Estudos Sociedade e Agricultura
Akiko Santos
Ciência pós-moderna e educação
Estudos Sociedade e Agricultura, 6, julho 1996, 198-206.
Akiko Santos é professora da UFRRJ.
À medida que revisamos a bibliografia sobre a chamada ciência pós-moderna, mais percebemos a distância entre teoria e a prática na educação. Durante a era moderna, a prática educativa se “autonomizou” da sua teoria, fazendo crer que ela e as técnicas didáticas eram neutras. Esse estratagema se transformou em senso comum entre os professores de didática, facilitando as manipulações pelos planejadores educacionais (diga-se de passagem que a técnica de planejamento também se transformou em um instrumento neutro). E assim, esses professores (neutros) junto aos técnicos educacionais (igualmente neutros) planejam a educação omitindo a existência da relação que a prática mantém com a teoria. Enquanto isso, as teorias alternativas correm paralelo à prática conservadora. A chamada Pedagogia Crítico-Social (Libâneo, 1991; 1995), apesar de assumida por muitos professores, se mantém na área teórica, sem contudo, conseguir penetrar e transformar as práticas receituárias.
Podemos atribuir a raiz desse problema à tradição da ciência newtoniano-cartesiana, que estruturou e organizou não só a educação, como também a formação e pensamento de cada ser humano durante os 400 anos de sua hegemonia. Esta dominação tem deixado profundas marcas culturais e de comportamento. No dizer de Moreira (1994), a tradição da ciência moderna, de inspiração disciplinar, é a base do reducionismo e da concepção dual da realidade; ou seja, de um mundo “constituído disciplinarmente, por conceitos, teorias e técnicas de cada ciência e profissão, (que) representam no contexto da tradição um mundo segmentado, recortado e fragmentado.” (Moreira: 1994).
Na chamada era pós-moderna,[1] essas características da ciência moderna vêm sofrendo mudanças e gerando um conjunto de princípios que estão se conformando através da necessidade de um olhar mais abrangente, princípios cada vez mais centrados no reconhecimento da complexidade do ser vivo e do próprio conhecimento. Estas notas pretendem tão-somente sistematizar alguns desses princípios a partir de uma bibliografia que discute a epistemologia científica com maiores insinuações sobre nosso campo temático da educação, e da didática, em particular.
Princípio da interdisciplinaridade/transdisciplinaridade
Uma proposição mais geral assinala que as ciências, na tradição, fragmentadas em seus diversos compartimentos estanques, agora estão se inter-relacionando cada vez mais à medida que se busca uma abordagem mais abrangente dos fenômenos humanos e naturais, reivindicando-se uma explicação mais radical e global, isto é, sem perder a complexidade da parte e do diverso.
A denominação “interdisciplinaridade” já não comporta o significado da ultrapassagem empreendida pelas diversas disciplinas nas quais estão contidos os conhecimentos estruturados sob parâmetros epistemológicos específicos a cada área de conhecimento. Desse relacionamento e dessa ultrapassagem surge um novo corpo cognitivo, daí porque os que hoje pretendem maior rigor terminológico preferem usar a denominação “transdisciplinaridade”, significando o termo uma ultrapassagem das fronteiras epistemológicas de cada ciência, entendida como uma construção e busca de auto-conhecimento, não se contentando com razões e justificativas pré-concebidas. Portanto, uma ruptura com o paradigma prevalecente na ciência moderna.
Desde diversas áreas da ciência, cientistas contemporâneos têm revelado elementos fundamentais para a compreensão do modo de consciência da inserção do homem na vida. Tal complexidade destrói as formas tradicionais de compreender a relação dos homens entre si e destes com o mundo exterior, e, por conseguinte, sugere uma transformação radical na educação como instituição escolar.
Como se sabe, o espaço escolar constitui o lugar onde se processam os elementos individuais, coletivos, a partir das interações alunos-alunos, alunos-professores, alunos-instituições, alunos-fenômenos sociais mediados pelo conhecimento, abarcando tal experiência a totalidade na particularidade, visando a formação do cidadão e sua autonomia dentro do processo coletivo.
Os educandos, através de uma rede de referenciais de leitura do mundo, vão construindo e reconstruindo a si mesmos nas suas interações mediadas pelo conhecimento. Esta rede de referenciais, que constituem o paradigma educacional, recentemente tem-se ampliado com estudos sobre o processo de conhecimento, o qual permanece disperso em múltiplos compartimentos das ciências físicas, biológicas e humanas. Através da transdisciplinaridade vem-se tentando organizar questões relativas a um objeto de pesquisa em comum. O conhecimento passaria a ser, portanto, resultado de uma rede de articulações que requer um aparato que permita o diálogo dos diferentes enfoques.
Princípio da interdependência
A ciência contemporânea vem refutando o paradigma pedagógico estruturado com base nas categorias lógicas e mentalistas, assentadas no dualismo corpo/mente, razão/emoção, sujeito/objeto. Ela tem procurado resgatar o papel das emoções nas atividades humanas (Goleman: 1996), realça a inseparabilidade do sujeito-objeto no conhecimento dos fenômenos naturais (Morin: 1991) e do cosmos (Gleick, 1990), mostrando a íntima inter-relação destas categorias, desatualizando, em conseqüência, as pedagogias estruturadas com base em dualidades.
A complexidade da atividade pedagógica deve expressar então a complexidade do ser humano, ou seja, os nossos educandos e nós mesmos, os professores. Se na modernidade tratávamos os educandos como um padrão, ou simplesmente uma abstração, transmitindo-lhes o conhecimento de forma racionalista e fragmentária mediante técnicas didáticas mecanicistas, na pós-modernidade, a interdependência passa a ser o desafio, se considerarmos as incursões feitas por cientistas contemporâneos de diversas áreas construindo um novo olhar sobre o homem, a natureza e o próprio conhecimento.
Princípio da auto-organização
O paradigma educacional moderno ignora o lado subjetivo do aprendente e apresenta o conhecimento dentro de uma estrutura fragmentada, cientificista, linear e a-histórica, transformando-o em conteúdo vazio, mecânico, desligado da construção da subjetividade e do processo vital.
Neste sentido, Maturana e Varela, desde a vertente da biologia, têm dado decisiva contribuição, revelando o lado subjetivo da construção do conhecimento, através do seu conceito de autopoiése (“auto-fazer-se”) como característica de um organismo vivo, que se constrói a si próprio e se adapta ao meio (Maturana e Varela: 1995).
A socialização que caracteriza o ser humano envolve de forma complexa a apreensão de uma realidade objetivada prenha de sentidos, que servem de substrato para a construção de uma realidade subjetivada. Neste processo o ser humano herda toda a história da humanidade, tornando-se capaz de sobreviver, assim se transformando num cidadão “integrado” ao já instituído.
Tal processo se efetiva através de perturbações e embates subjetivos do ser em construção. Torna-se complexo responder a perguntas tais como: como se constrói o conhecimento? quais as dificuldades? os professores atuam de acordo com o processo vital, revelado por Maturana e Varela, do sujeito que apreende, reflete, reconstrói a si próprio e a suas relações com o mundo?
No dizer desses dois autores, a aprendizagem é uma “expressão do acoplamento estrutural, que sempre manterá uma compatibilidade entre o operar do organismo e o meio” (Idem). A esta indissociabilidade convergem as conclusões do pesquisador Daniel Goleman (1996) e de Antônio Damásio (1996), revelando a unicidade do corpo/mente, razão/emoção, em busca de equilíbrio num contexto de conflitos e tensões, num processo dinâmico e aberto.
As pesquisas oriundas do estudo do cérebro, da biologia, da neurofisiologia demonstram a necessidade de reajustarmos a concepção do processo de aprendizagem, do currículo, da relação que os professores estabelecem com os educandos, da expectativa e avaliação que se constrói. Através do contraste entre esse princípio da auto-organização e a prática usual na educação, torna-se compreensível porque é ineficaz a intervenção dos professores nos moldes atuais, ocasionando os conhecidos resultados: fracassos, altos índices de evasão e repetência no sistema educacional, etc., sem subestimar ainda os fatores socioeconômicos que aí atuam, exigindo, por sua vez, novos olhares e novos caminhos para estruturar a atividade pedagógica.
O desafio posto para a instituição escolar consiste na integração das atividades pedagógicas com as descobertas que as ciências estão desenvolvendo atualmente, o que, por certo, vem demolir muitas posturas que ainda hoje são senso comum entre os pedagogos e ao mesmo tempo irá obrigá-los a ampliar os fundamentos da educação, conseqüentemente ensejando um reajuste da prática educativa.
Princípio da incerteza e do caos organizador
A ciência moderna construiu-se a partir da ordem, da certeza e da hierarquização. A ciência pós-moderna contrapõe-se a este determinismo, mostrando o tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações, acasos, traços de confusão, o inextrincável, a desordem, a ambigüidade, a incerteza, indeterminações, fenômenos aleatórios (Pessis-Pasternak, 1993); ou seja, demonstra que os fenômenos estudados passam de um estado desordenado a um estado ordenado, o que quer dizer que do caos surge a ordem.
A incerteza se mantém nos limites do nosso entendimento como nos fenômenos a serem observados, requerendo consciência das possibilidades e limitações da própria ciência, pois nem tudo é passível de medição. A complexidade constitui, assim, uma nova atitude para com o conhecimento.
Princípio holográfico
Ao princípio da divisão, das partes e do todo do paradigma clássico, a ciência pós-moderna contrapõe a sua visão holográfica, afirmando que a parte não somente está dentro do todo, senão que o todo também está dentro da parte. Com isso, ressalta o paradoxo do uno e do múltiplo, ou seja, da íntima relação e interdependência entre a parte e o todo. A parte explicando-se através do todo. Com a sua disjunção, corre-se o risco da perda de significação (Petraglia: 1995). Para David Bohn (apud Talbot: 1991), muitos dos nossos problemas ocorrem devido a nossa tendência em fragmentar o mundo, ignorar a interligação dinâmica de todas as coisas e desconhecer que o universo é constituído como um holograma. Ou seja, tudo no universo é parte de um contínuo que o autor chama de holomovimento, devido a sua natureza ativa e dinâmica. Karl Pribram (idem), um neurofisiologista da Universidade de Stanford, estudando o cérebro, chega às mesmas conclusões de David Bohn, um físico quântico, e declara que o cérebro é um holograma envolto por um universo holográfico, ou seja, essa visão abre uma nova perspectiva aos pesquisadores. Trata-se agora de desenvolver um movimento contrário ao de desmontar conjuntos e fragmentar totalidades para explicar que a realidade e as partes só podem ser compreendidas a partir de suas inter-relações com a dinâmica do todo; ou seja, ressaltando-se, a inter-relação e a interdependência dos múltiplos níveis da realidade.
Sistema complexo dinâmico e adaptativo
Por sua vez, a complexidade engloba diversos elementos, distintos e heterogêneos, já não sendo mais suficiente a análise através do estatuto cartesiano, exigindo-se uma síntese mais globalizadora. O complexo não se explica mediante particularidades ou as especificidades do mais simples, e já não tem a transparência que esperávamos encontrar na natureza; pelo contrário, encontramos a opacidade, processos irredutíveis de estruturas dissipativas (Prigogine: 1992), que se recriam e se renovam no tempo e na dinâmica subjetiva e intersubjetiva das intervenções aleatórias. O estatuto de heterogeneidade, que caracteriza a complexidade, revela-se por diferentes referências e linguagens distintas, que se fazem co-presentes na realidade sem perderem, no entanto, a sua especificidade (Burhan: 1993). O paradigma da complexidade rompe com o pensamento linear, hierarquizante e reducionista. Segundo Edgar Morin, a complexidade “é a extrema quantidade de interações e de interferências entre um número muito grande de unidades (...) que desafiam as nossas possibilidades de cálculo; mas a complexidade abrange também indeterminações, fenômenos aleatórios (...) Ela convive com uma parte da incerteza, seja nas raias de nosso entendimento, seja inscrita nos fenômenos (...) É por isso que precisamos conceber o Universo a partir daquilo que denominei o tetragrama: ordem/desordem/interações/organização (...) Ele nos revela a sua complexidade (...) O objetivo do conhecimento não é descobrir o segredo do mundo numa palavra-chave. É dialogar com o mistério do mundo” (Pessis-Pasternak: 1993).
No espaço das escolas, a heterogeneidade e linguagens distintas estão dadas, mas a educação moderna direciona o desenvolvimento dos alunos com base numa compreensão estabelecida pela tradição newtoniano-cartesiana, selecionando fatores prioritários, fragmentando tanto o conhecimento, como o aprendente, submetendo todas as atividades a uma forma de controle autoritário e unidirecional, sobremaneira desconhecendo o processo subjetivo e pessoal da construção do conhecimento.
O novo cenário epistemológico da complexidade (Abreu: 1995) repercute na educação e exige conhecer por diferentes óticas, entender e falar diversas linguagens e considerar vários sistemas de referências. Desse modo, no campo da pesquisa educacional fica patente a insuficiência de um único paradigma epistemológico/metodológico para penetrar o mundo constituído pela atividade educacional, permeado que é pelos valores, crenças, manifestações de inúmeras culturas que interagem na construção de mundos interiores de cada componente.
O enunciado dos princípios que ora resumimos da bibliografia constitui apenas uma tentativa de chamar a atenção para algumas postulações que emergem de diversas áreas da ciência contemporânea. Embora nossas referências se limitem a um número relativamente pequeno de autores, temos indícios para crer que tais elaborações têm incidências e repercussões mais amplas e profundas.
Tais avanços que a ciência pós-moderna está tornando público, seguramente, têm conseqüências imediatas para a Educação e transformam-se em instigantes subsídios para todos aqueles que se preocupam com o fenômeno educacional.
Essas questões e princípios tendem a ser organizados em torno do que está sendo chamado de Teoria dos Sistemas Dinâmicos Complexos. Isto tudo vem permitindo falar hoje de um paradigma da complexidade, afirmando-se como um pensamento emergente em contraposição ao paradigma da era moderna.
Como já foi antecipado pela colocação de Thomas Kuhn (1991), o paradigma moderno entra definitivamente em crise e já presenciamos o surgimento de novos princípios para o equacionamento dos problemas, exigindo um novo olhar sobre a educação. Se queremos construir um ensino de qualidade, combater as mazelas do Sistema Educacional (sem menosprezar as causas socioeconômicas), torna-se imprescindível repensar a prática educativa através das teorias que a fundamentam e chamar atenção dos professores para os avanços da ciência pós-moderna, cuja importância é de tal monta que significa não somente aprender novos conceitos, como sobremaneira implica na mudança de atitudes dos próprios educadores.
Referências bibliográficas
Abreu, Laerthe. O cenário epistemológico da complexidade. Tese apresentada à Unimep, 1995.
Assmann, Hugo. Pós-modernidade e agir pedagógico. In: VIII Endipe, Florianópolis, maio de 1996.
Burhan, T. F. Complexidade, multirreferencialidade, subjetividade: três referências polêmicas para a compreensão do curriculum escolar. In: Em aberto, ano 12, 58, abril/junho 1993.
Damásio, Antônio. O erro de Descartes. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
Goleman, Daniel. Inteligência emocional. Rio de Janeiro, Objetiva, 1996.
Gleick, James. Caos: a criação de uma nova ciência. Rio de Janeiro, Campus, 1990.
Kuhn, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo, Perspectiva, 1991.
Libâneo, J. C. Pedagogia e modernidade: presente e futuro da escola. In: VII Endipe, Goiânia, 1995.
__________. Didática. São Paulo: Cortez, 1991.
Maturana, H. e Varela, F. A árvore do conhecimento. Campinas, Psy II, 1995.
Moreira, Roberto. Sociedade e universidade: as cinco teses equivocadas. Estudos Sociedade e Agricultura, 3, novembro 1994.
Morin, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa, Instituto Piaget, 1991.
Pessis-Pasternak, Guitta. Do Caos à Inteligência Artificial. São Paulo, Unesp, 1993.
Petraglia, I. C. Edgar Morin: a educação e a complexidade do ser e do saber. Petrópolis, Vozes, 1995.
Prigogine, I. e Stengers, I. Entre o tempo e a eternidade. São Paulo, Companhia das Letras, 1992.
Talbot, Michael. O universo holográfico. São Paulo, Círculo do Livro, 1991.
Notas
[1] Para uma referência ao conceito de pós-modernidade, trabalhado a partir dos autores clássicos (Foucault, Lyortard, Derrida, Habermas), ver Assmann (1996).