as questões que parecem dever ser consideradas como as questões centrais de hoje? Em todo caso, não é porque estes problemas não ocupam o primeiro plano na mídia que não devem mais ser estudados. Deste ponto de vista, pode-se, a título de exemplo, propor uma série de questões importantes para uma sociologia especializada na análise do atual mundo rural. Inicialmente, interrogações sobre as formas sociais de mobilização do trabalho agrícola: seria a contribuição de tal sociologia para uma sociologia do trabalho, em um setor produtivo sobre o qual se pode dizer que faz parte das “indústrias pesadas” mas não está baseado no modelo da grande empresa com salariado. Questões, em seguida, relativas aos processos de socialização, os fundamentos, os contextos, as formas e o conteúdo da sociabilidade naquilo que, por uma comodidade pelo menos provisória, poder-se-ia chamar as sociedades “de villages” ou “de fraca dimensão”. Ter-se-ia, aqui, uma contribuição para uma sociologia da relação social, da integração e da exclusão em “contextos” sociológicos bem definidos e diferentes dos subúrbios e dos bairros urbanos. Questões, ainda, referentes aos fundamentos das reestruturações sociais locais e às transformações das relações locais de poder subseqüentes às evoluções das estruturas agrárias, da economia agrícola e da composição social da população rural. Estas análises de sociologia política permitiriam evidenciar e compreender as atuais mudanças em curso no controle de uma parte, especial e quantitativamente importante do poder “territorial”, uma das bases da pirâmide dos poderes, em um momento em que ele adquire cada vez mais relevo. Em suma, questionamentos sobre as evoluções das solidariedades territoriais sob a influência, tanto das políticas de cooperação intermunicipal, quanto dos novos tipos de pressão ou de dependência de ordem espacial. Isto se traduz naquilo que se poderia chamar “dispositivos locais de ação”, os quais constituem novos modos de socialização do espaço e de regulação dos conflitos. Esta é uma outra vertente de uma sociologia do político, percebida aqui sob o ângulo das relações entre o Estado, a sociedade civil e o território - no caso, o território ”rural” que representa uma problemática particular em razão da importância de seu lugar no conjunto do território nacional, da fraca densidade relativa de seu povoamento, das múltiplas pressões que recebe e das expectativas as mais contraditórias que se tem sobre ele. Por fim, interrogações sobre a noção de rural como categoria simbólica da representação que a sociedade constrói sobre si mesma. Dedicar-se a esta análise seria tanto mais judicioso quanto o termo volta hoje à ordem do dia. Também seria interessante ver em que medida o seu sentido não está, justamente, em vias de se emancipar do seu conteúdo agrícola tradicional, e ainda em que medida, portanto, esta mutação também não estaria exprimindo a necessidade de uma continuidade tanto simbólica quanto prática - e neste caso, a questão se coloca em dar sentido a esta necessidade de continuidade - ocultação de uma ruptura e, ao mesmo tempo, um começo de reconhecimento desta ruptura. Estas são apenas algumas pistas. Outras já estão bem exploradas - como a análise da evolução do lugar dos agricultores na sociedade e a de seus comportamentos profissionais e políticos, por exemplo. Evocá-las aqui, tem por objetivo apenas mostrar que numerosos são os temas de pesquisa de dimensão geral que se pode abordar através das evoluções do mundo rural - e quanto muito, para serem tratadas, exigem que os seus aspectos referentes à “ruralidade” sejam analisados como facetas incontornáveis das evoluções da sociedade (no caso, francesa) tomada em seu conjunto. Cabe ainda aos sociólogos decifrar os discursos e as políticas, confrontá-los aos fatos e evidenciar a forma como a sociedade - no caso, a francesa - utiliza - ou não - o seu passado “rural” para se adaptar ao presente. Esta proposição é generalizável a todas as formações sociais nacionais; ela deve particularmente ser aplicada ao conjunto dos países europeus, no quadro de uma análise dos processos de “integração” européia. Tal extensão à Europa da “construção rural” representa uma ocasião excepcional de renovação das problemáticas, ao mesmo tempo que é uma exigência que se poderia qualificar de histórica, uma vez que ela remete a uma história em curso. A abertura a uma abordagem comparativa internacional, de uma forma geral, é uma necessidade.
Para caracterizar este conjunto de pesquisas a realizar, seria melhor falar de uma “sociologia do rural” (Lagrave, 1991) ao invés de uma “sociologia rural”? Por que não, se isto clarifica as coisas? Mas, que esta condição não leve a pensar que a “sociologia rural” não tenha sido precisamente senão uma “sociologia do rural”, e que haveria de alguma forma uma mutação a fazer: seria necessário acreditar em uma ruptura radical que, de fato, não tem razão de ser e criar um contra-senso sobre o próprio “rural” e sua inserção na sociedade global. Seria preciso também que os sociólogos que se lancem a este gênero de pesquisas tenham uma cultura em ciências sociais suficiente para abordar o rural e notadamente para situar as suas evoluções presentes na história de suas relações com a sociedade global.
O movimento científico e a sociologia rural
Desde o começo dos anos 1970 - há quase um quarto de século, ainda mais claramente nestes últimos anos - assiste-se a uma evolução muito nítida da concepção das relações entre ciência e sociedade, entre as diferentes ciências e, mais particularmente, entre as ciências sociais e as ciências que podem ser globalmente qualificadas de “ciências da natureza”. São várias evoluções, de fato, ligadas umas às outras. Todas elas procedem de interrogações em curso há vinte anos, que revêem, cada vez com mais insistência, o tema das desigualdades sociais crescentes, os fenômenos de marginalização, que atingem proporções crescentes da população na maioria dos países, o do desemprego e a questão do lugar e o papel do trabalho na socialização e integração social e, enfim, a questão do meio ambiente.
Essas interrogações põem em questão um certo “credo” no “progresso técnico”. E em conseqüência, a concepção da pesquisa científica que se situa a montante da técnica. Procura-se uma ciência mais preocupada com suas próprias conseqüências, tanto sobre a sociedade quanto sobre o meio ambiente - quadro da vida imediato e base de vida a longo prazo. Isto quer dizer que são descobertas múltiplas relações entre fenômenos de ordens muito diferentes, em cujo estudo a ciência tem o hábito de estabelecer cortes, triar o que é pertinente para cada pesquisador em sua própria disciplina e separar o resto. O caminho que assim se abre é balizado por palavras-chave, tais como “complexidade”, “análise sistêmica”, “modelização”, “interdisciplinaridade”...
A sociologia rural está diretamente implicada nestas evoluções, e de múltiplas formas. Ela o está por alguns dos seus temas e pelos elementos da vida social que estuda: a agricultura, enquanto atividade de rápida inovação tecnológica - donde o êxodo agrícola que alimenta o desemprego e provoca a migração rural; contraditória - de um lado, as biotecnologias e a informática, de outro, a extensificação e a agrobiologia - e também controversa - superprodução, problemas de qualidade da produção e do meio ambiente. A agricultura enquanto setor de atividade aplicada ao ser vivo (animal e vegetal), que se utiliza dos recursos naturais renováveis - a água, os solos, os recursos genéticos, as populações animais e vegetais - , e transforma os meios - a água, os solos, os ecossistemas, a atmosfera. Tudo isto faz dela um dos domínios privilegiados, e dos agricultores, um dos grupos sociais mais ricos em ensinamentos para o estudo das relações entre o social e o técnico, da mesma forma que entre o social e o técnico, não somente em seu âmbito, mas também entre o social, o técnico e a natureza em relação a todos os tipos de sociedades. O mesmo acontece com o rural, no qual o ambiente natural predomina sobre o construído, embora seja socialmente apropriado, social e economicamente utilizado e vivido, criado, modelado pelas práticas e pelas técnicas, um rural herdado da história e constantemente remanejado. Esse rural oferece campos os mais variados para uma análise das relações sociais organizadas entre uma coletividade humana - uma sociedade? - e os meios naturais.
A sociologia rural também está implicada nos seus próprios procedimentos. Para tratar destas questões, a interdisciplinaridade entre ciências sociais constitui um trunfo: é na interdisciplinaridade que existe entre os ruralistas que reside a oportunidade para reforça-la ou reanimá-la. Essa vantagem aparece com seus próprios problemas, com a necessidade de se situar em diferentes dimensões simultaneamente que vão do nível do village a do planeta, passando pelo microregional, o regional, o nacional e o europeu. Reencontra-se, assim, o procedimento holístico na medida em que a análise sistêmica pode ser considerada como uma de suas versões. O que a sociologia rural - mas isto também é válido para as outras ciências sociais do rural tem a aprender é a estender o seu projeto interdisciplinar às ciências da natureza que analisam os “sistemas naturais” envolvidos com os “sistemas sociais” que ela estuda.
Para concluir, é preciso voltar a duas questões essenciais. É cada vez mais pertinente querer analisar em termos sociológicos as evoluções do mundo rural? Hugues Lamarche explica que não é porque a unidade de produção agrícola não é mais “camponesa” - termo que precisaria ser bem definido - que ela não é mais “familiar” (Lamarche, 1991-94). É preciso assegurar os meios que caracterizam sociologicamente esta forma particular de organização produtiva e de mobilização do trabalho que é a atual unidade de produção agrícola, distinguindo-a - se isto se justifica - de sua forma “camponesa” anterior, tentando compreender de onde procedem suas formas específicas. Poder-se-ia “declinar” este modo de ver de múltiplas maneiras. Por exemplo: não é porque os agricultores não são mais camponeses - isto é tão evidente? - que eles não constituem um “grupo profissional”, que ocupa um lugar bem determinado na estrutura social das sociedades capitalistas. Ou ainda: não é porque a população agrícola não é mais dominante na população rural que a “ruralidade” não existe mais etc... O que é preciso fazer, cada vez mais, é saber dar conta de maneira precisa dos processos, das evoluções e das características sociológicas daquilo que se estuda. E importa que tudo isto seja feito porque são componentes da sociedade global, cujo estudo é necessário para compreender as transformações gerais e as vias pelas quais estas se produzem. E tanto mais indispensável quanto o peso destes componentes geralmente é subestimado, senão negligenciado, pelos sociólogos que se ocupam destas questões.
A segunda questão refere-se ao fato de saber se para realizar essas tarefas há necessidade de sociólogos que se qualifiquem como “rurais” e de uma sociologia dita “rural”. Em resposta a esta questão, uma observação vem logo à mente: os sociólogos rurais, evidentemente, não têm nenhum monopólio a reivindicar nos domínios que são hoje de sua predileção. Se a pesquisa de questões “transversais” é a que deve prevalecer e se a idéia de comparação deve ser um princípio de método privilegiado, o ponto de partida pode se situar no rural, ou fora dele. Há todo interesse em que os sociólogos não rurais invistam no campo rural a partir de suas questões e de seus procedimentos. Mas, é preciso que eles o façam efetivamente. Ora, tem-se a sensação de que, seja por falta de interesse, seja porque se trata de um universo que lhes é estranho ou o rejeitam, eles tendem a ignorá-lo e a se abster de considerá-lo em suas problemáticas. Uma segunda observação decorre da primeira: é preciso que os sociólogos invistam neste domínio, por gosto, curiosidade, interesse; isto exige competência específica, um bom conhecimento do “objeto” do meio rural e uma cultura científica apoiada em bibliografia, ao mesmo tempo especializada e geral, condições que valem para qualquer domínio ou tema. Seria preciso chamar os sociólogos que fazem esta escolha e se submetem a tal preparação, de “sociólogos rurais”? Por que não? Mas, pode-se dizer também, que importância tem isto? Terceira observação: o importante é que as análises sociológicas que se façam situem os aspectos particulares da vida social no contexto da sociedade global - ou, em outras palavras, que as “entradas” específicas no funcionamento da sociedade - aquelas que interessam - e que são privilegiadas - centrem sua atenção sobre a agricultura, os agricultores e o rural. Uma abordagem setorial fecha e limita a compreensão, e até mesmo leva a erros de interpretação - principalmente em termos de “especificidades” do objeto estudado, as quais, de fato, constituem puros artefatos do método adotado. Se se pode dizer, isto suporia fazer um balanço preciso - que a sociologia rural destes últimos cinqüenta anos pecou por carência neste ponto (o que sucedeu em vários casos), torna-se necessário, então, realizar uma avaliação crítica do que foi escrito e que esta exigência metodológica fundamental seja, a partir de agora, levada mais em consideração. Quarta observação: o que conta, igualmente, e esta é uma outra faceta da observação precedente, é que as mesmas análises sejam feitas apoiando-se em procedimentos e questionamentos maiores da sociologia. Se um balanço da sociologia rural viesse a ser feito, este deveria ser o ponto central. Sem dúvida, este é um ponto sobre o qual a reflexão não avançou suficientemente nem se tem atualizado muito. Ora, a sociologia rural pode, com base nas suas pesquisas deste último meio século, dar uma contribuição original aos grandes debates da sociologia. Se se tiver que mencionar uma tarefa prioritária para a sociologia rural, hoje, ela seria a de empreender tal reflexão teórica. Quinta e última observação: em todo caso, constitui um contra-senso não dizer que a sociologia rural teria perdido o seu sentido porque o rural - incluindo a agricultura e os agricultores - teria se banalizado e dissolvido na sociedade global. Seria enganar-se acerca do estatuto histórico do rural, incluindo os camponeses. Seria acreditar, com efeito, que o rural só existiu em um contexto e em um período bem determinado e passado, enquanto que, na verdade, ele assume formas constantemente novas que correspondem a - e vão paralelas com - as evoluções das sociedades globais. No que ele se tornará? Que formas tomará em uma sociedade “industrial” em mudança rápida? Esta é a questão. Tenhamos cuidado para, não o vendo mais, não cairmos na cegueira do olhar centrado no presente e nos discursos próprios da sociedade sobre si mesma. A história, pode-se dizer, não acaba de acabar.
Referências bibliográficas
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Lamarche, Hugues. L’agriculture familiale. Comparaison internationale. Tome I: Une réalité polymorphe. Tome II: Dy mythe à la réalité. Paris, Editions L’Harmattan, 1991-1994.
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Mathieu, Nicole e Jollivet, Marcel (dir). Du rural à l’environnement; la question de la nature aujourd’hui. Paris, ARF éditions/L’Harmattan, 1989.
Mendras, Henri “Sociologie du milieu rural”. In: George Gurvitch (dir), Traité de sociologie, Paris, Presses Universitaires de France, 1958, 2 volumes.
Robert, Michel. Sociologie rurale, Que-sais-je? n. 2.297. Paris, Presses universitaires de France, 1986.
Notas
[1] O leitor já deve ter percebido a referência implícita ao título da obra de Georges Gurvitch (1950). Contudo, devemos esclarecer aqui que ela não é propriamente uma obra de sociologia rural.
[2] Precisemos bem: dizer que a sociologia rural é uma “aplicação” da sociologia geral não quer dizer que a sociologia rural seja uma “ciência aplicada” (como foi algumas vezes afirmado). Quer-se dizer que a sociologia rural é um “ramo” da sociologia geral, tão fundamental quanto esta.
[3] É interessante a este propósito consultar os primeiros escritos referentes à sociologia rural do pós-guerra. Uma rápida pesquisa neste sentido conduz a resultados um pouco surpreendentes: o primeiro indício que encontrei de um curso de “sociologia rural” faz pensar que foi o Instituto de Estudos Políticos de Paris quem teve o papel pioneiro na matéria! Outras surpresas: este curso foi inicialmente confiado a dois geógrafos (em 1948-1949), em seguida a Jean Stoetzel (1951-1952), antes de ser atribuído a Henri Mendras. As apostilas dos cursos de Jean Stoetzel e Henri Mendras (cf. particularmente a apostila de 1963-1964), assim como a do curso dado por Henri Mendras no IHEDREA (s/d), começam sempre por uma precisão muito fundamentada referente à vinculação da sociologia rural à sociologia geral: Jean Stoetzel, Sociologie rurale, 1951-52 (curso ministrado no Instituto de Estudos Políticos de Paris, 304 p. datil.; Henri Mendras, Sociologie rurale, Paris. Os cursos de Direito, 1956-1957, 3 fascículos, 282 p. mimeo.; Henri Mendras, Sociologie rurale, Paris, Institut d’Études Politiques de Paris, Amicale des Éleves, 1963-1964, 216 p. mimeo.; Henri Mendras, Sociologie rurale, Paris, IEP de Paris, Amicale des Éleves, 1967-1968, 3 fascículos, 295 p. mimeo.; Henri Mendras, Sociologie de la campagne française, Que sais-je? n. 842, Paris, Presses universitaires de France, 1959 (reedição 1965), 128 p.; Henri Mendras, Sociologie rurale: notions générales et sociologie du changement, Institut des hautes études de droit rural et d’économie agricole (IHEDREA), s/d, 59p, mimeo.
[4] Esta interdisciplinaridade está, por exemplo, na própria base da filosofia e da ação da Associação dos Ruralistas Franceses.