Estudos Sociedade e Agricultura
Michel Zaidán
Fundamentos sociofilosóficos da questão ambiental
Estudos Sociedade e Agricultura, 4, julho 1995: 126-129.
Michel Zaidán é professor da UFPE.
A ciência surgiu para libertar o homem do mito, mas hoje ela transformou-se num novo mito. (Adorno).
É impossível falar de natureza sem falar do homem. Aliás o próprio homem é natureza automediada pelo desejo, linguagem ou o trabalho. Cada uma dessas formas de mediação corresponde a uma época cultural da história da humanidade. Assim, poderíamos destacar quatro grandes períodos dessa história cultural: um primeiro caracterizado pela relação mimética do homem com a natureza; um segundo, pela relação amorosa; um terceiro, pela relação instrumental e finalmente um quarto, caracterizado pelo simulacro.
A relação mimética corresponde originalmente ao despertar da consciência humana. É a fase do aninismo e fetichismo, onde não existe ainda a fratura ontológica entre o sujeito e o objeto, mas uma comunidade ontológica (essencial) - entre o ser e o pensamento, e o predomínio do ser sobre o pensar. O pensamento é uma cópia fiel, ou procura ser, do ser. Daí a imitação - a mímesis - ser a via fundamental de apreensão da realidade e a sua reverência cósmica diante do mundo. Quanto menos deformado/adulterado, mais verdadeiro o reflexo do ser. A mímesis começa pela onomatopéia e termina na magia simpática. É uma forma de conhecimento inspirada na fantasia e na imaginação (Cf. Fischer, 1981: 21).
A relação amorosa é uma continuação da anterior. E corresponde à filosofia grega pré-aristotélica. Aqui, também, a palavra “filosofia” designa exatamente amor ao conhecimento, ou seja, a contemplação desinteressada do cosmo onde não se separam as dimensões estéticas, normativas e cognitivas do saber. Para os gregos, o universo era tudo, menos fonte de utilidade e exploração. Daí, a interferência de motivos estéticos no sistema ptolomáico onde os movimentos esféricos do corpo predominam sobre os elípticos ou retilíneos, já que a esfera é a figura geométrica esteticamente superior. Constatação encontrável na escultura e pintura gregas. A metafísica aristotélica é o divisor de águas na história do pensamento ocidental, a partir dela dá-se a fratura ontológica entre ser e pensar e o conhecimento é redimensionado em função de suas virtualidades cognitivo-instrumentais, ou seja: a filosofia deixa de ser “amor à sabedoria” e contemplação desinteressada do universo e passa a ser a “busca dos primeiros princípios” ou “das primeiras causas”. A natureza é desontologizada e transformada numa abstração filosófica (Cf. Marcuse, 1975: 125).
Essa tendência - in nuce no pensamento grego - é atualizada em toda a sua plenitude na filosofia moderna: “saber é poder”, proclama solenemente Francis Bacon. “A natureza está aí grátis”, diz o filósofo social-democrata. Ou o trabalho é a objetivação do ser genérico “numa natureza criada e recriada pela apropriação prática e social do homem”, diz Marx. Estamos aqui diante de um novo paradigma: o sujeito que, tal um demiurgo, cria e recria o mundo segundo a sua imagem e semelhança. A natureza perde direito a si própria, só existe para a satisfação dos caprichos humanos, como substrato vazio de sentido, despojado de suas qualidades primárias e/ou secundárias. A física newtoniana atribui à matéria duas qualidades: extensão e movimento - que corresponderia a duas categorias objetivas do saber; tempo e espaço. O resto é criação humana. Esta forma de racionalidade, denominada instrumental, assenta-se em dois pressupostos: o controle e a subordinação da natureza física; e a repressão da natureza humana - socializada pela ética (e pela disciplina) do trabalho. É a conhecida “dialética do iluminismo”, com a melancolia de Ulisses a contemplar o canto das sereias, mas estoicamente resignado a se deixar atar para caminhar rumo à civilização. Suas conseqüências: alienação, neurose, destruição do meio ambiente (Cf. Adorno, 1985: 191; Benjamin, 1985: 222 ss; Schmith, 1983).
Essa impiedade cósmica produzida pelo/no pensamento moderno é levada a extremos na pós-modernidade, onde o sujeito/trabalho é substituído pela linguagem, pelo símbolo, por uma economia política da significação. Aí o conceito de uma natureza des-substancializada e transformada num mero substrato vazio à disposição dos caprichos humanos é trocada pelo de um simulacro (mais que perfeito) hiper-realizado do mundo. Aqui, opera-se uma dupla elisão: a do sujeito e a do objeto, e a única coisa que sobrevive é a linguagem, um sistema de signos sem significação. O simulacro expropria do homem e da natureza todas as suas relações, interpondo-se entre um e outro.
É a “caverna de Platão” sem o exterior, só com as sombras. Produz-se assim um novo ceticismo cognitivo e um solipsismo social, onde as pessoas simulam “se comunicar, amar, passear, viver a natureza”, esta mesma transformada numa fantasmagoria, tanto mais real quanto mais fictícia. Estamos no domínio da realidade virtual da interatividade, das networks de piper-show ou sexshoping. Esta é a época do “sexo seguro”, do “sexo pós-pornográfico”, da “linha rose” onde tudo é permitido e nada acontece. É a época da AIDS e do neo-conservadorismo, onde a idéia de natureza e natural é uma função da engenharia simbólica e imaginária, destinada à indução de um consumismo tão estéril quanto depredador dos “bens naturais” (praias, campos, ruas, praças, etc). Só o que é possível de ser consumido e descartado é natural, o resto é uma lembrança esmaecida de uma sociedade pré-tecnológica, onde ainda valia a pena chamar de bonita, agradável, prazerosa, amorável um por-do-sol ou um amanhecer, uma época onde a natureza tinha cor, cheiro e tangibilidade (Cf. Buzzi, 1988: 101 ss).
O grande desafio, neste final de século, para as relações entre o homem e a natureza é como tornar possível o resgate do desejo nestas relações. Será que ainda é possível re-erotizar o mundo, emancipando os sentidos dessa ditadura de símbolos vazios de qualquer significação? Que fazer para acordar, como diz o filósofo: “as virtualidades que dormem em seu seio?” Trabalho de toda uma ecologização das relações humanas, científicas e sociais. Afinal, como diz o nosso pensador “a técnica não é dominação da natureza: é dominação da relação entre a natureza e humanidade”, é transformação da própria natureza humanizada, é a transformação do próprio homem (Cf. Barros, 1995: 1957).
Referências bibliográficas
Adorno, T. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.
Barros, Marcos André de. História e utopia. A crítica e ampliação do conceito de História da modernidade em Walter Benjamin. Dissertação apresentada à UFPE, Recife, 1995.
Benjamin, Walter. Obras escolhidas, vol. 1, “Teses sobre o conceito de história”. São Paulo, Brasiliense, 1985.
Bruzzi de Melo, Hizina. A cultura do simulacro. São Paulo, Paulinas, 1988.
Fischer, Ernest. A necessidade da arte. Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
Marcuse, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.
Schmith, A. La dialéctica de la naturaleza. México, Siglo XXI, 1983.