Estudos Sociedade e Agricultura
Roberto José Moreira
Críticas ambientalistas à Revolução Verde
Estudos Sociedade e Agricultura, 15, outubro 2000: 39-52.
Resumo: Suportado na perspectiva crítica gerada pela questão de desenvolvimento sustentável – as críticas técnica, social e econômica –, este texto analisa a Revolução Verde, em sua forma brasileira, bem como procura entender as políticas agrícola e agrária e as tecnologias alternativas ambientalistas para a agricultura familiar. Esta análise procura enfatizar os diferentes interesses sociais que estão em disputa, bem como a compreensão dos interesses hegemônicos expressos pelas políticas governamentais.
Palavras-chave: Desenvolvimento sustentável; Revolução Verde; políticas agrícola e agrária; agricultura familiar; tecnologia alternativa.
Abstract: Environmental Critiques of the Green Revolution. Based on a critical perspective emerging from the sustainable development perspective – technical, social and economic critiques –, this text analyses the Green Revolution, as it was shaped in Brazil, and tries to provide an understanding of agricultural and agrarian policies for family farming in the light of alternative environmental technologies. The emphasis is on identifying the different social interests in dispute and understanding the hegemonic interests expressed in governmental policies.
Key words: Sustainable Development; Green Revolution; Agricultural and Agrarian Policies; Family Farming; Alternative Technology
Roberto José Moreira é professor da UFRRJ/CPDA.
Texto apresentado no X World Congress of Rural Sociology – IRSA e no XXXVII Brazilian Congress of Rural Economic and Sociology – Sober, Workshop n. 38. Greening of agriculture. Rio de Janeiro, 2000.
Introdução
Os embates ambientalistas oriundos dos desdobramentos das noções de desenvolvimento sustentável conformaram duas grandes vertentes teórico-interpretativas críticas. A primeira trata a sustentabilidade com ênfase na questão ambiental e está mais presente nos países de capitalismo avançado, do Norte, e em estratos de camadas sociais mais ricas. Esta vertente crítica tende a defender uma nova relação do ser humano com a natureza, seja em sua dimensão técnica, seja existencial. A segunda vertente não consegue visualizar a questão ambiental sem ressaltar a dimensão da eqüidade social. Esta vertente está mais presente nos países periféricos, do Sul, e nas camadas mais pobres de nossas sociedades capitalistas.
Naquilo que se refere ao mundo rural estas críticas tendem a conformar-se como críticas à Revolução Verde, tanto, de um lado, no sentido de apontar os problemas que estas práticas produtivas impõem à natureza e ao ecossistema quanto, de outro, no sentido de ressaltar o caráter concentrador de riquezas e de benefícios sociais a ela associado. Neste caldo crítico, gera-se a conseqüente busca de tecnologias e práticas alternativas a este padrão tecnológico, bem como de formas sociais produtivas de organização menos concentradoras.
Este artigo visa refletir sobre estas críticas associadas à Revolução Verde, como ela se deu no Brasil. Situarei inicialmente as reações ambientalistas que se conformam na origem da noção de desenvolvimento sustentável, procurando destacar suas dimensões técnica, social e econômica. Na análise, estarei indicando que, por detrás de um aparente consenso sobre o conceito de sustentabilidade, esconde-se uma multiplicidade de significados, que refletem as disputas de diferentes interesses sociais, econômicos e políticos, assim como uma disputa pelo próprio significado hegemônico do conceito de sustentabilidade e de desenvolvimento sustentável.[1] Estas considerações nos remeterão a indagações sobre a realidade rural brasileira e ao direcionamento de políticas e de atores sociais contemporâneos.
Os conceitos de sustentabilidade
A amplitude da divulgação e a importância da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, que produziu o relatório Nosso Futuro Comum em 1987 (Cmmad, 1988), imprimiram ao conceito de sustentabilidade daí oriundo a impressão generalizada de um conceito acabado. Recorde-se que, popularizado como Relatório Brundtland, este Relatório difundiu a idéia de que o desenvolvimento sustentável é aquele desenvolvimento que satisfaz as necessidades do presente sem colocar em risco a satisfação das necessidades das futuras gerações. A amplitude dessa divulgação deixou a impressão de que a origem do conceito está associada ao próprio Relatório.
Brüseke (1996) ressalta que a origem da noção de sustentabilidade é ainda anterior ao texto do Clube de Roma, Limites do crescimento, de 1972, e à publicação da Conferência de Estocolmo sobre Human Environment, também desse ano. Os debates sobre os riscos da degradação do meio ambiente começaram nos anos 60 e nos anos 70. Brüseke realça a importância tanto da publicação The entropy law and the economic process de Georgescu-Roegen, de 1971, que tornou-se o marco da economia ecológica e das considerações sobre o papel da termodinâmica para o estudo do desenvolvimento e da sustentabilidade, quanto do Environment and styles of development de Ignacy Sachs, que, em 1976 por sua vez, formulou o conceito de ecodesenvolvimento.
Cabe ressaltar, como ainda o faz Brüseke, ao apresentar o aporte de Sachs, os seis requisitos do ecodesenvolvimento, dos quais apenas um se refere aos recursos naturais e ao meio ambiente:
a) a satisfação das necessidades básicas; b) a solidariedade com as gerações futuras; c) a participação da população envolvida; d) a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente em geral; e) a elaboração de um sistema social garantindo emprego, segurança social e respeito com outras culturas, f); programas de educação (Brüseke, 1996: 105).
Com ênfase nos aspectos sociais do desenvolvimento, o conceito de ecodesenvolvimento referia-se inicialmente às regiões rurais da África, Ásia e América Latina, ganhando dimensões de crítica às relações globais entre subdesenvolvidos e superdesenvolvidos, bem como de crítica à modernização industrial como método de desenvolvimento das regiões periféricas, propondo, para estas regiões, um desenvolvimento autônomo, independente daquele dos países desenvolvidos e preocupado com os aspectos sociopolítico e ambiental do desenvolvimento.
Ressalta ainda Brüseke (1996: 105-106) que duas outras contribuições – a declaração de Cocoyok, de 1974, e seu aprofundamento no relatório Dag-Hammarskjöld, de 1975 – expressavam confiança em um desenvolvimento a partir da mobilização das próprias forças e exigiam mudanças nas estruturas de propriedades no campo, pelo controle dos produtores sobre os meios de produção, portanto, mais radicais do que aquela abordagem que posteriormente, em 1987, se sedimenta no conceito de desenvolvimento sustentável definido e divulgado em Nosso Futuro Comum, da Cmmad.
As teses do crescimento zero e do congelamento do crescimento populacional, expostas nas posições do Clube de Roma e da Conferência de Estocolmo, tenderam a enfatizar que o crescimento econômico e as tecnologias a ele associadas deveriam se nuclear em torno dos recursos naturais renováveis, a curto e a médio prazos. A utilização intensiva de recursos naturais não renováveis, como é o caso do petróleo, colocava em xeque a matriz energética e o aparato produtivo industrial herdado. Esta ênfase reduz a importância da crítica social e aponta para uma sedimentação das diferenças atuais tanto de estilo de vida, de distribuição de riquezas e de bem-estar social de classes e grupos sociais, como entre nações.
Nas outras teses, acima apresentadas, a idéia de um mundo rural sustentável – e adequado à crítica das sociedades e das tecnologias industriais – aparece associada a uma mudança do acesso aos recursos produtivos, com mudanças na distribuição da propriedade rural, sugerindo que políticas significativas de reforma agrária seriam necessárias para se alcançar o desenvolvimento sustentável autônomo dos países periféricos. Autonomia aqui significa tanto uma não-dependência em relação aos países industrializados, quanto a valorização de processos políticos participativos em nível local.
Os requisitos do ecodesenvolvimento – garantia à alimentação e à satisfação das necessidades básicas e de educação – incluem a temática da justiça social na idéia de desenvolvimento sustentável. A preservação da biodiversidade e dos ecossistemas, a diminuição do consumo de energia e o desenvolvimento de tecnologias ecologicamente adaptadas fazem-nos reconhecer os limites postos pela dinâmica da biosfera à vida humana.
Esses traços gerais herdados compõem uma visão tridimensional de desenvolvimento, na qual à eficiência econômica combinam-se requisitos de justiça social e de prudência ecológica (Brüseke: 1996; 115-119). Os encaminhamentos políticos com vistas ao desenvolvimento sustentável deveriam envolver assim três dimensões: o cálculo econômico, os aspectos sociopolíticos e biofísicos.
Dada a natureza planetária da questão ambiental, tais dimensões imprimem ainda ao desenvolvimento sustentável uma nova clivagem entre interesses nacionais e globais. O “tom diplomático” do Relatório Brundtland, quando comparado com aquelas elaborações originárias e radicais anteriormente destacadas, minimiza a crítica à sociedade industrial e aos países desenvolvidos. Não nega o crescimento nem aos países industrializados e nem aos não industrializados. Entende que a superação do subdesenvolvimento no hemisfério Sul depende do crescimento contínuo dos países industrializados desenvolvidos, opondo-se, assim, à tese de desenvolvimento autônomo dos países periféricos. Brüseke (1996: 107) ressaltou que, nesse Relatório, tornam-se duvidosa as adequações dessas posições à crítica centrada no ponto de vista ecológico.
Deve-se acrescentar ainda que, em termos de justiça e eqüidade social, há também uma forte inadequação. O Relatório não questiona a propriedade e a distribuição dos ativos que conformam nossas sociedades capitalistas. Estes ativos produtivos são a base da concentração de rendas e da diferenciação de estilos de vida, tanto no interior das nações como entre elas. Esse Relatório enfatiza que as questões ambiental e ecológica impõem a necessidade de novas relações entre nações, e sugere medidas a serem tomadas por governos nacionais e instituições internacionais, evitando, no entanto, a explicitação da necessidade de novas relações sociais no interior de cada território nacional. Esta postura não problematiza o jogo de forças, as divergências de interesses sociais em disputa e a dominação hegemônica a ele associada. Neste sentido, a eqüidade social dificilmente será alcançada e a justiça estará sempre relacionada a interesses socialmente hegemônicos.
Considerando as dimensões do cálculo econômico e da esfera sociopolítica, o campo de disputa da sustentabilidade – e do desenvolvimento sustentável – envolve o embate de forças e interesses conservadores e progressistas, sejam eles globalistas ou nacionalistas, ambientalistas ou não-ambientalistas. A sensibilidade à dimensão biofísica aglutina o embate entre ambientalistas e não ambientalistas, sejam eles globalistas ou nacionalistas, conservadores ou progressistas. E, finalmente, os aspectos territorial e cultural colocam as tensões entre o local e o global. Embates entre forças e interesses nacionalistas e internacionalistas, sejam eles conservadores ou progressistas, ambientalistas ou não ambientalistas, são também conformados.[2]
Como podemos perceber, na perspectiva até aqui delineada, os diferentes interesses econômicos e sociais que se expressam na esfera sociopolítica impõem diversas perspectivas à questão da sustentabilidade e, portanto, tendem a formular e defender teorias e conceitos diferenciados de sustentabilidade e de desenvolvimento sustentável. Estas matizes tornam-se visíveis na medida em que priorizem, de forma nuançada, as questões nacionais ou globais, a manutenção do status quo ou as mudanças progressistas-distributivistas, bem como levem em consideração a dimensão ecológico-ambiental, ou ignorem todas estas questões. As críticas ambientalistas à Revolução Verde podem, portanto, carregar uma diversidade de interesses, não necessariamente progressistas e distributivistas.
A seguir estaremos visualizando um exemplo de como tais questões se apresentam na crítica à Revolução Verde, que, no Brasil, assumiu a forma de uma modernização tecnológica socialmente conservadora.[3]
A crítica à Revolução Verde
Oriundas dos movimentos ecológicos e afins, as críticas ambientalistas centralizam-se na crítica à produção industrial. No espaço rural, esta produção industrial adquiriu a forma dos pacotes tecnológicos da Revolução Verde e, no Brasil, assumiu – marcadamente nos anos 60 e 70 – a prioridade do subsídio de créditos agrícolas para estimular a grande produção agrícola, as esferas agroindustriais, as empresas de maquinários e de insumos industriais para uso agrícola – como tratores, herbicidas e fertilizantes químicos –, a agricultura de exportação, a produção de processados para a exportação e a diferenciação do consumo – como de queijos e iogurtes (Moreira, 1999b: 9-81).
Quando associada aos movimentos ecológicos e ambientalistas no Brasil, a crítica posta ao modelo da Revolução Verde – e à modernização tecnológica socialmente conservadora – se desenvolve, portanto, com três componentes que destacaremos a seguir.
O primeiro é uma crítica da técnica que nos leva a questionar a relação herdada do ser humano com a natureza. Considerar o meio ambiente e os recursos naturais de uma outra forma requer uma reconceitualização de natureza, de ser humano e de trabalho produtivo (Moreira, 1999a), bem como a atualização da teoria da renda da terra para a compreensão das questões da biodiversidade no campo (Moreira, 1995 e 1998).
Esse questionamento leva em conta a poluição e envenenamento dos recursos naturais e dos alimentos, a perda da biodiversidade, a destruição dos solos e o assoreamento de nossos rios, e advoga um novo requisito à noção de desenvolvimento herdada: o de prudência ambiental. Desta crítica emergem tanto os movimentos de agricultura alternativa, como aqueles centrados nas noções de agricultura orgânica e agroecológica, e sugerem as discussões dos impactos da engenharia genética e da utilização de matrizes transgênicas em práticas agropecuárias e alimentares.
A natureza desse tipo de crítica levanta, dentre outras, as seguintes questões aos formuladores de conceitos e políticas de sustentabilidade: como a prudência ambiental é vista? Quais têm sido as práticas neste sentido? Há inconsistência de termos entre qualidade ambiental e qualidade social de vida?
Dependendo das respostas que se dêem a essas questões e dos diferentes interesses sociais que elas expressem, certamente teremos distinções entre os conceitos de sustentabilidade elaborados, bem como entre as práticas (políticas e técnicas) deles resultantes.
O segundo componente expressa-se na crítica social da Revolução Verde – que não me deterei aqui – por demais visível em suas facetas conservadoras e nas denúncias de empobrecimento, desemprego, favelização dos trabalhadores rurais, êxodo rural urbano, esvaziamento do campo, sobreexploração da força de trabalho rural, incluindo o trabalho feminino, infantil e da terceira idade.
A crítica social do modelo da Revolução Verde não é uma crítica técnica, como a que destacamos anteriormente. É uma crítica da própria natureza do capitalismo na formação social brasileira e da tradição das políticas públicas e governamentais que nortearam nossas elites dominantes, seja na área econômica, seja no próprio campo político de definição de prioridades. No anos 70 e 80, é também uma crítica ao modelo concentrador e excludente da modernização tecnológica da agricultura brasileira, socialmente injusto.
A elevada concentração da propriedade da terra e a desigual distribuição da propriedade dos recursos produtivos de origem industrial conformaram uma formação social capitalista no Brasil de forte exclusão social. Exclusão de massas significativas da população, não só do padrão de consumo e da qualidade de vida que se torna viável para estas elites e para as populações dos países avançados, mas também de condições mínimas adequadas de acesso à terra, ao trabalho, ao emprego, ao teto, à educação, à alimentação e à saúde.
Marcas das desigualdades originárias de nossa sociedade, esses problemas são intensificados pela Revolução Verde dos anos 60 e 70, pela crise dos anos 80 e pelas políticas e práticas do neoliberalismo e da abertura dos mercados, nos anos 90.
Esse segundo aspecto da crítica à Revolução Verde nos remete, portanto, à esfera sociopolítica e às questões de eqüidade e justiça social. No tratamento destas questões e em busca da redução dos níveis de desigualdade social, os formuladores de conceitos de sustentabilidade deverão considerar, com atenção particular, a radicalidade das ações e práticas políticas e sociais adequadas ao desenvolvimento sustentável no espaço rural. No entanto, elas tendem a afetar interesses sociais constituídos que se fazem representar na formulação e implementação de políticas, como é o caso da presença dos anti-reformistas nas disputas sobre a reforma agrária no Brasil.
A natureza, a magnitude e a velocidade das políticas de assentamentos rurais e a possibilidade de uma reforma agrária tendem a romper com a desigualdade no campo e na própria sociedade brasileira?
Quais têm sido as práticas concretas de redução das desigualdades sociais?
Como atacar as raízes da desigualdade econômica, social e de cidadania presentes na sociedade brasileira?
O delineamento das políticas governamentais recentes – o “novo” mundo rural, a “nova” reforma agrária, o “desenvolvimento” baseado na agricultura familiar, o Pronaf e o Procera etc. – aponta para que direção?
Como estão as políticas para as grandes produções e para os complexos agroindustriais?
Qual é o sentido dominante das políticas recentes: a promoção de progresso social dos assalariados rurais e da agricultura familiar ou tais políticas apenas expressam a preocupação das elites com os perigos de uma tensão social maior, que exceda aos limites da “ordem” e da “governabilidade”?
Em que sentido as políticas acionadas em nome da agricultura familiar, em geral, não têm sido também seletivas? Como tem sido a distribuição dos recursos do Pronaf? Que tipos de agricultores familiares estão sendo beneficiados? É esta política também excludente? Quais são as camadas da agricultura familiar beneficiadas: os estamentos superiores, mais estáveis econômica e socialmente – como os setores integrados aos complexos agroindustriais –, os estamentos médios, ou os estamentos inferiores, próximos da miséria social?
O terceiro componente da crítica à Revolução Verde é de natureza econômica: a elevação de custos associada às crises do petróleo dos anos 70 se desdobra na agricultura brasileira como um processo de elevação de custos do pacote tecnológico da Revolução Verde. A crise financeira obrigou a uma redução significativa dos subsídios de crédito.
Aquelas crises impuseram, nos debates internacional e nacional, o tema da necessidade de mudanças do desenvolvimento para matrizes energéticas alternativas. No Brasil, o programa do pró-álcool, com a reversão dos motores à gasolina em motores à álcool, é um exemplo.
Em termos econômicos, alguns estudos ressaltavam que o modelo da Revolução Verde implicava, na conjuntura que se seguia àquelas crises, custos produtivos crescentes devido à escassez relativa de recursos naturais daquela matriz energética, ao uso intensivo de fertilizantes químicos e agrotóxicos e à deterioração dos recursos de solo, água e condições de clima das produções agrícolas – enchentes, secas, inundações, ondas frias etc.
Esses questionamentos, em suas vertentes ambientalistas, geram possibilidades de novos modelos produtivos – agroecológicos, produção orgânica, produção natural etc. – com perspectivas biossistêmicas e de diversidade produtiva. Para boa parte dos analistas, estes modelos produtivos alternativos garantiriam uma vantagem comparativa às formas da agricultura familiar, em relação às empresariais. Estas eram exigentes e dependentes daquele pacote tecnológico. A especificidade do trabalho familiar, o conhecimento das condições biossistêmicas locais próprias desses agricultores e a escassez de recursos financeiros que possuem, ou têm acesso, são considerados como elementos positivos à aplicação de novas práticas produtivas – todas elas vinculadas a um saber camponês que foi renegado como atrasado no período da Revolução Verde. A revalorização destas práticas teria, assim, as características de rompimento com a monocultura, a redução de custos monetários e a ampliação de emprego no campo.
Para estes analistas, portanto, a agricultura familiar deveria ser eleita como núcleo do desenvolvimento sustentável do espaço rural.
A noção que parece ser hegemônica neste argumento é a de que a redução de custos daria maior competitividade às formas familiares e, portanto, as levaria a um maior progresso econômico e social. Esta proposição é questionável na medida em que ela é associada ao conjunto da agricultura familiar.[4] Este questionamento tem a ver com o espaço econômico que a agricultura familiar ocupa na ordem competitiva capitalista contemporânea. É o espaço do pequeno patrimônio produtivo – vinculado às noções de mini e pequenos capitais, que, na órbita competitiva oligopolista de mercados imperfeitos e de mercados controlados pelas grandes empresas, vivem a impossibilidade de acumulação e de progresso econômico.
Historicamente, inclusive nos países desenvolvidos, a agricultura familiar, dada à sua posição de pequeno patrimônio produtivo em uma ordem econômica oligopolizada, tende a operar com renda da terra e lucro zero, ou próximos de zero (Veiga, 1991 e Abramovay, 1992), portanto, sem possibilidade de investimento ou acumulação. Esta vivência na competição pode ser visualizada pela constatação de que a renda líquida destes setores produtivos se aproxima – ou em certos casos é até menor – ao rendimento dos salários mais baixos da sociedade na qual estão inseridos.
Destaquei em outros momentos que, no Brasil, as políticas e as visões dominantes sobre a agricultura familiar e a pequena produção familiar rural foram historicamente conformadas pela ideologia de subsistência, com base na ideologia nas relações sociais da morada de favor do Nordeste açucareiro.[5] A morada de trabalhadores no interior das plantações de cana-de-açúcar era tratada como um favor que as elites agrárias da época faziam ao trabalhador rural. Esta concessão, de um lado, não reconhecia os direitos trabalhistas e, de outro, garantia a fixação de trabalhadores nas plantações. As relações sociais de trabalho da morada e também do colonato do café, em São Paulo, envolviam o trabalho no produto principal – cana ou café – e viabilizavam a parceira na produção de alimentos básicos – arroz, feijão, aipim etc. – fundamentais à alimentação desta população. Esta origem da economia de alimentos no interior dos grandes setores econômicos levou a produção de alimentos a ser tratada como sendo uma atividade de subsistência e os agricultores familiares a ela vinculados – os moradores-parceiros acima referidos e a agricultura realizada por pequenos proprietários independentes, por posseiros etc. – a serem denominados de agricultores de subsistência.
Dada tal origem, estes agricultores são vistos, na ideologia dominante, como incapazes do progresso econômico e social. No nível mais geral de formulação de política, esse setor foi sempre considerado como aquele para o qual as políticas agrícolas deviam evitar que sucumbissem, conservando sua precária condição produtiva e mantendo as condições de subsistência da família. Essas políticas, portanto, nunca viabilizaram um impulso de progresso econômico e social significativo. As benesses da política agrícola, como foi o caso do crédito agrícola altamente subsidiado da Revolução Verde no Brasil, sempre foram dirigidas às próprias elites do mundo rural.
Essa ideologia foi naturalizada e a busca pela subsistência passou a ser vista, assim, como uma condição natural dos pobres do campo. Neste processo, as políticas para esse setor tendem sempre a assumir a forma de assistência social, por muitos denominadas de programas de subsistência, longe de constituirem-se em políticas de progresso e ascensão social.
As novas políticas para a agricultura familiar tendem, de fato, a romper com essa postura das elites brasileiras? Recorde-se apenas que vários atores sociais e vários analistas têm falado destas políticas como sendo políticas de cunho social.
A vivência histórica dessas precárias condições de produção e de competição no mercado, impõe, atualmente, aos agricultores familiares brasileiros a necessidade de procurarem diversificar as fontes de renda familiar. Para estabilizarem suas condições de vida eles recorrem à realização simultânea de atividades rurais e urbanas – membros da família com emprego urbano, pequenos comércios, como as bodegas etc.; diversificam as atividades familiares – artesanatos, conservas caseiras, turismo rural etc.; recorrem ao emprego agrícola fora da propriedade familiar – assalariamentos esparsos e sazonais, pequenos arrendamentos e parcerias em terras de terceiros. Observa-se ainda a busca de associações econômicas e cooperadas para fortalecimento de sua posição nos mercados – as diversas formas de cooperação no comércio, na produção e no processamento industrial e manufatureiro; a luta para obter aposentadoria para membros da família – importante fonte de estabilização da renda familiar rural; e, por fim, a diversificação produtiva e a busca de produções agroecológicas, orgânicas e naturais, estas associadas a nichos de mercado e à onda ambientalista contemporânea.
Nos dias de hoje, nada aponta para uma redução da concentração oligopólica dos mercados – a onda recente de megafusões indica o contrário – , bem como nada indica uma mudança das elites no entendimento das necessidades daqueles setores sociais. A frente agrária e a bancada ruralista ainda fazem valer seus interesses no Congresso Nacional.
Mesmo se reconhecermos que a produção agrossistêmica pode reduzir os custos monetários da produção, na ordem competitiva dominada pelos grandes capitais, nada garante que os benefícios de custos reduzidos e de produtos agrícolas saudáveis ficarão com o produtor familiar, exceto, é claro, entre alguns segmentos seus que consigam inserir-se em nichos de mercados ecológicos e de produtos verdes e naturais.
Não consigo visualizar uma ascensão dos agricultores familiares ao progresso econômico e social sem significativas e profundas reformas na propriedade da terra, no acesso aos benefícios das políticas governamentais e no reconhecimento da cidadania plena aos trabalhadores e desempregados do espaço rural.
Finalizando
Por uma série de condicionantes, que não cabem aqui ser analisadas, e também pela valorização daquelas três vertentes críticas, conferimos grande importância à busca de desenvolvimento local sustentável, sobre o qual teceremos alguns comentários finais.
No espaço rural contemporâneo, temos atores, com interesses os mais variados, que compõem um complexo campo de forças. No nível da produção, o espaço rural pode ser conformado por grandes, médias e pequenas produções, propriedades e patrimônios produtivos, exibindo uma diversidade de relações de trabalho a elas associadas. Este campo de forças inclui ainda as empresas agropecuárias, unidades familiares, empresas e cooperativas agroindustriais, empresas de comercialização – de máquinas, equipamentos, insumos e defensivos de toda a ordem, bem como de produtos agrícolas –, bancos e associações de financiamento e crédito rural etc. Se olharmos para a expressão de todos esses interesses localmente, torna-se visível a dificuldade de obtenção de consenso acerca de políticas de desenvolvimento sustentável.
A conecção destas atividades de cunho agrícola com atividades de natureza não agrícola, mas que hoje compõem o espaço rural contemporâneo, amplia a diversidade de interesses em disputa que se colocam ante o desenvolvimento sustentável do espaço rural, e interpela outros atores sociais de importância regional na cena política do desenvolvimento local, como são os casos de indústrias, setores de abastecimento etc.
A noção contemporânea de espaço rural aciona ainda as áreas da cultura, do lazer e do turismo, além da exploração de produtos artesanais. Aqui se impõe o reconhecimento de identidades culturais locais, que envolvem as esferas próprias da cultura, como as artes, além das manifestações de cunho religioso e étnico.
Cabe apenas destacar que entra em ação uma maior amplitude de interesses, sendo menor, portanto, a possibilidade de campos de cooperação com base em consenso. Esta amplitude de interesses tende a valorizar a disputa política local que, por sua vez, garante vantagem relativa aos grupos e setores sociais com maior densidade de poder, de capital econômico e simbólico e de maior expressão política.
Para mudanças em direção a uma maior eqüidade social, é necessário que estes espaços sejam ocupados por representações da agricultura familiar e dos setores sociais comprometidos com a reforma agrária e a democratização econômica e social do espaço rural brasileiro. Este é o nosso desafio atual.
Referências bibliográficas
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Brüseke, Franz Josef. Desestruturação e desenvolvimento. In: L. da C. Ferreira e E. Viola (orgs.) Incertezas de sustentabilidade na globalização. Campinas: Ed. da Unicamp, 1996.
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Notas
[1] Para o aprofundamento da questão, ver Moreira (1993, 1996a e 1999a).
[2] Para uma visualização dos alinhamentos sociopolíticos associados à dimensão ecológico-ambiental, ver Viola (1996). Sua análise suporta boa parte das afirmações que desenvolvemos.
[3] A respeito, ver Moreira (1999b), Parte I. Padrão de acumulação e modernização tecnológica.
[4] Para uma colocação mais detalhada, ver Agricultura familiar e assentamentos rurais e Agricultura familiar e sustentabilidade em Moreira (1999b).
[5] Ver o texto Parceria e os negócios do coronel em Moreira (1999b e 1996b).