Estudos Sociedade e Agricultura

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José Antonio Segatto

O lugar de Caio Prado Jr. na cultura política brasileira


Estudos Sociedade e Agricultura, 15, outubro 2000: 194-200.

José Antonio Segatto é professor da Unesp, Araraquara.

Este texto é a apresentação do livro de Raimundo Santos Caio Prado Jr. na cultura política brasileira, Mauad Editora/Faperj, no prelo.


É possível compreender o pensamento e a prática sociopolíticos no Brasil, no século XX, desconsiderando a cultura política dos comunistas? Raimundo Santos acredita que não; tanto é que, nos últimos anos, tem insistentemente – e contra a corrente da bibliografia especializada – procurado explicitar e resgatar o patrimônio político da esquerda histórica. Em seu modo parcimonioso, o resultado que nos apresenta Santos, em seu novo livro Caio Prado Jr. na cultura política brasileira, é considerável.

Agora, o “PCB” escolhido para o empreendimento é o grande publicista Caio Prado Jr. Do ponto de vista da historiografia das idéias, o seu livro esclarece como este intelectual – comunista, quase dissidente –, não obstante as diferenças, tinha com o PCB um objetivo comum: a construção do socialismo mediante uma revolução nacional e democrática, implicando uma reformulação da vida nacional – uma concepção de “socialismo de reformas capitalistas”. Essa trajetória não casual, de dissenso e convergência, Santos a retrata valendo-se de textos caiopradianos e pecebistas, alguns de seus intérpretes, e mesmo os mais severos críticos servindo para melhor colorir a moldura onde o autor quer colocar Caio Prado Jr.: como um pensador ligado à tradição marxista da ação teoricamente orientada.

O argumento de Caio Prado Jr. na cultura política brasileira se desenvolve a partir de dois eixos – eles são as duas primeiras seções do próprio volume – que Santos denomina de “reestruturação da economia” e de “reestruturação da vida política”, nem a primeira sendo tratada da perspectiva de uma análise que busque a crise do capitalismo brasileiro a todo custo – os capítulos chamam-se “O destino do agrarismo sindical”, “O marxismo estranho de Caio Prado Jr.” e “O socialismo de reformas capitalistas” –, nem a segunda parte segue a lógica do tempo pós-revolucionário, da montagem de uma nova institucionalidade como resultado das transformações empreendidas por poder novo, emergente de um movimento de ruptura da ordem estabelecida.

Em seu ensaio, Santos faz, pacientemente, o caminho da reconstituição textual, atento a contextos histórico-políticos e a outros discursos, visando retratar aquelas duas grandes transformações delineadas por Caio Prado Jr. como sendo a “revolução brasileira”, procurando mostrar que o historiador as concebe sempre do ângulo da “população”, em favor de cuja maioria ele defende dever-se-ia desenvolver a economia nacional e à qual a política também haveria de servir. As mudanças econômicas são pensadas de um modo muito distante do economicismo que às vezes se atribui ao intelectual comunista e estão contrapostas ao espírito de todo liberalismo, inclusive, se pudesse fazer a extrapolação, ao atual neoliberalismo.

Santos almeja mostrar que essa “revolução brasileira” é pensada ao modo da Abolição, como uma reforma gradualística do capitalismo existente no país e em moldes democráticos, para a qual seria indispensável que a vida política adquirisse mais substância, com base no sistema de partidos (isso é muito claro nos textos do pré-64 revisitados por Santos), num processo de curso anterior à revolução, em inúmeras passagens da obra do historiador, com ela se confundindo.

Não obstante Caio Prado Jr. ter oferecido, nessa perspectiva da “conclusão da nacionalidade”, um modelo de “renovação da economia agrária”, somente muito recentemente a bibliografia vem pondo atenção na sua idéia de reforma agrária ampliada, ou seja, um processo para ter curso na “generalidade do país”, no espírito de 1888, que se concluiria fundamentalmente por meio da valorização do trabalho. Uma reforma agrária que também contemplasse a constituição e o apoio à agricultura familiar para que ela preenchesse os entornos e os vazios dos grandes setores da agropecuária.

Diferente, porém, do campesinismo revolucionário, a questão da terra, em Caio Prado Jr., é concebida como parte integrante daquele processo – mais geral e reestruturativo – centrado na “dialética econômica” que, em lugar de “restos feudais” que dariam suporte a uma luta camponesa disruptiva, preside – como sua contradição mais profunda – a divisão do mundo rural entre os monopolizadores das condições de emprego e a grande massa dos sem-trabalho.

Mesmo que o autor seja cuidadoso em suas pretensões – quando ensaia alguma interpretação, Santos sempre fala de conjecturas –, vê-se que o seu ponto alto está na quarta e última seção do livro: “O lugar de Caio Prado Jr. no pecebismo contemporâneo”. Ali, ele cruza a linha da comodidade e propõe a reabilitação (palavra intranqüilizadora para quem procede da tradição) de Caio Prado Jr. para dentro do PCB, lugar onde o historiador, desde cedo, amargou o isolamento, até o final da vida, mesmo quando as rígidas clivagens ao interior do mundo marxista-leninista já haviam empalidecido.

O cálculo de Santos não é só o de incluir Caio Prado Jr. entre as três fontes do “pecebismo contemporâneo”, ou seja, na cultura política de frente única e gradualismo centrados na democracia política que o PCB – com todos os muitos poréns – amadureceu na sua trajetória contemporânea. A primeira dessas vertentes seria o “grupo pragmático” do Comitê Central que lidera o PCB a partir de 1958; a segunda estaria formada por alguns intelectuais “eurocomunistas” que explicitam o tema da democracia na práxis pecebista desde meados dos anos 70 e, por fim, Caio Prado Jr., que Santos considera parte daquele “pecebismo contemporâneo”, a partir de duas proposições-chave. Desdobrando o significado do agrarismo de grande empresa e do seu excurso sobre o industrialismo desordenado e inconcluso, o militante ilustre traria para o seu partido uma tese sobre o desenvolvimento auto-sustentado alternativo ao capitalismo de “negócios fáceis” e uma concepção de política brasileira, diferente do passado (“estéril” e “agitativa”), a ser vivida mediante “for-tes correntes de opinião” a partir da interação entre os debates dos “problemas nacionais” e os interesses estritos dos grupos sociais, no sistema partidário, nisto também uma tese bastante diferenciada da tradição marxista-leninista.

Santos também quer estimular um primeiro passo mais abrangente na recuperação da obra caiopradiana em relação à mentalidade da esquerda em geral. Desde logo, reconhecer que a Caio Prado Jr. não se pode atribuir postura de instrumentalização dos camponeses, acusação que ficara implícita no “segundo debate agrarista” do começo dos anos 80, no qual se criticava o PCB pelo modo “leninista” e “operário” de ver o mundo rural e por colocar os trabalhadores rurais no “projeto dos outros” (burguesia, classe operária, partido comunista, lembra Santos os termos da argüição), como dissera à época José de Souza Martins.

Não obstante a relutância do PCB, pelo rastreamento que faz Santos, vê-se a marca da teoria e das teses políticas do seu militante ilustre na evolução do partido, primeiro, a partir de 1952, quando ele começa a afastar a sua práxis agrária da “agitação estéril” (como diria Caio Prado Jr., referindo-se à concentração das esquerdas na luta pela terra em alguns pontos do território, mas que não se generalizariam como um grande processo de mudanças no mundo rural). Depois, passando a operar na esfera das entidades legais “na generalidade do país”, o PCB adotaria a política de “fundar sindicatos rurais”, caminho que terminaria – é Santos quem faz a imagem – consumando o agrarismo caiopradiano de grande empresa e lei trabalhista na Contag, fundada em 1963, no lastro da promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural por João Goulart (segundo o historiador, de valor comparável à Abolição).

Santos ainda projeta o sentido das dissertações caiopradianas para o pós-64. Quando a própria Contag sai à superfície no começo da redemocratização do país, as greves canavieiras desse tempo novo lembram-nos que não fora por acaso que Caio Prado Jr. inspirara o seu modelo de “revolução agrária” nas greves rurais pernambucanas de 1963. As conjecturas do autor são instigantes: nos anos subseqüentes, quando se acelera a hora do término da influência pecebista remanescente no sindicalismo rural, o agrarismo caiopradiano permanece como subcultura política ainda presente ante o novo modo de encaminhar o problema agrário, que viera substituir o estilo pecebista de interpelar os grupos agrários através da política pela nova tendência de valorização dos camponeses pelos seus modos de ser e que se difunde, a partir de 1975, com a decisiva presença da Igreja nos conflitos agrários que vinham “pontilhando o país” no pós-64.

Aliás, esta mudança na práxis religiosa atrai uma publicística marxista que vai reapresentar a questão da terra sob o tema da expropriação, atingindo, com a crítica que então faz aos comunistas, o paradigma de Caio Prado Jr. supostamente centrado na questão da exploração (recordar que a sua teorização não é propriamente a de um mero “capitalismo agrário”). Diferente do agrarismo caiopradiano e, nos últimos tempos, pecebista, essa publicística de apoio à nova práxis agrária desenvolve o seu principal argumento da territorialização do capital, tendo por fim potenciar as lutas e os protestos no mundo rural na perspectiva, se não de uma revolução, pelo menos de uma mobilização rupturista da ordem social e política.

Segundo Santos, as concepções caiopradianas não têm utilidade para esse novo modo de ver as lutas camponesas. Caio Prado Jr. não está alheio à denúncia que a Igreja fazia do economicismo do regime militar. O autor de Caio Prado Jr. na cultura política brasileira insiste em sublinhar que, com sua “revolução agrária não-camponesa” – de grande empresa, empregados, sindicatos e aplicação geral da lei, trazendo experiências complexas a grupos sociais significativos –, o historiador está propondo mudanças no mundo rural como uma “grande transformação” alternativa à exaustão do “milagre” brasileiro e à sua modernização seletiva. Esse é um traço da obra e do pensamento de Caio Prado Jr. muito instigante para o debate sobre a reforma agrária ora em curso.

No campo da política propriamente dita, ainda não se tem visto muitos sintomas de uma valorização das idéias caiopradianas. No PCB, aos comentários e respostas de época – sempre de reparo –, continua uma espécie de silêncio, não quanto à importância do historiador Caio Prado Jr., mas em relação ao papel do militante com o seu pensamento político.

O livro de Santos reaviva a curiosidade sobre a controvérsia de 1945. Até hoje continua pouco avaliado o significado da virada na política do PCB, quando ele saiu da convergência com liberais de Oposição, no movimento da UDN, para se aproximar de Getúlio no final do Estado Novo. Um tema atual e útil para se pensar a chamada questão da “centro-esquerda” de hoje (Santos cruza os símbolos “frentes únicas”, a de “1945” e o “MDB” do pós-64). Tampouco está nítido o diferendo de Caio Prado Jr. com o seu partido no pré-64, quando, voz isolada, o historiador dizia serem necessários “alicerces políticos” fortes para o encaminhamento das reformas estruturais daquela época e tinha muita reserva ante a voracidade do poder (reclamava da demagogia governamental e da agitação) em detrimento dos processos políticos substantivos de governo e de organização popular em profundidade. Esse é outro tema para se pensar as articulações desses nossos dias para o próximo pleito presidencial, sem a devida consideração sobre a consistência das candidaturas, sobre os valores políticos, culturais e ideológicos a informar os programas e, especialmente, sobre as forças multipartidárias suficientes para concretizar uma nova administração no campo da política e da sociedade.

Mas é na proposição do “produtivismo” caiopradiano que a argumentação recuperativa de Santos tem curso mais incisivo. O autor quer mostrar que o vigor de Caio Prado Jr. estaria no seu produtivismo, com as precisões já indicadas. Ou seja, um produtivismo identificável com a própria idéia de revolução e concebido com base em um marxismo político – exercitado para orient00ar a práxis de um partido e profundamente enraizado na história nacional. Uma proposição indissociável da sua interface: a idéia de uma vida política 0sólida à base de partidos e governos dotados de idéias políticas.

Em lugar de estranho, o marxismo com o qual Caio Prado Jr. labora suas concepçõe0s de desenvolvimento sustentado e a sua ciência política, nada abstrata mas desvinculada da “ânsia desmedida pelo poder” –usando uma expressão de Elias Chaves Neto, ao descrever a divergência de Caio Prado Jr. com a aproximação do PCB com Getúlio em 1945 e com Jango no pré-64–, formam um marxismo político de “publicista de partido”. Essa é a novidade e, ao mesmo tempo, a parte mais controversa das conclusões de Raimundo Santos, sobretudo quando se considera – como pensa ele próprio – que o marxismo brasileiro não se compõe apenas daquele que nascera na Universidade na passagem dos anos 50 para a década de 60.

Em suma, o livro traz um convite para uma leitura aberta a novas possibilidades de se aproveitar a contribuição do publicista das históricas editora e revista Brasiliense. Em boa hora ele vem com o seu propósito declarado de resgatar o autor comunista. A colocação do pensamento político de Caio Prado Jr., como também do seu PCB, com todos os aspectos problemáticos deste último – que não são poucos –, constitui uma passagem inevitável para uma nova esquerda que, como observa Santos, para evitar o cosmopolitismo e o erratismo (termo sempre repetido pelo historiador), busque identidade no âmbito da cultura política nacional. Caio Prado Jr. e o PCB relembram oportunamente a existência de uma larga tradição de esquerda no Brasil. O primeiro oferecendo um estilo marxista de pensar o país como uma “totalidade” que se move com suas partes e elementos que possuem autonomia quando vivem os debates e a política; o segundo, particularmente, tendo muito a dizer nesta hora de debilitamento da política. A política, justamente, era a grande obsessão do velho “Partidão que nunca vacilou em andar por caminhos de pedras, ou tecer, quando tudo parecia difícil, pacientemente, a sua “estratégia de miudezas” para aproximar o campo democrático (ele era um “partido de serviço”, como disse certa vez Alberto Aggio) das suas causas gerais, como, no tempo contemporâneo, lembram a batalha pelas “reformas de base” nos anos 50/60 e a reconquista da democracia política, desde 1964, incluído o curto governo de “transição dentro da transição interrompida” que foi o governo Itamar Franco, já no período que ainda hoje se vive de defesa da política e de aprofundamento da mesma democracia política.

Não por acaso, Raimundo Santos tem repetido a lição de Giuseppe Vacca que nos relembra que o aggiornamento de uma tradição de esquerda implica interpelar o seu passado político-intelectual, da forma a mais crítica possível, como condição para melhor formular as novas tarefas, inclusive extrair não poucos instrumentos de análise sumamente úteis para o tempo presente, especialmente para se ter, neste tempo sombrio em que tudo parece derrota e catástrofe, uma visão mais estratégica sobre os rumos do quadro político atual e do próprio país.