Estudos Sociedade e Agricultura

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Angela Mendes de Almeida

A “natureza” e seus múltiplos usos


Estudos Sociedade e Agricultura, 4, julho 1995: 113-125.

Angela Mendes de Almeida é professora da UFRRJ/CPDA.


Família, propriedade e direito natural

Em se tratando de família na história brasileira, tem sido comum considerar-se que as idéias modernas sobre a instituição familiar, a casa e a natureza feminina tiveram como veículos importantes, durante o século XIX, as teses defendidas nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia. Em uma obra notável pela sensibilidade, Jurandir F. Costa (1983) apontava toda uma série de elementos contidos nessas teses, que iriam corresponder a esse conjunto de novas idéias e ao seu sentido de modernização da família, com tudo o que implicava quanto ao isolamento da mulher, seguindo nesse sentido uma trilha já utilizada (Cf. Donzelot, 1980). Entretanto, em que pese as sugestões sensíveis desse texto, ficavam-nos, à sua leitura, algumas perguntas: em que medida as idéias defendidas pelos nossos médicos tinham condições de serem postas em prática? Em que medida elas correspondiam às aspirações e sentimentos dos homens e mulheres da época? Em que medida elas podiam ser aplicadas ao contexto agrário escravista do século XIX? E sobretudo em que medida a camada médica tinha prestígio e poder para difundir estas idéias?

De um ponto de vista inverso, veio-nos à mente outra série de perguntas: a defesa de alguns dos elementos desse novo ideário, de algumas práticas, de alguns princípios[1] não estaria ligada ao mecanismo de prestígio das idéias que vêm de fora, das idéias modernas, que são adotadas, porém “fora do lugar”, em um lugar diferente do seu lugar original? Não seriam idéias que, ao invés de constituir uma ideologia em seu sentido clássico, isto é, idéias que ocultam e fazem o contraponto direto da realidade, constituiriam mais um apanágio das classes dominantes, um sinal de distinção e entrosamento com as modas modernas, enfim, um adorno, tal como havia sugestivamente avançado R. Schwarz?[2]

Destas indagações surgiu-nos a idéia de confrontar estas teses de medicina e de higiene, com os saberes desenvolvidos sobre assuntos conexos à família, nas teses de direito. Porque as teses de direito? A resposta parece óbvia, mas vale a pena explicitá-la. As Faculdades de Direito de Pernambuco e de São Paulo, criadas apenas depois da Independência, por decreto de 1827, constituíram desde essa data o principal e dominante celeiro de quadros do Brasil imperial, quer na política, quer na literatura. Mais do que isso, o ensino aí ministrado consubstanciava o modelo de formação cultural para as elites. Em frase pomposa, porém não destituída de razão, o jurista Pedro Lessa dizia: “Apague-se a história das academias jurídicas no Brasil, e a história da nação brasileira será um enigma”.[3] Efetivamente, tudo se passava nestas academias, ou ao menos em volta delas, nesse ambiente onde a retórica jurídica era permeada pelas acaloradas discussões políticas e pelas tertúlias literárias. Aí formou-se a juventude que depois veio a destacar-se na vida nacional. Ora, como estes novos padrões modernos de família atingiram esse ambiente? Esta era a questão que se nos colocava.

Sob o impulso destas indagações fizemos um estudo detalhado de cerca de duas dezenas de “teses” e “dissertações” de Direito Civil e de Direito Natural das duas Faculdades de Direito do século XIX (Cf. Almeida, 1992b). Analisando-as, a primeira coisa que salta à vista de um pesquisador preocupado com as formas mentais pelas quais deslizam as argumentações é que, sendo embora o casamento, e portanto a família, uma questão formalmente ligada ao ramo do direito denominado Direito Civil, quase todos os trabalhos analisados relacionam o casamento com o Direito Natural. Além disso observa-se que, enquanto o eixo das obras dos séculos anteriores sobre casamento e família, ligadas direta ou indiretamente à elaboração da Igreja, tinham como tecla fundamental o pecado, ou o crime contra os costumes, o exame inicial da produção jurídica oitocentista põe em relevo a importância dada, mais explicitamente, ao patrimônio e à herança, portanto à propriedade privada.

Tópicos que espelham esta preocupação e são sempre mencionados - o regime de bens que presidirá o casamento e o reconhecimento de filhos ilegítimos - são também relacionados à propriedade privada. Paralelamente, na área do Direito Natural, quando se trata de “direitos naturais”, o direito à propriedade é sempre colocado em primeiro lugar e definido como diretamente derivado da “natureza humana”, daí a fórmula freqüente: “O direito de propriedade resulta direta e imediatamente da natureza humana” (Cf. Araújo, 1868). Assim o Direito no século XIX, no Brasil, ressalta, à sua maneira, como família e propriedade privada estão indissoluvelmente interligadas, tal como no título da famosa obra de Engels.[4]

Por outro lado, quando se trata do tema família, há referências contínuas aos seus fundamentos “naturais”. O jurista Almachio Diniz, por exemplo - escrevendo no início deste século, porém com argumentações do período anterior - coloca entre os fatores essenciais que determinam a existência da família o instinto genésico que une os sexos e a necessidade de cuidados a serem ministrados às crianças (Diniz, 1916: 22). Algumas teses de Direito Natural também ocupam-se da família, muitas associando-a à propriedade. A fórmula: “A sociedade conjugal é necessária em sua essência, e voluntária em sua formação”, aparece freqüentemente (Barros, 1868: 3; Silveira, 1870: 3). O nexo entre natureza, propriedade e família transparece na importância que é dada ao regime de comunhão de bens, onde a escolha da comunhão universal é tida como conforme à natureza, sob as fórmulas “compatível com a felicidade do homem” e com “a natureza e fins da sociedade” (Castro, 1864; Pereira, 1869). A “naturalidade” desse regime de bens advém da opinião de que ele é o mais propício à “estabilidade conjugal” (Diniz, 1916). E muitas teses de direito consideram a indissolubilidade do casamento como matéria de Direito Natural (Araújo, 1881; Drummond, 1861).

Entretanto a mais ampla correlação entre família, propriedade e natureza encontra-se expressa nesta dissertação sobre o poder paterno e o poder marital:

A família, onde se encontra o poder marital e a autoridade paterna, jamais podia ser uma simples instituição humana, uma pura criação da lei positiva: o laço íntimo de mútua afeição entre os cônjuges, a procriação e educação da prole, o amor dos pais e dos filhos, os vínculos de sangue que os prendem, os interesses recíprocos de todos, altamente proclamam que ela é uma das leis mais imperiosas da natureza, onde tem sua origem e razão de ser.

É de tão fácil intuição esta verdade, que dispensa toda e qualquer demonstração; basta somente considerar-se a família fora do domínio das legislações positivas, ou segui-la através dos tempos patriarcais das sociedades antigas até a época primitiva de sua criação. Aí não se encontra por certo o poder público intervindo nas relações jurídicas dessa primeira sociedade; mas observa-se o poder marital, a autoridade paterna, que sendo os resultados imediatos e necessários de sua constituição, não existem por dependência de uma outra causa estranha qualquer que ela seja.

Conclui o autor que o direito de deixar herança é “um direito natural compreendido no de propriedade” (Sales, 1862: 12-13).

Natureza, ordem social e direito natural

A incessante preocupação em ligar, tanto família, quanto propriedade privada, aos direitos naturais conduziu-nos a questionar qual era esse Direito Natural ao qual estavam se referindo esses textos.

Na verdade coexistiam então nos cursos jurídicos dois Direitos Naturais. Um deles era o Direito Natural cristão, baseado na filosofia aristotélico-tomista que havia sido transmitida pelos juristas de Coimbra. Tratava-se das elaborações filosóficas dos chamados “conimbricenses”, ou Segunda Escolástica, que, sob o impulso hegemônico dos jesuítas, entrincheirados desde 1555 no Colégio das Artes, anexo à Universidade de Coimbra, haviam comentado o texto aristotélico (vale dizer, expurgado), adaptando-o à doutrina católica (Teixeira, 1983; Paim, 1974). Esse Direito Natural coexistia com o moderno, também chamado de “jusnaturalismo”, baseado na literatura produzida pelos grandes teóricos da democracia parlamentar burguesa (Grotius, Althusius, Hobbes, Pufendorf, Locke, Rousseau, Kant, etc.), e constituía a influência preponderante daquele momento.

Porém, ampliando mais o questionamento, poderíamos indagar a que noção de natureza filiava-se cada uma destas duas concepções.

Como com perspicácia apontou R. Lenoble (1990), as obviedades de um termo ocultam sempre múltiplos sentidos, às vezes até contraditórios entre si. Hoje a “natureza” é usualmente referida ao “verde”, ou a processos que não são produto das mãos e da cabeça do homem, e sim, da “natureza”. Aqui é incorporado um sentido de “natural” como oposto ao construído, ao industrializado, ao urbano. Viver “em contacto com a natureza” é fugir da cidade, “gostar do natural” é gostar do supostamente não industrializado, ou do artesanal e não produzido em série. Esses sentidos foram sendo construídos, sendo sua atual configuração uma superposição, datada historicamente, de uma série de sentidos que o homem foi atribuindo à natureza, e portanto ao adjetivo natural.

O paradigma que nos serve de base, ainda hoje, tem sua origem no racionalismo e no mecanicismo moldados nos séculos XVI e XVII, a partir da obra de Galileu, Bacon, Descartes e Newton. Nesta visão a natureza é um conjunto de coisas que se movimentam por mecanismos regidos por leis, constituindo em seu conjunto uma ordem. O movimento desses mecanismos não tem uma finalidade além de si próprio, não se dirige a nenhum fim. À revolução científica do século XVII foi atribuído esse título justamente porque ela pretendeu estar revolucionando completamente a ciência e as formas de apreensão da realidade e da natureza pelo homem, julgou estar enfim atingindo a verdade, a verdadeira realidade. Com essa revolução fundou-se a ciência moderna.

Se entretanto fizermos como Lenoble e recuarmos no tempo, veremos transformações, porém também permanências em relação ao período anterior, em relação à fase de dominância da ciência escolástica medieval elaborada pelo aristotelismo tomista. O ponto de ruptura encontra-se, naturalmente, na noção de movimento sem finalidade, movimento cujo único objetivo é mover-se, avançar sempre, daí o “progresso” e, mais recentemente, o “desenvolvimento”, “religiões” da atualidade. Na ciência aristotélico-tomista a natureza também é um conjunto de coisas que se movimentam por mecanismos regidos por leis, que constituem uma ordem. Porém, ao contrário da ciência moderna, todas estas coisas, ou corpos, movimentam-se em busca de uma finalidade. O movimento que orienta cada corpo, busca encontrar para ele o seu “lugar natural” numa ordem hierarquizada, tendo em seu topo Deus. Cada corpo realiza, através de seu movimento, sua “essência”, ou sua “natureza”. A natureza da criança é crescer e desenvolver-se. Caso seja uma criança proprietária e do sexo masculino, sua natureza é tornar-se macho-senhor para comandar. A natureza da criança escrava e da criança mulher leva-as a ocupar seu lugar “natural” na ordem cósmica, que é o de servir, obedecer e executar.

O conceito aristotélico-tomista de “natural” está interligado à concepção moderna de natureza porque legou-nos um outro sentido para a palavra, usado em filosofia mas também em linguagem corrente: natureza é o princípio produtor de um ser, que realiza a sua essência (Lenoble, 1990: 184). Dizemos hoje, facilmente, que é da natureza de tal sujeito comportar-se de tal ou qual maneira; é da natureza da mulher o desejo de ter filhos; é da natureza do homem progredir, desenvolver-se, querer ganhar dinheiro, etc. Este sentido de “natureza” conserva a idéia de que tal objeto tem uma essência que lhe é própria, que o distingue de outros objetos, e que deve realizar-se para que ele permaneça nos trilhos da natureza. Ora, o conceito de “natural”, tanto na linguagem corrente, como em sua utilização por diversos ramos científicos modernos, está ancorado nesta noção de uma essência que deve realizar-se. Portanto a ciência moderna e a ciência aristotélico-tomista têm em comum a idéia de mecanismos que seguem leis que, por sua vez, constituem uma ordem, idéia cujo subproduto é a convicção de que cada objeto, ou ser, tem uma essência própria que deve concretizar em seu desenvolvimento, sob pena de tornar-se antinatural e patológico.[5]

Quanto ao Direito Natural, também chamado de “jusnaturalismo”, ele é, comumente, identificado exclusivamente com o direito moderno e racional, bem como com a literatura, ligada às ciências políticas e jurídicas, produzida pelos grande teóricos da democracia parlamentar burguesa (Grotius, Althusius, Hobbes, Pufendorf, Locke, Rousseau, Kant, etc.). Mas estudos recentes têm enfatizado a existência de um Direito Natural cristão anterior, tanto mais importante no caso em pauta, quando se sabe da força da neo-escolástica nos meios jurídicos brasileiros (Ambrosetti, 1964; Villey, 1977 e 1962; Dumont, 1985; Reale, 1976).

O Direito Natural moderno tem por base uma instância abstrata: o homem individual, em seu “estado natural”, cortado da história. Já o cristão, que alcança seu ponto máximo com a filosofia aristotélica reformulada pelo tomismo, tem como ponto de partida o homem inserido numa sociedade, porém numa sociedade desde sempre hierarquizada, tendo em seu topo Deus. Para Ambrosetti, veiculando a interpretação cristã:

Enquanto o princípio ordenador do universo, que está na mente de Deus, exprime-se em termos de necessidade para o mundo físico e o da natureza animal, traduz-se em termos de liberdade para o homem, que percebendo inscritas na natureza as normas que a defendem ou a negam, pode responder ou não a estas supremas exigências, entendendo e realizando assim a lei natural na vida participativa da ordem universal.

Nesta concepção, a lei natural é a tendência à vontade do bem e os juízos da razão prática que levam a aperfeiçoar a natureza humana (Ambrosetti, 1964: 102-5).

No Direito Natural antigo “o homem é um ser social, a natureza uma ordem, e o que se pode vislumbrar, para além das convenções de cada polis, como constituindo a base ideal ou natural do direito é uma ordem social em conformidade com a ordem da natureza (por conseguinte com as qualidades inerentes ao homem)”. Já para o Direito Natural moderno, oposto explicitamente ao “direito positivo” (as leis em vigor), os homens não são seres sociais, mas indivíduos, ou seja, “homens que se bastam a si mesmos enquanto feitos à imagem de Deus e enquanto depositários da razão” (Dumont, 1985: 87). Como se sabe, a ordem do Direito Natural cristão, dentro da visão aristotélica, concebe a natureza de forma não apenas hierarquizada, mas ainda estática. Nela cada coisa tem seu lugar “natural”, do qual só será desalojada por uma força externa e violenta, “antinatural” e que produz a desordem.[6]

Todo o pensamento orientado pelos saberes aristotélico-tomistas baseava-se implicitamente na idéia de que a natureza era uma ordem hierarquizada, com mecanismos regulares, que no entanto obedeciam a uma espécie de plano ordenado. É neste contexto que o “natural” é utilizado, ou seja, o natural está dentro da ordem e o contra-natura participa da esfera da desordem. Do ponto de vista da moral cristã medieval e dos primeiros séculos do catolicismo, os atos bons estavam de “acordo com a natureza”, ou seja, com a ordem social. Um homem casado, chefe de família e cumpridor de seus deveres matrimoniais, contribuía para a ordem da sua “república” porque guiava-se pela “razão”; ao passo que um homem solteiro, não abstinente, que se entregasse à luxúria, aos prazeres da carne, constituía um gérmen de desordem e de loucura (Almeida, 1988). Na mesma ordem de razões entram as alegações para definir o pecado contra-natura, o pecado da carne e da paixão, punido pela Igreja e pela lei civil (pelas Ordenações Filipinas, no caso português e brasileiro). Na ordem estabelecida por Deus, o homem e a mulher, desde que em união abençoada pela Igreja, podiam copular, desde que com a finalidade de prover a continuidade da espécie. Por isso a cópula “natural” pressupunha necessariamente que o homem emitisse seu sêmen dentro do “vaso” da mulher. Qualquer emissão extra-vas - ou seja, a ejaculação precoce, a masturbação e, sobretudo, o “pecado nefando” da sodomia - constituíam atos contra-natura (Almeida, 1992a). Os manuais de confessores dos séculos XVI e XVII intrometiam-se, sob o pretexto do respeito à ordem natural, até na posição do ato sexual dos casados. O jesuíta Tomás Sanchez postulava a posição do “homem que seja deitado em cima e a mulher deitada em baixo”, não apenas por razões, digamos, técnicas, já que, acreditava ele, “essa posição é mais adequada para a efusão do sêmen viril, para sua recepção pelo vaso feminino e sua retenção”, como ainda por respeito à ordem social: “é natural ao homem agir e à mulher suportar”.[7]

Nesta formulação vê-se claramente como a natureza e a ordem social, ambas hierarquizadas, eram uma mesma coisa. Natureza e sociedade não estavam ainda divididas por um abismo e estes moralistas iam buscar seus argumentos para definir o natural e o bom na justa hierarquia da ordem social. Natureza e sociedade faziam parte do mesmo mundo sublunar, o mundo da física.

Por sua vez, a unidade básica do direito natural moderno é o indivíduo em “estado de natureza”. Esta ficção foi indispensável para a elaboração das teorias democráticas. Só, o indivíduo dá-se conta de que está desprotegido, optando voluntariamente por associar-se a outros e, através de um “contrato social”, definir as bases de governo. Mas ela constitui ainda hoje o substrato mais importante do individualismo. No interior dessa ideologia coexistiram desde sempre dois elementos tendentes a contraporem-se não apenas na prática, mas até no desenvolvimento de subideologias. De um lado, a idéia de indivíduo tem por base a ficção democrática da igualdade natural de todos os homens; por outro, concebe este indivíduo como livre porque só se associa voluntária e racionalmente. Ora, igualdade e liberdade estiveram sempre a disputar o terreno na prática democrática, pois que a aplicação extensiva e real do princípio igualitário iria sempre significar o cerceamento da liberdade, e particularmente da liberdade de propriedade. Essa dualidade contida no individualismo esteve expressa nos dois primeiros artigos da “Declaração dos Direitos do Homem” adotada pelos franceses logo após a Revolução de 1789: enquanto o primeiro afirmava que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, o segundo atribuía a toda associação política a finalidade de “conservação dos direitos naturais e imprescritíveis” que são: “a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão”. Ora, no decorrer da evolução das instituições da democracia burguesa, a liberdade, sobretudo a liberdade de propriedade, foi ocupando cada vez mais o espaço da igualdade (Dumont, 1985: 91-109).

A questão da propriedade como “direito natural” já havia sido tratada pelos teóricos do liberalismo e do individualismo. Locke, por exemplo, considerava que o fundamento deste título de “natural” era justificado pelo fato da propriedade advir do trabalho do seu titular, ou de seus antepassados. Outra argumentação corrente era a desse direito provir da ocupação (Villey, 1977: 124).

Para o jusnaturalismo moderno, é o contrato social que gera as convenções das quais resultam as formas de governo e de poder, as leis, e portanto, o direito positivo, que no entanto só é válido se estiver conforme ao Direito Natural, ou “a boa e reta razão”. Daí provém o descrédito em que vieram a cair os estudos e as referências ao Direito Romano, um conjunto de leis positivas historicamente determinadas, que daí por diante não poderiam servir de guia da ciência jurídica, como até então haviam sido (Teixeira, 1983: 41).

A revolução mecanicista e racionalista, que introduziu parâmetros bastante diferentes do conceito de natural do aristotelismo-tomista, conservou entretanto poderosas vizinhanças. Todo o pensamento dos iluministas, e particularmente de Rousseau, irá colocar a natureza num lugar separado da sociedade. Para Rousseau o homem nascido na natureza era bom e a sociedade o havia corrompido. Era preciso voltar ao estado de natureza, recuperar os direitos naturais do homem, vilipendiados pela tirania, e garanti-los num contrato social que selava uma associação livre dos homens.

No entanto, este mesmo Rousseau, tão cioso da igualdade natural entre os homens, foi buscar na própria natureza a justificativa para a submissão da mulher. Olhando as fêmeas dos animais, olhando as mulheres selvagens amamentarem e cuidarem de seus filhos, ele viu nesta natureza primitiva o modelo perdido da mulher, deformado por uma educação antinatural. Era da natureza feminina realizar “a sua essência” através da maternidade e, portanto, do casamento. Sua heroína, Júlia, ao decidir abdicar de uma paixão impossível para casar-se, pondera:

Uma força desconhecida parecia corrigir de repente a desordem de minhas afeições, restabelecê-las segundo a lei do dever e da natureza.[8]

Assim, embora a natureza houvesse criado os homens iguais, tinha criado as mulheres diferentes deles. Elas tinham um lugar assinalado na ordem natural, pois “se o Autor da natureza tivesse querido que pertencesse aos homens (a função da educação primeira), ter-lhes-ia dado leite para amamentar as crianças” (Rousseau, 1979: 9). Ao contrário de alguns de seus contemporâneos, Rousseau nega a igualdade entre os sexos e encontra as diferenças na ordem natural. Ele cita entre as diferenças assinaláveis entre os sexos:

Um deve ser ativo e forte, o outro passivo e fraco: é necessário que um queira e possa, basta que o outro resista pouco”. É por isso que “a mulher é feita para agradar o homem (...) O domínio das mulheres não lhes cabe porque os homens o quiseram, mas porque assim o quer a natureza (Rousseau, 1979: 415-434).

Destas características deduz Rousseau que a educação da mulher deve ser relativa ao homem. Submissão, sacrifício, anulação da individualidade em função da missão de mãe, realização de seus anseios através do homem, na família. O modelo rousseauniano transformou-se em bandeira da modernização da família e de sua integração à nova sociedade burguesa, dando origem a inúmeros saberes e técnicas comportamentais, inclusive no âmbito da psicologia e da psicanálise (Badinter, 1980).

Conclusão

No conjunto de textos jurídicos do século XIX que analisamos, aqui apenas apontados sumariamente, vê-se que o Direito Natural - confluindo aí as vertentes cristã e moderna - serviu para justificar diversas regras jurídicas matrimoniais, todas elas interligadas à indissolubilidade do casamento e à defesa da família contra o assédio dos filhos ilegítimos. Mas não se tratava de conservar a harmonia cordial entre os membros familiares e, sim, de defender o patrimônio e a propriedade. Com uma diferença de monta em relação ao sacrossanto “direito de propriedade” do Direito Natural moderno: só alguns homens tinham liberdade de serem proprietários; uma grande parcela da população, os escravos, não apenas não possuíam essa liberdade, como eram, eles próprios, propriedade de outros.

Por volta do fim do século XIX o Direito Natural foi excluído dos estudos jurídicos, seguindo as tendências mundiais de prevalecimento da lei positiva e dos códigos, dentre os quais o Código Civil Napoleônico exerceria o papel de modelo de legislação burguesa na área da propriedade e da família. Não podemos, no âmbito deste artigo, apontar como os juristas endossaram esta nova tendência de modernização, aproveitando o que era adequado e aparecia como índice de progresso, e descartando alguns elementos que supostamente feriam as tradições nacionais, sem nenhuma preocupação com a coerência do projeto burguês. Quanto ao Direito Natural, que tão relevantes serviços havia prestado a essas mesmas supostas tradições nacionais, ele foi abandonado como uma adorno fora de moda. Agora já não eram os ditames da natureza que indicavam a preponderância da autoridade marital e a indissolubilidade da sociedade matrimonial. Os mesmos tópicos continuaram a ser defendidos, mas o palavreado passou a ser outro.

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Notas

[1] E dizemos “alguns” porque sempre houve inconsistência e incongruência. Cf. Gonçalves (1987).

[2] R. Schwarz (1977 e 1990).

[3] Citado por Miguel Reale (1976).

[4] A origem da família, da propriedade privada e do Estado.

[5] Foi com a ciência de Platão e Aristóteles, na Grécia clássica, que firmou-se esta noção de natureza, ligada à ordem. Trata-se, neste caso, de uma ruptura com o período anterior, das civilizações arcáicas, em que a natureza era associada ao acaso, melhor dito, ao capricho dos deuses, às forças cegas de seus desejos de vingança que faziam acontecer os grandes cataclismas naturais. O homem estava então à mercê de uma Natureza cujas leis ele não conhecia e nem dominava. Quando ela o favorecia com seus frutos abençoados, ele a venerava como a Mãe-Natureza. Mas ele a temia. A compreensão da natureza como uma ordem regida por leis que podiam ser apreendidas pelo homem, livrou-o das forças cegas do acaso. A ordem, neste caso, trouxe a possibilidade da liberdade, a possibilidade de conhecer as leis e pautar seu comportamento por elas (Cf. Lenoble, 1990).

[6] (Cf. Koyré, s.d.: 22-3). Mesmo porque, para Aristóteles, “a sociedade é, ela própria, natural, isto é, física”, não havendo, como para o Direito Natural moderno, um abismo entre as leis naturais e a lei positiva (Cf. Villey, 1962: 234).

[7] Citado por Jean-Louis Flandrin (1988: 132-142).

[8] Citado por Knibielher e Fouquet (1977: 136-140).