Estudos Sociedade e Agricultura

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Maria Isabel Ferraz Pereira Leite

Crianças do campo - os mudos da história?


Estudos Sociedade e Agricultura, 6, julho 1996: 170-191.

Este artigo é fundamentado na dissertação intitulada No campo da linguagem, a linguagem do campo - o que falam de escola e saber as crianças da área rural?, apresentada à PUC/RJ, 1995.

Maria Isabel Ferraz Pereira Leite é professora da UERJ.


São os que em público, diante do estranho, permanecem em silêncio - as mulheres, as crianças, os velhos, os agregados da casa, os dependentes, os que vivem de favor. Ou os mudos da história, os que não deixam textos escritos, documentos. (José de Souza Martins)

Entendendo a criança como sujeito sociohistórico, produtor e consumidor de cultura, cidadã hoje, optei por destacar como depoente desta pesquisa o infante que, etimologicamente, é aquele que não fala. Procuro assim sinalizar a possibilidade de falar como marca do não-autoritarismo: é o não-aprisionamento da palavra. É aflorar a consciência de que ser falado é diferente de se pronunciar... Ao escolher trabalhar com a fala das crianças da área rural a fim de perceber sua visão de escola e de saber, privilegiei trabalhar com aqueles que mais diretamente vivem o processo de escolarização e que se encontram multiplamente marginalizados: são crianças, pobres e camponesas.

Uma vez que me relacionei com um sujeito produtor de cultura e, portanto, narrador, não devo sugerir que dei voz à comunidade rural - ela já tinha voz! Procurei, sim, instigá-la a soltar a voz. Afinal, falar é perceber-se na corrente da comunicação verbal, em suas múltiplas vozes. Portanto, em seu discurso, enquanto membro de uma coletividade, a criança está em relação com todos os sujeitos e todos os contextos da enunciação: está situada historicamente. Recorro novamente a Martins (1991: 58), quando diz: “A fala de cada criança é claramente fragmento de um enredo mais amplo, que ela protagoniza com os outros.”

Conhecer a criança e compreender como se dão suas relações na família, no trabalho, no lazer, possibilita levantar questões acerca de suas relações no interior da escola - com seus pares, sua professora, metodologia, disciplina - e entender o papel desta escola na comunidade.

Não aceitar a mudez - com a palavra: a criança!

Estava preocupada em perceber as diversas contradições sociais presentes no contexto rural, em interagir diretamente com seus atores, procurando captar o significado das suas ações na sociedade. Para isso, tive necessariamente que interagir, dialogar, levar em conta suas contradições, seu pensamento. É o desafio de falar da comunidade rural e não sobre ela... isto é, não pretender que as coisas venham em minha direção, mas que eu as penetre, assim como nos livros de histórias, “não são as coisas que saltam das páginas em direção à criança que as contempla - a própria criança penetra-as no momento da contemplação” (Benjamin, 1984: 55).

Esta postura me remetia a um entendimento da realidade como polifacética, e não como algo pronto ou dado, que pudesse ser simplesmente retratado; ela tinha que ser penetrada para que pudesse ser percebida, compreendida - e compreensão pressupõe subjetividade. Cabe deixar claro que esta posição não implicou - ao contrário! - abrir mão do rigor necessário à construção do conhecimento; tal postura me fez abdicar da rigidez, do aprisionamento. Se eu tomasse posse das falas, me apropriasse de conclusões como verdades únicas, estaria tornando a palavra monológica, dicionarizada.

Vale destacar que não gostaria de me referir à comunidade rural como meu objeto de estudo; gostaria, sim, que ela fosse narrada como sujeito, possuidor de inúmeros conhecimentos espontâneos, com vida, em processo dinâmico e contínuo de transformação.

Elegi como suporte teórico dialogar com Walter Benjamin, Mikhail Bakhtin e Lev Vygotsky, entendendo a contribuição dos três no que se refere, especialmente, à construção do conceito de infância e de linguagem, destacando a importância do contexto social na constituição da identidade do sujeito.

Contextualizando a pesquisa

Com 283km2, São José do Vale do Rio Preto é um dos 84 municípios do Estado do Rio de Janeiro. Apresenta características típicas da região serrana do Estado: clima temperado-seco (frio no inverno e quente no verão; fortes chuvas em março e seca no inverno); terrenos muito acidentados cobertos em seus picos por florestas de candeias e, em sua base, de capoeira rala. Sua altitude média é de cerca de 615m.

Cortado por um grande rio, possui ainda 96% dos domicílios urbanos com esgotamento sanitário inadequado (IBGE, 1994). Abastecimento de água, eletrificação e manutenção das estradas vicinais são alguns dos desafios da nova administração municipal.

Há mais de 50 anos, fazendeiros da região tiveram a iniciativa de fazer e bancar pequenas escolinhas dentro de suas próprias fazendas com o objetivo de qualificar a mão-de-obra - havia necessidade de empregados que pudessem prestar contas, que fossem mais esclarecidos... junto com isso, os filhos também iam. Pouco a pouco, o Estado foi assumindo estas escolas. Mais recentemente o município as assumiu e hoje, segundo Sydenstricker (1993), há 21 escolas municipais. No entanto, ainda hoje as atividades que exigem maior qualificação de mão-de-obra (tirar notas fiscais, mexer em máquinas, dirigir automóvel, comercializar) se ressentem do baixo nível de escolaridade da região. Apesar de o sistema de pequenas escolas rurais ser há tanto tempo conhecido ali, segundo o IBGE (1994), 21,4% da população adulta (15 anos ou mais) e 11,6% dos jovens (entre 11 e 14 anos) permanecem analfabetos.[1] É preocupante perceber que, no trabalho sazonal (caqui), muitas famílias levam seus filhos para o serviço, o que nos faz entender que estas crianças não estão indo à escola. Este quadro apresenta modificações quando se fala dos filhos dos trabalhadores já mais qualificados; estes valorizam a escolaridade e mandam seus filhos estudarem, mesmo que seja longe de casa...

Sabemos que já não dividimos as “regiões” rural/urbana de forma tão estanque; o que avaliamos é a presença de um maior ou menor grau de ruralidade em contraposição a um maior ou menor grau de urbanidade (Williams, 1990). Com 80% dos seus 15 mil habitantes morando na zona rural (Sydenstricker, 1993), a fronteira cidade versus campo em São José fica ainda mais tênue...

Sua emancipação em 1987 trouxe novas portas de comunicação. Desde 1994, há uma estrada asfaltada de apenas 11km ligando o centro da cidade à Rio-Bahia (estrada interestadual de grande movimento), criando uma multiplicidade de redes de escoamento e recepção de recursos, inclusive porque nela se encontra um grande mercado produtor, o Mercado do Peão. Em 1995 foi criada uma linha direta de ônibus a partir do Rio de Janeiro (170km de distância). O município tem enfrentado novas mudanças por estar ampliando seu sistema de ligação com outras regiões do Estado - maior rede de escoamento de mercadorias, maior trânsito de pessoas de fora, desenvolvimento do setor terciário etc. A cidade começa a se estruturar com um pequeno centro burocrático - despachantes, contadores, comércio - convivendo, dentro de suas contradições e possibilidades, com a zona rural.

A topografia acidentada e o clima determinaram a vocação granjeira do município, que chegou a ser o maior centro avícola da América do Sul. Complementarmente, é hoje um dos maiores produtores de caqui do Estado (há cinco grandes fazendas dedicadas a este plantio - a única cultura sazonal da região -, que correspondia, em 1990, a 73% do valor total da produção agrícola do município) e abriga um dos grandes criatórios de cabra. Um decreto estabelecendo que os municípios emancipados receberiam apenas uma pequena parcela do Imposto sobre Circulação de Mercadoria (ICM) fez com que este município ocupasse o 64. lugar na lista de arrecadação dos municípios fluminenses. Antes desse decreto, como o cálculo era baseado na sua própria produção, estimava-se que seria o 23. na arrecadação do Estado (Sydenstricker, 1993) - argumento forte em sua campanha de emancipação.

Tornou-se também uma região plantadora de chuchu - lavoura anual que se adequa perfeitamente aos morros -, creio, através do empenho dos pequenos lavradores e empregados da região. Atualmente é o maior produtor do Estado do Rio, mas não em recolhimento de impostos, pois tem sua produção estruturada ainda na economia informal.

No final de 1994 foi inaugurado um escritório de Serviço de Apoio à Micro e Pequena Empresas do Rio de Janeiro (Sebrae/RJ) como incentivo à legalização das mesmas. A Empresa de Apoio ao Trabalhador e Extensão Rural (Emater), juntamente com a Prefeitura, tem dado muito incentivo para a ampliação das parreiras de maracujá como produto alternativo de melhor preço no mercado.

A regulamentação do salário mínimo para a área rural e a proibição da contratação de crianças exigiu reestruturação no sistema produtivo das fazendas e granjas. Hoje não é comum ver crianças trabalhando como empregados destes estabelecimentos. Esta reestruturação abriu mais o campo de trabalho para as mulheres, especialmente em granjas (recolher e embalar ovos). Segundo o IBGE (1994), 54,9% dos chefes de família têm renda até um salário mínimo.

Vale lembrar que isto é ainda muito recente e não pode ser generalizado - apenas 10 anos atrás ainda se via freqüentemente na região o trabalho “em-troco-de-bóia”, isto é, sem remuneração alguma. Os trabalhadores (comumente famílias inteiras) recebiam dos proprietários das fazendas apenas a comida.

As crianças com as quais convivi neste período são, em sua maioria, filhos de lavradores. Entretanto, pude perceber que, dentro deste universo, há uma certa hierarquia social - pequenos proprietários, parceiros de produção e empregados das fazendas. No que se refere aos empregados, há encarregados,[2] caseiros, produtores rurais e ajudantes. Nominalmente, a diferença salarial entre os empregados é pouca, porém o status varia bastante.

A infância na zona rural

As crianças não constituem nenhuma comunidade isolada, mas sim uma parte do povo e da classe de que provêm. (Walter Benjamin)

A concepção que temos de criança modificou-se ao longo do tempo, especialmente em função de questões político-sociais. Sua história se fez à sombra daquela dos adultos e das instituições (Ariès, 1981; Priori, 1991).

A criança da área rural, por mim tomada aqui, brinca e se relaciona com seus pares ao mesmo tempo em que convive com seus outros papéis, suas funções dentro da comunidade familiar, o cumprimento de suas tarefas. Ela constrói e vive o hoje, vive a sua história. Ela vive a história da sua família, da sua comunidade, da humanidade e seus brinquedos são “um mudo diálogo simbólico entre elas e o povo” (Benjamin, 1984: 70). Com isso, ela transcende sua realidade, a extrapola - volta ao ontem, dando possibilidades de construção de um novo amanhã. Neste trabalho procurei não sectarizar a criança-trabalhador, a criança-sem-infância, a criança-oprimida, mas pensar na criança enquanto ser social, situado no tempo e no espaço.

Diferentemente das crianças da periferia das grandes cidades (Faria, 1993), estas crianças na zona rural usufruem de um estreito contato em família - que são geralmente numerosas - e pais, filhos grandes e pequenos coexistem de forma a possibilitar que cada um seja verdadeiramente importante e único no seu funcionamento como um todo.

Buscando a história do trabalho na área rural, vê-se que do final dos anos 50 até meados dos anos 60, no Brasil, o trabalho assalariado cresceu muito através do subemprego, do chamado trabalho volante, isto é, das diferentes formas de trabalho clandestino. Isso contribuiu para que seu crescimento não se fizesse acompanhar de uma melhora nas condições de vida no campo. Esta modalidade de trabalho não distingue sexo ou idade, e por isso a sua condição de clandestina “é responsável pela situação real e efetiva de pobreza absoluta em que se encontram milhares de crianças trabalhadoras, cujo destino desde tenra idade as vincula à produção” (Gnaccarini, 1991: 86). Entre finais dos anos 60 e cerca de 1977, esta já era a forma mais importante do emprego rural. Só a partir de 1979 percebe-se concretamente uma industrialização na agropecuária, que se integra no ciclo do capital social. Há diversificação dos cultivos de tal forma que a demanda de trabalho passou a ser mais uniforme durante o ano, diminuindo o impacto migratório (sazonalidade de cultura), criando uma nova modalidade de turmas fixas de volantes. O que o capital faz, então, é ir substituindo parte da mão-de-obra adulta masculina pela mão-de-obra feminina e, especialmente, pela mão-de-obra infantil.

Segundo Dourado (1995), o trabalho infantil gera impacto sobre a saúde das crianças, o mercado de trabalho e o rebaixamento de salários. Ressalta que não é raro encontrar crianças lidando com lavouras contaminadas por agrotóxicos, utilizando-se de instrumentos extremamente perigosos (foice, machado, enxada) ou carregando peso excessivo, afetando seu desenvolvimento e correndo riscos de se tornarem vítimas de graves acidentes e mutilações.

O ciclo que se cria é: quanto mais crianças trabalhando, maior o número total de trabalhadores, isto é, maior a oferta de mão-de-obra. Em decorrência disso, há queda nos salários. Com a diminuição da renda, há maior necessidade familiar de se colocar as crianças no trabalho. Dourado (1995) ilustra com dois dados do IBGE (1990): 42,1% das crianças entre 5 e 17 anos, que vivem na zona rural, não freqüentam a escola; e 59,3% das crianças entre 10 e 17 anos trabalham mais de 40 horas semanais na área rural. Pereira (1995) aponta como as crianças ocupam as piores tarefas e recebem, ainda segundo dados do IBGE, até três vezes menos que os adultos.

No entanto, as crianças do município de São José do Vale do Rio Preto hoje não exercem, em sua maioria, funções formais remuneradas nas fazendas ou granjas da região. Elas se envolvem em muitos outros tipos de trabalho que não o assalariado. O trabalho familiar ocupa grande espaço nesta área - desde bem pequenas realizam as tarefas junto aos mais velhos: ajudam suas mães nas atividades domésticas e seus pais em serviços variados; o que não invalida ou minimiza os riscos para sua saúde. Este trabalho doméstico é encarado como trabalho e é internalizado como sendo fundamental, não-opcional.

Na legislação brasileira, segundo Dourado (1995), o direito infantil aparece como negativo, ou seja, o direito ao não-trabalho. Portanto, o direito ao lazer, ao convívio familiar, à educação... não está explícito. Ressalta também que o trabalho infantil rural tem duas especificidades: primeiro, não é considerado trabalho, mas ajuda, pois não há pagamento. Os pais recebem salários aviltantes e colocam mulheres e crianças (cada vez menores!) para ajudá-los.

Vale destacar uma questão conceitual apontada por Pereira (1995): quando a legislação condena o trabalho infantil, não está se referindo às atividades do dia-a-dia junto ao seu grupo familiar. Busco este conceito em Martins (1991: 61-62): “o trabalho é missão, e missão familiar. A família se mantém através do trabalho de todos os seus membros, independentemente da idade.(...) O primado do trabalho é, na verdade, o primado da família. O trabalho reproduz a família”. O que percebo nesta localidade é que a criança convive com a família, trabalha, preserva sua alegria, seu espaço-criança, seu brincar. A realidade lá é muito diferente da que vemos retratada quando se denuncia o trabalho escravo de crianças no Brasil (Ripper, 1995; Huzak & Azevedo, 1994). Sobre esta criança espoliada e explorada, Martins (1991: 67) diz:

A alegria da brincadeira como exceção circunstancial é que define para as crianças desses lugares a infância como um intervalo no dia e não como um período peculiar da vida, de fantasia, jogo, brinquedo, de amadurecimento. Primeiro trabalham, depois vão à escola e depois brincam, no fim do dia, na boca da noite. A infância é o resíduo de um tempo que está acabando.

A legislação combate o ingresso no trabalho em detrimento da vida escolar - entende que a realidade brasileira exige isto exatamente para priorizar a escola. É importante reforçar que o trabalho familiar por sua organização própria (como visto nesta comunidade), é diferente do trabalho familiar por exploração (apontado por Dourado anteriormente como aquele que leva pais a convocarem mulheres e crianças para ajudá-los) - nestes últimos, muitas vezes, nem as famílias têm a dimensão de que as crianças trabalham, uma vez que, segundo ele, internalizam apenas como ato educativo e de ajuda.

Dirigindo o olhar para a criança do campo, encontramos autores (Paoli, 1991; Antuniasse, 1983) que apontam para o fato de que ela tem sua escolaridade reduzida por causa do trabalho precoce na lavoura; da sazonalidade das culturas etc. No município estudado, onde a lavoura predominante é anual (chuchu), este dado não apareceu nas falas (a não ser na fala da fazendeira de caqui). No entanto, faltam à aula para brincar, para ajudar os pais... O fato de elas terem uma vasta área disponível para brincadeiras também as diferencia das crianças dos bolsões da periferia. Será a brincadeira um fator de peso para faltar às aulas? Que espaço as brincadeiras ocupam em suas vidas?

As crianças não se limitam a recordar e reviver experiências passadas quando brincam, mas as reelaboram criativamente, combinando-as entre si e edificando com elas novas possibilidades de interpretação e representação do real de acordo com suas afeições, suas necessidades, seus desejos e suas paixões (Jobim e Souza, 1994: 148).

Observei que meninos e meninas brincam nas estradas de terra batida, na lama, no riacho que passa. Brincam de puxar lata, rodar pneu, colher fruta, andar na bicicleta dos pais, de catar capim na horta, de recolher o gado, de amarrar a cabra no pasto, de bola, de comprar na venda, de correr. O trabalhar e o brincar da criança nesta comunidade caminham entrelaçados?

Vygotsky (1984) nos aponta para o fato de as crianças exercerem tarefas diversas dando a elas um caráter lúdico e singular. A criança, enquanto sujeito social, brincando, não está só fantasiando, mas trabalhando suas contradições e ambigüidades, trabalhando valores sociais. O brincar não é uma característica infantil, mas do ser humano. Ele não é inato, mas aprendido de maneira não-formal, sob a égide da formação de cultura (produzida por todos). A fantasia, a imaginação, são fundamentais, mas não são específicas ou exclusivas da criança, assim como o real também não o é. Apesar das especificidades, há uma natureza humana que aproxima as necessidades de crianças e adultos: o jogo, o lazer, a brincadeira, o devaneio... Vygotsky quebra a dicotomia entre mundo-adulto-sério e mundo-criança-não-sério.

Além de ser visto como fundamental, o trabalho é valorizado e internalizado dentro da dimensão do querer, do gostar... Para nós é difícil aceitar que as crianças gostem exatamente das tarefas que têm que executar... mas ao longo da pesquisa percebi isso cada vez mais forte na forma de educar das famílias. O trabalho desde cedo como aprendizado de vida está presente na fala das crianças e dos adultos. Observando Gomercino em sua tarefa como retireiro da fazenda, percebi que colocava os dois filhos menores para ajudá-lo. A fazenda contratou então um ajudante exclusivo para Gomercino. Ele continua colocando os meninos para trabalhar - agora, ajudando seu ajudante! Esta é a forma que Gomercino encontra para ensinar a tarefa de retireiro - assim como ele próprio, desde cedo, aprendeu com o pai. Do mesmo modo que Gomercino desenvolve nos filhos o aprendizado destes serviços rurais, dona Abigail desempenha igual papel com as filhas no que diz respeito aos serviços domésticos.

A relação estreita entre trabalhar-brincar-aprender tem forte significado no peso que a escola e todo conhecimento por ela oferecido têm em suas vidas. A relação entre brincar-trabalhar na área rural em estudo parece-me bem diferente do quadro vivido pelas crianças dos centros urbanos. Das crianças pobres (Faria, 1993) são usurpados o direito de brincar ou de transformar em lúdica a sua relação com o trabalho. Por outro lado, à criança burguesa é vetada a possibilidade de se emancipar, de viver o hoje: tudo a cerceia para ela se guardar para o porvir.

Na sociedade que se industrializa, já não existe espaço para a criança: ou ela trabalha, ou é aluno, ou é assistida para adquirir condições para trabalhar e/ou estudar. Uma proposta educacional que resgate a infância, isto é, que permita a criança permanecer criança por algum tempo, não tem lugar na sociedade do trabalho (Faria, 1993: 19-20).

O que falam as crianças sobre a escola?

De um lado, esta instituição, ensinando um saber estranho ao universo camponês, associa-se ao rico, ao dominador, ao doutor, de outro, possibilita um aprendizado necessário ao camponês: a leitura, a escrita, as quatro operações. (Pedro Benjamin Garcia).

A situação de precariedade das escolas rurais não constitui hoje nenhuma novidade: maior concentração de analfabetismo, maior escassez de recursos didáticos, maior índice de evasão, maior número de classes multisseriadas, de professoras leigas etc. A meu ver, a discussão de uma solução para o problema da falta de escolas de quinta a oitava séries do 1. grau está vinculada a outro problema anterior - as crianças sequer chegam à quarta série.

Como se estrutura a rede de transmissão/construção de saberes? Gomercino ensina André a tirar leite; Daniel ensina Chaoli a cortar capim; dona Abigail ensina a Natália e Rosiléia os afazeres domésticos - o senso prático, os ensinamentos, são vistos por Macedo (1988: 35) como especificidade humana de criar soluções diversas para a questão básica da manutenção da vida. Entende que diferentes processos históricos de constituição e desenvolvimento das sociedades humanas marcam a heterogeneidade dos modos de vida, a pluralidade nas expressões das relações sociais, a multiplicidade de culturas. Define cultura como “conjunto global de modos de fazer, ser, interagir e representar que, produzidos socialmente, envolvem simbolização e, por sua vez, definem o modo pelo qual a vida social se desenvolve”.

Será que as crianças se percebem como possuidoras que são de inúmeros saberes, como produtoras e consumidoras de cultura? Ou será que, antes mesmo de entrarem na escola, já estão desvalorizando este saber construído ao longo da história em prol de um saber esvaziado instituído externamente?

As crianças se reconhecem como possuidoras de inúmeros saberes que supõem ter aprendido sozinhas. Algumas tarefas específicas têm seu aprendizado atribuído à mãe, ao pai ou à avó. Willis (1991) coloca que através de uma cadeia de relações entre pessoas da comunidade se cria uma rede para a transmissão de tipos distintivos de conhecimento e de perspectivas. Não existe conhecimento individual e isolado. A interação é necessária para a aprendizagem - todos aprendem e ensinam. O fortalecimento desta rede tenderia progressivamente a colocar a escola numa posição tangencial com relação à experiência global.

Entretanto, estes conhecimentos ainda não têm, nesta comunidade, o mesmo peso que o conhecimento formal da escola. Entendem que a escola traz conhecimentos que não teriam fora dela; e comumente vêem este aprendizado como mais importante do que as suas conquistas do dia-a-dia. Direta e indiretamente estas crianças estão vivendo esta realidade de se verem desprestigiadas e desvalorizadas em suas conquistas pessoais. Que peso a escola e seus profissionais têm nisso? E as outras instituições?

Existe e é esse o ponto decisivo - uma idéia condutora que é, sincera ou insinceramente, comum a todos: a idéia de que o pior mal do mundo é a pobreza, e que portanto a cultura das classes pobres deve ser substituída pela cultura da classe dominante (Pasolini, 1990: 33).

Médicos, professores, fazendeiros, pastores são os que detêm o saber instituído, e em seus discursos encobrem a riqueza do saber popular, a sua força de organização social, a sua capacidade narrativa, fazendo com que, pouco a pouco, os camponeses internalizem sua imagem de cidadão-em-falta, cidadão-a-menos, não-cidadão. Citando Garcia (1993: 31), “penso que a expressão lascado com que os pobres se designam, e a seus iguais, leva a marca do que não está inteiro, do que é incompleto”.

Por outro lado, de maneira geral, os comentários dos pais são de grande valorização do estudo, apesar de a maioria não ter estudado ou, mesmo tendo freqüentado a escola, não ser alfabetizada. Mais uma vez aqui, percebo forte marco na educação que a comunidade dá a seus filhos. A escola é vista como necessária e fundamental. Pergunto-me: se esses pais são analfabetos e vêem que seus filhos, às vezes depois de sete anos de escolaridade, permanecem analfabetos, por que continuam mandando essas crianças para a escola? Se essa professora já tem a priori a idéia de que esses alunos não conseguirão aprender porque não há estímulo familiar, não há material, não há isso e aquilo, por que esses pais continuam respeitando e gostando dessa professora? Se as igrejas locais (mais fortemente, como afirmei, encontramos linhas da religião protestante), que exercem enorme influência e controle sobre a população, vêem que esta escola não alfabetiza seus alunos, por que nada fazem no sentido de mudá-la?

Observei nas visitas preliminares que na escola a atenção dada à criança está muito impregnada de conceitos médico-sanitários - sua saúde, sua alimentação, em suma, sua sobrevivência. Seria possível enxergar na área rural uma Educação que não passasse por questões médico-higienistas? Por outro lado, este caráter assistencialista dentro da escola não poderia também camuflar uma postura de dominação e manutenção do status quo? Estas questões trazem à tona o que Faria (1993) chamou de caráter ambíguo da assistência - enquanto direito e enquanto domesticação. Não entrarei, aqui, nestes meandros, mas acredito que Educação seja algo muito mais amplo do que os bancos da escola; há de se perceber as circunstâncias específicas do lugar: seu nível de urbanização e saneamento básicos, seu atendimento médico-dentário etc, mas sem deixar obscurecer o papel da escola enquanto via de acesso ao conhecimento formal, ou ponte de ligação entre o conhecimento espontâneo da comunidade e o conhecimento científico; ou ainda, como nos diz Therrien (1993: 9), a escola deve concretizar

um esforço para se buscar formas de integração entre o saber sistematizado pelas instâncias científicas, o chamado saber acadêmico, e o saber historicamente elaborado pelo campesinato em suas práticas produtiva e política.

Várias falas indicam este caráter assistencialista. Dona Abigail me conta que a escola hoje em dia está muito melhor porque escova os dentes, pediu toalha de rosto, dá merenda. Perguntada se na questão dos estudos ela via alguma diferença, disse que sim - que a professora explica as coisas da vida para as crianças. Ela acredita que o conhecimento escolar é maior do que o adquirido fora dela.

No entanto, André, de 13 anos, pode ser considerado o símbolo da cultura contra-escolar[3] (Willis, 1991). Foi dos poucos relatos veementes contra a professora, contra o sistema a que se vê obrigado. Ele de alguma forma sinaliza que a escola, seguindo padrões diferentes dos seus, procura quebrar com sua cultura, mas não com o ciclo pai-lavrador/filho-lavrador. É Bernardo (1992: 9) quem diz:

a rebelião do ‘mau aluno’, aparentemente primária, constitui uma recusa a ser despossuído do seu saber próprio e do herdado; é a primeira das revoltas contra a assimilação capitalista.

Pode ser até que não seja o capitalismo o criador da idéia de privação, de deficiência, de carência... mas certamente uma sociedade excludente agrava o distanciamento, o sectarismo - a segregação estigmatiza e homogeneíza. Portanto, o silêncio, o riso, a bagunça na aula, o faltar à escola, são atos de André a que podemos atribuir significado de rejeição ao sistema escolar (e ao sistema mais amplo?). Por sua natureza ideológica, o discurso compreende o dito e o não-dito. Para Bakhtin (1992), tanto o dito quanto o presumido têm peso fundamental na leitura do enunciado.

Em nossa reflexão, não podemos desprezar a dimensão político-ideológica da escola como espaço de contradições. Garcia (1993) aponta a ambigüidade da escola para o camponês assinalando que ela tanto se presta ao papel libertador, instrumentalizando o povo para reivindicar e lutar mais organizadamente e com mais armas por seus ideais transformadores, como também pode servir como matriz reprodutora do sistema vigente, petrificando-o e cuidando para que este sistema não fique vulnerável. Não estaria a diversidade e multiplicidade de papéis atribuídos à escola ligadas também às diferentes concepções que todos os atores implicados têm dela?

Martins (1985: 259) discute a idéia de que a escola molda o espírito: “valoriza o esforço pelo esforço”, isto é, a escola serve como elemento disciplinar, elemento normativo. Ela serve como lugar de socialização de comportamentos, lugar de regras, de restrições, lugar onde, em especial, a criança viverá a experiência de que comumente se esforça muito e nada colhe. Assim é a lavoura de subsistência: sem tecnologia e sem recursos, está sujeita a inúmeras variáveis incontroláveis e imponderáveis e, comumente, muito se planta, muito se esforça e nada se colhe!

Explicitamente, não tive nenhum depoimento nesta linha, mas posso supor que a forma como alguns pais prolongam a escolaridade de seus filhos, mesmo sem um retorno escolar concreto, nos remete a outras razões por trás desta demanda escolar. O fato de o caráter assistencialista da escola ter sido ressaltado me leva a crer que hoje este é um fator de peso para a permanência dos alunos na instituição escolar.

Se ensinar a ler e escrever é visto como função clara da escola para os pais, esta mensagem é passada dos pais para os filhos e destes para seus filhos...

No entanto, para a maioria das crianças, ler e escrever é uma atividade escolar, pedagogizada, estéril e sem vida, desprazerosa e inútil. O uso escolar da leitura/escrita exclui o uso não-escolar (dicotomia), quando na verdade os últimos ampliam a interação entre os sujeitos. Por isso a escola deveria desempenhar um papel de desenvolver o interesse pela leitura/escrita na vida: textos, listas de compras, rabiscos, instruções, bulas, anotações... tudo que possa inserir-se no cotidiano. Vi que algumas crianças podem até perceber um uso futuro para a leitura/escrita; outras, nem isso... mas, e uma inserção no presente? Para elas simplesmente não há!

Frago (1993) aponta que ler é bem mais complexo do que habilidades cognitivas e perceptivas; vai muito além das questões fisiológicas - é uma relação entre o texto e o leitor, onde este se apropria daquele. A leitura é uma prática social e cultural. Os textos são sempre abertos a múltiplas leituras, num processo de interação contínua. O que importa é como a leitura e a escrita influenciam nossas vidas: ler quando se vive; viver quando se lê!

André, aos 13 anos, quer sair da escola para poder fazer o que gosta: trabalhar. Mas ele agora quer trabalhar de verdade, isto é, trabalhar para terceiros ganhando uma remuneração e não mais para irmãos ou pai. Para André, a escola em nada contribui neste trabalho. Mesmo quando falam dos seus desejos futuros de trabalho, as crianças têm dificuldade em estabelecer relação entre este trabalho futuro e os conteúdos escolares. Diferentemente das crianças, os pais imaginam que a escolaridade (que eles não tiveram...) poderia trazer melhores ocupações e salários. É a visão de escola como possibilidade direta de mobilidade social.

*

O contato mais direto com a escola, com as professoras e algumas famílias suscitou-me algumas indagações. Há registros (Therrien & Damasceno, 1993) bastante interessantes, ressaltando a professora como representante fundamental na luta de classes, destacando sua posição no que concerne a assentamento e posse de terras, principalmente no Norte-nordeste brasileiro. Este não me pareceu ser o perfil das professoras da comunidade estudada. Nesta pesquisa, a imagem da professora é também bastante valorizada, mas como uma figura mais distante, algo como um mito. É a “Dona Professora” - aquela que detém o saber formal. É brava, grita e briga.

Quando falam do que não queriam que a professora fizesse, as crianças estão claramente trazendo a forma como gostariam que ela fosse, como acreditariam que pudessem estabelecer estas relações interpessoais na escola. Os mecanismos de repreensão (repressão?) usados para manter a ordem, a distância, o poder, estão muito presentes. Contaram que a professora coloca “desistência” na ficha de algumas crianças e com isso estas ficam impedidas de continuar estudando. Seu retorno à escola dependerá do poder de argumentação dos pais e, conseqüentemente, da benevolência da professora em lhes conceder mais uma chance. Desistência como sugestão disciplinar? Para homogeneizar (calar/disciplinar) basta eliminar o diferente? Fazê-lo desistir? Diante disso, eu só conseguia me perguntar: quem desiste de quem? O aluno que falta é então obrigado a desistir da escola? Ou a escola desiste dele? Por que faltam esses alunos? O que é dar mais uma chance? Um favor? Lembrei-me do trabalho “em-troco-de-bóia”... estas crianças estão tendo, concretamente, alguma chance?

E é André quem, aos 13 anos, me diz que vai dar a última chance para sua professora... Contou-me que ela pegou seu caderno para mostrar à técnica da Prefeitura que ele não aprendia nada! E ele, então, Ihe avisou: se ela fizesse aquilo de novo ele abandonaria a escola! É a sua última chance!

Para Benjamin (1984: 86), a essência da educação é a observação: é o professor “abdicar do ímpeto e prazer que sente, na grande maioria dos casos, ao corrigir a criança, baseado em sua presumível superioridade intelectual e moral”. Posso entender que a professora rural imagina ter diante de si um aluno passivo e ao mesmo tempo vazio de história e de vida? Que age como que diante de um receptáculo no qual ela pode depositar conhecimentos que ela, professora, escolheu e discerniu como sendo os apropriados, esquivando-se, de maneira perversa, de reconhecer nesta criança um sujeito imerso na história, responsável por sua trajetória?

Mas, e a professora? Está podendo ser sujeito? Tem sua voz ouvida? Será que ela tem, concretamente, alguma chance? Afinal, quem dá a chance para quem? A meu ver, o professor, nas suas condições de trabalho (baixos salários, dificuldade de transporte, precárias condições físicas e materiais das escolas, pouco acesso à formação permanente em serviço) é mais um sujeito que precisa rever sua própria história e ter sua história revista nesta engrenagem maior...

*

A escola tende a separar conhecimento de afetividade. Para Vygotsky, as coisas caminham juntas - a criança, em sua relação interativa com o conhecimento, com as pessoas, com o mundo, sofre transformações, e o cotidiano escolar é um dos agentes interativos.

O lúdico está completamente ausente da instituição escolar. Está ausente da relação professor-aluno, da possibilidade de brincar, de dançar, pintar, passear, mexer-se. A meu ver, a escola deveria compreender a importância do lúdico na formação não apenas da criança mas também do educador.

A ludicidade e a expressão artística são ainda comumente vistas como subversivas, e talvez por isso a escola se coloque como lugar que impede o lúdico... Benjamin (1984) destaca a capacidade da criança em subverter a ordem, em fazer história a partir dos cacos da história, do lixo. Se a escola não dá espaço ao lúdico e ao artístico por sua característica subversiva, que espaço pode dar à criança? Até o recreio consegue ter subtraído o seu aspecto prazeroso, tamanha a carga que recebe. O desprazer da escola aparece em várias falas, de diferentes formas. A rotina das atividades parece não se alterar muito, assim como o tipo de dever, de brincadeira, de música. O espaço de fala é preenchido pelo espaço do silêncio. A espontaneidade, pela obediência passiva. O aluno só fala quando solicitado pela professora. Esta, por sua vez, só fala para dar as ordens a serem executadas. Não há espaço para histórias de vida, troca de experiências - o diálogo ameaça a disciplina.

Como a professora-que-não-fala pode dar espaço à fala do aluno? Mais uma vez, não se trata de culpabilizar o professor, mas entendê-lo como sujeito inserido em um contexto que é dinâmico, complexo, contraditório.

Bakhtin (1992) reforça a importância do diálogo. Para ele, palavra é acontecimento, é encontro. Ela traz sempre novidade, está marcada pelo diferente. Por isso, ao dizer de forma diferente aquilo que o outro já disse, já não estou dizendo a mesma coisa: dialogia, sujeito, história, linguagem, estão sempre constituindo-se, sempre em processo, alternando seus enunciados e seus sentidos, sendo construídos. Todo discurso, é então, uma tensão entre o já-dito e o novo.

Vygotsky também dará muita importância à linguagem na construção do conhecimento. Reforça o papel fundamental de a criança estar contextualizada (não buscar uma criança universal/única), enfatizando a necessidade de marcar as diferenças, pois o que nos une é o que nos diferencia... uma coisa é parte da outra. E é Kramer (1994: 2) quem vai dizer que “aquilo que caracteriza a nossa singularidade é justamente a nossa pluralidade”.

A interação produz mudanças, e aprendizagem é mudança. Portanto, a interação é necessária para a aprendizagem - é a possibilidade de todos aprenderem e de todos ensinarem - não é um processo individual isolado. Entretanto, pelo depoimento das crianças, a fragmentação do conhecimento fica flagrante na forma como é trabalhado. O conteúdo na escola é prioritário. A forma é deixada de lado, quando, na verdade, é esta que aprisiona ou liberta o conteúdo. Bakhtin diz que forma e conteúdo são inseparáveis.

Mas por que a escola faz isso? Será mais fácil de ensinar? Ou mais eficiente para controlar? Autonomia é palavra-chave em qualquer processo de mudança; é andar com seus próprios pés, pensar com sua própria cabeça - é ser sujeito. Autonomia pressupõe consciência, reflexão - e isso não pode ser dado, tem que ser construído, é processual. O papel do educador passa por propiciar ao educando o espaço de construção da sua autonomia em sala de aula. O professor não é, e precisaria não se supor, o detentor do saber, mas aquele que, com as crianças, possibilita que estas se apropriem deste saber e, em constante confronto com os seus outros inúmeros saberes, vão construindo sua rede de relações. Para que isso ocorra, não se pode dicotomizar vida-aprendizagem.

A escola passa a ser uma ilha, uma sociedade fechada com ritmos e rituais próprios, diferentes daqueles que o aluno vive ‘lá fora’; dentro da escola ele não é mais uma criança ou um adolescente, ele é um aluno (Ribeiro, 1977: 54).

E trazendo algumas reflexões finais...

Não é simplesmente porque as crianças faltam que há fracasso. É porque há fracasso que as crianças deixam de freqüentar a escola. (T. M. Salim)

Ampliando a discussão acerca da escola, revisitando falas de adultos e crianças, sou levada a entender que a ausência da escola ou a presença dela não sinalizam ausência ou presença dos conhecimentos que supostamente esta escola deveria transmitir. Esta escola hoje está diferente pois tem um caráter assistencialista explícito. E os conhecimentos a que eu me referia antes? Estes, ao que tudo indica, continuam ausentes. Não seria exagero lembrar: escola tem que ensinar!

Falta escola? Não. Falta que ela cumpra seu papel fundamental de articulação entre o conhecimento formal, escolar, acadêmico e o conhecimento espontâneo da comunidade que a cerca. Falta que ela cumpra seu papel emancipatório, que possa concretamente estreitar os laços entre estes conhecimentos e a vida.

Vida! É basicamente o que falta na escola. Os alunos estão lá, as professoras estão lá; há pessoas vivas, sem dúvida. Mas falo de vida num sentido muito mais amplo. Falo de autonomia, de cidadania, de emancipação, de escolha, de liberdade, de acesso ao conhecimento, de leitura do mundo, de ampliação de horizontes. De vida social.

Educação é poder? Saber confere poder! Mas saber vivo, contextualizado, crítico... Será por isso que o conhecimento trazido por esta escola é tão distanciado da vida de seus alunos? Estas crianças que conheci são privadas de ter acesso a tudo que passe pela leitura, tudo que passe pela modernidade... Por quê? Com que direito a escola as priva disso e ainda, muitas vezes, as deixa marcadas com a falha que estaria nela própria?

Precisamos da escola pública e ela se faz presente, mas democratizar o acesso à escola, infelizmente, não tem significado democratizar o acesso ao saber. Conhecer nosso aluno, é fundamental! Conhecê-lo como representante da sua classe; como sujeito sociohistórico capaz de agir sobre a sua trajetória; como narrador, produtor e consumidor de cultura que, através da e na linguagem, imprime suas marcas, reelabora seu passado, vive o seu presente e tem possibilidade de não aprisionar seu futuro. Portanto, a escola precisa se repensar, mais do que o método utilizado, como disse Mendonça (1989), serão as formas como as relações se estabelecem dentro da escola que estarão propiciando a construção do conceito de cidadania por parte de seus componentes - pais, alunos, professores, todos cidadãos em pleno exercício de suas capacidades.

Esteja situada no campo ou na cidade, é preciso que a escola trabalhe com uma criança vista e tratada como cidadã; e também com professoras cidadãs. Precisamos da escola pública viva, democrática, sensível, aberta, permeável às trocas, singular. Afinal, quanto menos laços de coletividade, menor possibilidade de narrar... Somente ampliando este espaço de fala, de rememoração, a escola estará possibilitando o não-apagamento das diferenças, a não-cristalização dos papéis; estará possibilitando mudar a História (Kramer, 1994).

Precisamos ouvir nosso aluno, aprender com ele, trocar com ele. Só assim poderemos criar laços afetivos e só assim ele se sentirá confiante e inteiro. Só confiante e inteiro ele estabelecerá as pontes entre sua vida cotidiana e o mundo ao seu redor. Assim então ele crescerá; assim este aluno será também mestre.

A insensibilidade das instituições com a cultura e a linguagem da criança faz com que identifiquem como carência aquilo que é, na realidade, diferença. Quero arriscar-me e deixar registrado mais uma vez: diferentemente do que defendem as teorias da privação cultural, as crianças sujeitos desta pesquisa não são carentes ou em falta. Vivem seus diferentes papéis em família; estão inseridas na comunidade e no funcionamento desta; têm espaço de brincar; possuem inúmeros saberes; são educadas para o trabalho, para gostar do que fazem, parecendo viver a possibilidade de aliar trabalho-jogo, estruturando suas relações com a vida, com a produção, e não necessariamente para a reprodução.

Minha pesquisa foi feita com alunos e, através da fala deles, estão presentes também os professores. Está a escola se caracterizando como espaço de encontros ou de desencontros? Também os nossos professores estão sendo impedidos de narrar, de ser sujeitos da sua prática, de ser autores. E os pais? Precisamos de uma escola pública que viabilize uma relação transformadora entre todos os sujeitos envolvidos! Concordando com Kramer (1994), entendo que sejam dos maiores problemas da nossa escola a exclusão, a discriminação, a eliminação. Lidar com as diferenças; mais do que isso - respeitá-las e compreendê-las enquanto marca da nossa condição humana: entendo que a escola deveria ser um espaço especialmente propício a isso. Diferentemente, o que vemos é a padronização. A forma como se relacionam umas com as outras, a maneira como são vistas pela escola, tudo caminha para, apesar de muito diferentes entre si, as crianças serem vistas enquanto bloco homogêneo. Nunca é demais dizer: “heterogeneidade é riqueza e não obstáculo” (Kramer, 1994: 5), e a escola deveria desempenhar importante papel nesta luta.

*

Minha intenção nesta pesquisa não foi avaliar a escola ou o professor, mas, conhecendo como se dão as práticas sociais de crianças que são alunas da escola pública de uma zona rural do Rio de Janeiro, estar contribuindo para elucidar um pouco mais esta realidade tão próxima e ao mesmo tempo tão distante. A partir do conhecimento, do entendimento desta realidade, as políticas públicas podem se reorientar. Somente ampliando nossa arena de diálogo, nossa rede de interlocutores, poderemos estar verdadeiramente contribuindo para a reversão, subvertendo.

As crianças são diferentes entre si, mas têm todas o direito de acesso aos conhecimentos da língua, da matemática, das ciências naturais e das ciências sociais. (...) Não acredito que estamos formando o cidadão do futuro: acredito sim, que estamos, no dia-a-dia, convivendo e atuando com crianças que são cidadãs hoje, e como tal precisam ser respeitadas (Kramer, 1995: 116-117).

 

Referências bibliográficas

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Anotações pessoais

Dourado, Luiz Henrique. A fiscalização em foco: a ação do Ministério do Trabalho. Palestra do encontro Criança no campo: educação, direito e trabalho. UFRJ, 1995.

Pereira, Irandy. O trabalho infantil e o imaginário social. Palestra do encontro Criança no campo: educação, direito e trabalho. UFRJ, 1995.

Ripper, João Roberto. Violência e infância no campo. Exposição de fotos e palestra do encontro Criança no campo: educação, direito e trabalho. UFRJ, 1995.

 

Notas

[1] “Taxa de analfabetismo: relação entre o número de analfabetos e o total das pessoas do mesmo grupo etário. Considerou-se analfabeta a pessoa que não é capaz de ler e escrever pelo menos um bilhete simples” (Fundação IBGE, 1994: 11). Vale ressaltar que este índice é geral para o município, não havendo dados específicos da área rural. A realidade circundante na localidade estudada, desde o período exploratório de cinco meses, mostrou um quadro mais dramático. Dos vinte adultos com os quais tive contato mais estreito, apenas um sabia ler e escrever. Dos dezenove, três não escreviam nem o próprio nome. Este é também o panorama apontado em conversas informais com fazendeiros da região.

[2] “Encarregados” são os empregados responsáveis por supervisionar a produção e o trabalho dos outros empregados nas fazendas.

[3] “A dimensão mais básica, óbvia e explícita da cultura contra-escolar é uma oposição cerrada, nos planos pessoal e geral, à autoridade. (...) Essa oposição expressa-se principalmente como um estilo. Manifesta-se de incontáveis pequenas maneiras, que são peculiares da instituição escolar e que são instantaneamente reconhecidas pelos professores, constituindo uma parte quase ritual da trama diária da vida dos garotos - mesmo que isso muitas vezes não chegue a ter expressão verbal” (Willis, 1991: 23-25).